Artigo escrito por Haralan Mucelini, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024
1. Introdução
O mundo está nas cidades muito mais do que as cidades estão no mundo. Apenas 2% da superfície do planeta é coberta por áreas urbanas. Entretanto, as cidades abrigam, atualmente, 56% da humanidade e serão o lar de 70% da população até 2050. No final do século XXI, 85% dos seres humanos habitarão uma cidade1. Nesse sentido, em uma era eminentemente urbana, parte significativa da reconciliação da teologia com a vida da igreja passa pela tradução da doutrina para o contexto urbano em toda a sua complexidade. Diante disso, este artigo sugere a necessidade do desenvolvimento de uma teologia urbana distintamente cristã.
Esta proposta utiliza como suporte metodológico a teologia canônico-linguística, que situa no cânon bíblico, em contraposição à cultura eclesial, o uso normativo das Escrituras. Nesta abordagem, Kevin Vanhoozer utiliza a metáfora do teatro para defender que “o caminho cristão é fundamentalmente dramático e envolve atos e discursos em nome da verdade e da vida de Jesus”2.
Se o caminho cristão envolve ação e fala em nome da verdade, o cenário mais comum disponível a esta encenação é a cidade. Se a doutrina é “um ingrediente vital para o bem-estar da igreja, uma ajuda essencial para o seu testemunho público”3, é razoável considerar que a publicidade deste testemunho se materializa, fundamentalmente, no ambiente urbano. Ocorre, entretanto, que assim como “o coração do homem é uma fábrica de ídolos”4, a urbanidade do mundo pós-moderno é o panteão onde inúmeros gnosticismos disputam os recursos, a energia, a atenção, a mente e a alma das pessoas. Daí a necessidade de uma teologia capaz de articular os temas urbanos com fidelidade ao roteiro canônico, que apresenta, em seu clímax escatológico, uma cidade cujo arquiteto e construtor é o próprio Deus5.
2. A cidade e o mal na cidade
A civilização, na etimologia6 e na prática, sustenta-se sobre as cidades. Nas palavras de Jonathan F. P. Rose, “as cidades atuais são maravilhas técnicas, refletindo os enormes avanços científicos da civilização”7. Tão otimista quanto Rose, Timothy Keller, inspirado pela obra do Edward L. Glaeser, define a cidade como “uma modalidade de organização social em que as pessoas vivem fisicamente muito próximas”8. Este conceito enfatiza a densidade como o elemento definidor da realidade urbana. A densidade seria o gerador de três características fundamentais à vida humana urbanizada: segurança e estabilidade, diversidade e produção e criatividade9.
A cidade está no epicentro e no hipocentro das transformações sociais. Todos os movimentos antigos, modernos e pós-modernos que puseram em marcha o florescimento e o declínio dos maiores impérios da antiguidade e do Estado-nação da modernidade têm, como cenário-chave, uma cidade. As cidades têm sido o motor da inovação desde a época de Platão e Sócrates, de modo que “vagar por estas cidades […] significa nada menos do que estudar o progresso humano”11.
Na Bíblia, questões pertinentes às cidades aparecem em mais de 1.200 referências12, de modo que as cidades são cenários fundamentais ao enredo canônico e servem, na maior parte das vezes, não apenas à designação do lócus geográfico dos personagens, mas como ícones das visões de mundo conflitantes com o caráter de Deus e concorrentes à sua vontade.
Ur dos Caldeus, Sodoma, Jericó, Samaria, Damasco, Tiro, Nínive, Babilônia (ou Babel) exemplificam, no texto bíblico, centros urbanos que emularam, no tempo e no espaço, aspectos da “grande Babilônia”, cidade arquetípica condenada pelos capítulos 17 e 18 do livro de Apocalipse por seus pecados econômicos e por sua ostentação luxuosa. A “grande Babilônia” apocalíptica foi uma dura crítica à opressão econômica de Roma, cidade cuja prática urbana mais marcante, no primeiro século, era a opulência da burocracia e da elite imperial13.
Babilônia, na Bíblia, exemplifica a cultura urbana voltada contra Deus14. Geerhardus Vos, em sua leitura das profecias de Miqueias a respeito de Jerusalém, assevera que “todo mal está concentrado na Capital. Por conseguinte, no futuro, todas as cidades terão de cessar de existir”15. O texto bíblico, de modo geral, não é tão pessimista em relação às cidades quanto a leitura de Vos faz parecer, mas não deixa de considerar claramente que o mal, além de estar visível e materialmente presente no ambiente urbano, é potencializado pela dinâmica citadina.
