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O aspecto dialógico da política: por uma presença pública fiel e piedosa

Escrito por Vitória Maria, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2022


Introdução

Dialogar é uma tarefa necessária para a coexistência entre as pessoas, mas tem sido cada vez mais cercada de ruídos, mesmo diante da era da conectividade.  Estabelecer uma comunicação de qualidade é um desafio, inclusive quando os diferentes compõem as partes da conversação. Isso porque, mais do que falar, o diálogo também envolve o ouvir.

Essa atividade se torna ainda mais complexa quando a política entra em cena. Surge, então, um questionamento que necessita de resposta: como dialogar com aqueles que não concordamos? O presente artigo busca discutir o aspecto dialógico da política, defendendo uma presença pública cristã fiel às ordenanças das Escrituras. Para isso, contaremos com as discussões levantadas pelo cientista político David Koyzis, no livro Visões e ilusões políticas, além das contribuições do filósofo Roel Kuiper, encontradas na obra Capital Moral.

A política como mandato cultural 

Cultivar e guardar. Essas são as ordenanças que recebemos do Senhor em Gênesis 1.28. O trecho é frequentemente utilizado para sermos lembrados acerca do mandato cultural. Assim, Koyzis nos aponta que “o chamado inicial e mais básico de Deus é: “Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a”1. Nesse contexto, “as atividades humanas que moldam a cultura estão de acordo com a intenção criativa de Deus”2. Esse cuidado é, portanto, cósmico, pois abrange toda criação, inclusive o próximo. 

Entretanto, com muita frequência ouvimos que ‘política e religião não se misturam’. Tal posicionamento, aparenta evocar uma neutralidade sobre a relação entre Igreja e Estado, mas, na verdade, é uma porta aberta para a negligência desse campo. Antes de prosseguirmos, é importante posicionarmos a política como parte da criação. Desta forma, assim como tudo que foi criado, a política tanto sofre com a consequência da queda, como pode experimentar a redenção3. Contudo, como conduzir essa atividade a um caminho redentivo, se negligenciarmos essa tarefa? “Portanto, não podemos nos contentar em relegá-la a um âmbito neutro, secular, ou à soberania do príncipe deste mundo”4.

Mesmo diante das distorções possíveis para a política, não é correto que eliminemos o “uso legítimo”5. É importante estarmos conscientes que “tudo o que Deus criou é passível de sofrer abuso. Se fôssemos repudiar tudo quanto pode ser mal-usado, melhor seria abandonar a própria vida”6. Contudo, abrir mão da participação na política, sob tais argumentos, nos leva a estar “implicitamente negando o objetivo cósmico da redenção de Cristo, diminuindo a soberania de Deus”7.

Dito isso, qual a função prática da política na nossa existência? Essa pode ser definida como a “arte de fazer conciliar as diferentes vozes dentro de uma sociedade”8. Assim, é correto posicioná-la como um mecanismo para promoção de justiça e igualdade social. Nas palavras de David Koyzis,

Portanto, a indagação política não é propriamente a de saber se a diversidade direcional é positiva, e sim a de como conciliar essa diversidade que já existe como um fato empírico. E isso é uma questão de justiça, não de justiça final, é claro, mas de justiça provisória, bem mais modesta que a justiça completa de Deus, a realizar-se no último dia. Essa justiça provisória significa que, mesmo se discordarmos do outro em assuntos básicos fundamentais sobre a natureza do mundo, sobre o nosso lugar nele e nossa responsabilidade diante de Deus e do próximo, somos ainda obrigados proteger a sua liberdade de crer e, até certo ponto, de praticar a sua crença na vida cotidiana.9

Sendo assim, a política se faz necessária em um mundo plural. Afinal, em decorrência dos aspectos que nos distinguem enquanto indivíduos, surgem as diferentes perspectivas10. A diversidade é inescapável, por isso é fundamental que tenhamos meios para a coexistência, diante dessa multiformidade social. É nessa dinâmica que surge o bem comum. Ao percebermos o cuidado com o outro como mandamento, entendemos que ele, como ser criado, “tem um caráter de dádiva e é tão sagrado quanto o eu. O outro é sagrado porque faz parte da criação”11

Dialogar para servir 

Assim como a diversidade é inevitável, a comunicação também se apresenta como uma competência inerente e necessária. O comunicólogo Juan E. Díaz Bordenave aponta que “a cultura funciona pela comunicação” (DÍAZ, 1996, p. 56), sendo impossível a existência de uma sem a outra. Quem também aborda o aspecto relacional do diálogo é Roel Kuiper. 

O filósofo assegura que “o falar é uma conversa entre dois parceiros iguais”12. Essa atividade dialógica exige tanto atividade quanto passividade13.  Sendo assim, estabelecer um diálogo de qualidade, mais do que falar, envolve ouvir. Essa conversação não ocorre apenas entre aqueles que pensam igual, mas apresenta-se como uma oportunidade para o exercício da piedade, principalmente, entre aqueles que discordam. 