De fato, todas as demandas socioeconômicas da modernidade receberam profundidade e amplitude quando transportadas para o contexto urbano. A pobreza, que “sempre esteve conosco”16, teve seus efeitos amplificados nas migrações em massa do campo à cidade ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX. O mesmo poderia ser dito sobre a violência, a doença e a fome. “Por trás da arte, da arquitetura e do esplendor da cidade, existia muito pecado, vício e sofrimento”17. Keller, ao explicar a apresentação que o livro de Gênesis faz da cidade, ressalta que é na cidade onde podemos ver “a luta entre o enorme potencial para o bem e uma profunda tendência para a corrupção e a idolatria”18. Com o pecado, a dor entrou no mundo. Com as cidades, a dor se irradiou para todo o mundo.
3. A redenção e as implicações urbanísticas da doutrina
Deus planeja resolver a grande tensão da cidade no fim dos tempos19. Keller expande esse pensamento:
Começando com os profetas do Antigo Testamento, o mundo redimido por Deus no futuro é retratado como uma cidade. Em Apocalipse 21 e 22, quando os planos criadores e redentores de Deus são totalmente conquistados, vemos que o resultado é mesmo uma cidade, com muros, portões e ruas. De algumas formas, essa cidade não é parecida com as cidades de hoje; é mais uma “cidade-jardim” que equilibra perfeitamente os benefícios gloriosos da densidade e da diversidade humanas com a beleza e a calma da natureza. O antigo inimigo da cidade de Deus, a Babilônia, é finalmente derrotado, e o povo de Deus floresce em paz e produtividade20.
Como se vê, a promessa bíblica não é uma espécie de retorno ao Jardim, mas a consumação do projeto cujo início foi no Jardim, mas que culminaria na cidade vista em Apocalipse 2121. Desse modo, considerando que o projeto cósmico revelado no texto bíblico sintetiza a restauração da criação em uma cidade, compreender que a igreja local tem o papel de encenar os aspectos restaurativos da ordem urbana, tendo como roteiro a promessa da Cidade Santa, cujo Arquiteto (e por que não, Urbanista?) é o próprio Deus, deve nos servir como direção para viver adequadamente nesta era urbana. A doutrina, enquanto ferramenta cognitiva e imaginativa, pode moldar não apenas a vida da igreja, mas a vida da cidade pela encenação adequada da igreja.
É claro que “nossa cidade está nos céus”22, mas enquanto Deus não “completa sua obra”23, somos como “estrangeiros residentes”24, “peregrinos” para quem o conteúdo da “Carta aos Exilados” do profeta Jeremias25 ainda gera profundas repercussões. Citando Heidegger, Vanhoozer diz que “somos jogados na existência” e que “simplesmente nos encontramos em um mundo”26. Contudo, mais preciso seria dizer que somos jogados na cidade e é na vida urbana que podemos exercer plenamente o testemunho público exigido pelo Evangelho. É nesse sentido que a igreja pode buscar a “prosperidade da cidade”27, adotando atos e discursos urbanísticos cristocêntricos.
Vanhoozer também ensina que a doutrina cristã “responde as questões culturais e espirituais empregando o evangelho para lidar com as questões mais persistentes da vida e enfrentar as várias crises da vida real”28. Nesse sentido, algo que só a igreja pode dizer e fazer na era das cidades é apontar a necessidade de um urbanismo voltado para a glorificação de Deus pela restauração da Sua imagem no ser humano, pois as condições “culturais e espirituais” materializam-se na “condição urbana”, de modo que a questão urbana é a maior crise da vida real, pois ao ser humano é exigido que decida espiritualmente em qual cidade viver (na cidade de Deus ou na cidade dos homens) e, culturalmente, como viver na cidade terrena.
Isso lembra que “o caminho cristão é dramático” e a finalidade da doutrina é “garantir que aqueles que levam o nome de Cristo andem no caminho de Cristo”29. Andar no caminho de Cristo implica buscar a restauração da cidade temporal à luz da Cidade Eterna. Assim como “Cristo vive em mim”30 comunica um desempenho comunitário orientado pela vida e obra do Filho, animado pelo Espírito, na busca da vontade do Pai, a “Cidade Santa que desce do céu” deveria comunicar uma organização urbana orientada pela missão da Trindade no projeto cósmico.
4. Conclusão
A cidade moderna é um palco onde os atores têm sido dirigidos por gnosticismos em conflito, mas igualmente idolátricos e, portanto, opositores do Deus revelado no cânon. Por este motivo, o ambiente urbano é o lócus próprio para o exercício da sabedoria, não havendo contexto mais apropriado ou dinâmica mais desafiadora à encenação inspirada da competência teológica da igreja.
A teologia orientada para a sabedoria consiste, basicamente, em um clamor por um urbanismo restaurado e por uma urbanidade redimida, porque a “sabedoria grita nas ruas, levanta a voz na praça pública, proclama nas avenidas e anuncia em frente à porta da cidade”31. A sabedoria, em última análise, é exercida, principalmente, no contexto urbano.
Se a função pastoral da teologia é ajudar as pessoas a deleitar-se em Deus e glorificá-lo, não há contexto mais adequado do que o urbano para que esse papel seja encenado, porque, quando o texto bíblico quis oferecer uma imagem de máximo deleite em Deus e de glorificação absoluta do seu nome, o fez demonstrando e prometendo a vinda de uma cidade onde as riquezas culturais da criação estão disponíveis a todos, onde há paz e segurança e onde o encontro com Deus é pleno e, portanto, “não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor”32.
1 SARAIVA, Alex. População Mundial Será 68% Urbana até 2050. 2023. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/188520-onu-habitat-popula%C3%A7%C3%A3o-mundial-ser%C3%A1-68-urbana-at%C3%A9-2050. Acesso em: 03 fev. 2024.
2 VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. São Paulo: Vida Nova, 2016. Daniel de Oliveira, p. 32.
3 Ibid., p. 12.
4 CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã. Tradução. 4. ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2006. v. 1, p. 143.
5 BÍBLIA, Hebreus 11:10.
6 A expressão “civilização” tem origem no latim “civitas”, que significa cidade ou comunidade política.
7 ROSE, Jonathan F. P. A cidade em harmonia: o que a ciência moderna, civilizações antigas e a natureza humana nos ensinam sobre o futuro da vida. Porto Alegre: Bookman, 2019. 463 p. Tradução: Ronald Saraiva de Menezes.
8 KELLER, Timothy. Igreja centrada: desenvolvendo em sua cidade um ministério equilibrado e centrado no evangelho. Tradução: Eulália Pacheco Kregness. São Paulo: Vida Nova, 2014. 464 p.
9 Ibid., p. 163.
10 MENDES, Marcos. A Cidade: um espelho da grande babel social e seus desafios. In: SILVA, Leandro (org.). Igreja e Cidade: vocação e missão. Viçosa: Ultimato, 2020. p. 9-22.
11 GLAESER, Edward L. Os centros urbanos, A maior invenção da humanidade: como as cidades nos tornam mais ricos, inteligentes, saudáveis e felizes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. 333 p.
12 MENDES op. cit., p. 14.
13 OSBORN, Grant R. Apocalipse: comentário exegético. São Paulo: Vida Nova, 2014. 999 p.
14 KELLER op. cit., p. 168.
15 VOS, Geerhardus. Teologia bíblica: Antigo e Novo testamentos. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2019. 496 p.
16 BÍBLIA, João 12:8
17 MCCONNELL, Mez. Igreja em lugares difíceis: como a igreja local traz vida ao pobre e necessitado. Tradução. São José dos Campos: Fiel, 2016, p. 93.
18 KELLER op. cit., p. 167.
19 Ibid., p. 175.
20 Ibid., p. 180.
21 CONN, Harvie. Christ and the City: biblical themes for building urban theology models. In: GREENWAY, Roger (org.). Discipling the City. Grand Rapids: Baker, 1979. p. 222-286.
22 BÍBLIA, Filipenses 3:20.
23 BÍBLIA, Filipenses 1:6.
24 BÍBLIA, I Pedro 2:11.
25 BÍBLIA, Jeremias 29.
26 VANHOOZER op. cit., p. 16.
27 BÍBLIA, Jeremias 29:7.
28 VANHOOZER op. cit., p. 18.
29 Ibid., p. 32.
30 BÍBLIA, Gálatas.
31 BÍBLIA, Provérbios 1:20-21.
32 BÍBLIA, Apocalipse 21:4.
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Referências bibliográficas
CONN, Harvie. Christ and the City: biblical themes for building urban theology models. In: GREENWAY, Roger (org.). Discipling the City. Grand Rapids: Baker, 1979. p. 222-286.
GLAESER, Edward L. Os centros urbanos, a maior invenção da humanidade: como as cidades nos tornam mais ricos, inteligentes, saudáveis e felizes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. 333 p.
KELLER, Timothy. Igreja centrada: desenvolvendo em sua cidade um ministério equilibrado e centrado no evangelho. Eulilia Pacheco Kregness. São Paulo: Vida Nova, 2014. 464 p.
MCCONNELL, Mez. Igreja em lugares difíceis: como a igreja local traz vida ao pobre e necessitado. São José dos Campos: Fiel, 2016. 237 p.
MENDES, Marcos. A Cidade: um espelho da grande babel social e seus desafios. In: SILVA, Leandro (org.). Igreja e Cidade: vocação e missão. Viçosa: Ultimato, 2020. p. 9-22.
OSBORN, Grant R. Apocalipse: comentário exegético. São Paulo: Vida Nova, 2014. 999 p.
ROSE, Jonathan F. P. A cidade em harmonia: o que a ciência moderna, civilizações antigas e a natureza humana nos ensinam sobre o futuro da vida. Tradução: Ronald Saraiva de Menezes. Porto Alegre: Bookman, 2019. 463 p.
SARAIVA, Alex. População Mundial Será 68% Urbana até 2050. 2023. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/188520-onu-habitat-popula%C3%A7%C3%A3o-mundial-ser%C3%A1-68-urbana-at%C3%A9-2050. Acesso em: 03 fev. 2024.
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