Vern Poythress ressalta que a discordância é uma realidade, até mesmo entre os cristãos. Entretanto, é quando as questões difíceis surgem que precisamos manifestar a caridade14. A política é uma das áreas espinhosas, que nos convida a adentrar no seu espectro, dispostos a enxergar a alteridade como algo a ser valorado, não exterminado.

Esse movimento pode ser definido como dialógico, pois é a partir daí que “procuramos por uma relação com algo que se apresente como “alteridade”15. Ao respeitar e compreender o outro, conseguimos conviver, por isso o diálogo sobrevive em meio ao diferente. Não somos isolados nas nossas bolhas de concordância, porque o “outro continua falando e se dirigindo a nós”16.

Assim, justiça, amor e humildade devem fazer parte da nossa presença pública, de maneira prática e não demagoga. Esse é o chamado que o Senhor dispensou nas nossas mãos e não deve ser deixado de lado apenas porque pensamos diferente de alguém politicamente. O diálogo se faz necessário, com mordomia e piedade, porque até para sermos honestos em nossas objeções é necessário que conheçamos o ponto defendido pelo outro. O conhecimento é dialógico e relacional. 

Portanto, ao aceitar a diferença “como uma dádiva, podemos abraçar o mundo”17. Isso “nos ajuda a ultrapassar os limites da nossa individualidade focada em nós mesmos”18. Essa transposição não envolve abrir mão da própria cosmovisão, até porque esse é um movimento inviável19. Olhar para o outro, além das nossas próprias perspectivas, é buscar localizar a graça comum manifesta no diferente.

Conclusão 

Diante disso, a política não deve ser extinta porque pessoas fazem um mau uso dela. assim como o outro não deve ser isolado porque se posiciona diferente do eu. Uma sociedade que corresponde ao que foi proposto pelo Senhor é aquela que consegue se desenvolver de maneira equilibrada e em shalom20. É importante lembrarmos que mesmo onde há distorção há também redenção. Essa não atinge apenas aos humanos, mas todas as atividades culturais humanas, incluindo a vida política21.

Assim, ao confiarmos na soberania de Deus, entendemos que a nossa esperança não está no resultado das eleições. Vivemos para algo maior, mas não devemos negligenciar o que foi posto nas nossas mãos. Temos um chamado e esse deve ser cumprido em fidelidade a Deus, ao semelhante e à criação22. Logo, “o mandato de promover a justiça não está aberto à negociação, especialmente para quem afirma ser discípulo de Jesus Cristo”23


1 KOYZIS, David T. Visões e ilusões políticas: uma análise crítica das ideologias contemporâneas. Trad. Lucas G. Freire e Leandro Bachega. 2. ed. ampliada e atualizada. São Paulo: Vida Nova, 2021. p. 249-250.

2 Ibid.

3 Ibid, p. 253.

4 Ibid.

5 Ibid, p. 260.

6 Ibid.

7 Ibid, p. 248-249.

8 Definição fornecida por Pedro Lucas Dulci, durante a segunda aula do oitavo módulo do Programa de Tutoria Avançada do Invisible College.

9 KOIZYS, op. cit., p. 269.

10 Ibid, p. 273.

11 KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Trad.Francis Petra Janssen – Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. p. 136.

12 Ibid, p. 129.

13 Ibid.

14  POYTHRESS, Vern S. O senhorio de Cristo: servindo o nosso Senhor o tempo todo, em toda vida e de todo o nosso coração. Trad. Marcelo Herberts.  Brasília, DF: Monergismo, 2019. p. 121.

15 KUIPER, op. cit., p. 130-131.

16 Ibid.

17 Ibid, p. 137.

18 Ibid.

19 KOYZIS, op. cit., p. 331.

20 Ibid.

21 Ibid, p. 251.

22 KUIPER, op. cit., p. 139.

23 KOYZIS, op. cit., p. 344.

Referências 


Quer entender mais sobre teologia e filosofia?


BORDENAVE, Juan E. Díaz. O que é comunicação. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996, 105 p.

KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Trad.Francis Petra Janssen – Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. 310 p.

KOYZIS, David T. Visões e ilusões políticas: uma análise crítica das ideologias contemporâneas. Trad. Lucas G. Freire e Leandro Bachega. 2. ed. ampliada e atualizada. São Paulo: Vida Nova, 2021. 400 p. 

POYTHRESS, Vern S. O senhorio de Cristo: servindo o nosso Senhor o tempo todo, em toda vida e de todo o nosso coração. Trad. Marcelo Herberts.  Brasília, DF: Monergismo, 2019.  250 p.