Escrito por Marcello Lira Doudement, estudante do Programa de Tutoria – Turma Essencial 2021
INTRODUÇÃO
“Religião e política não se misturam”. Essa é a opinião majoritária das sociedades ocidentais pós-cristãs. De maneira geral, acredita-se que a associação entre as duas causa males à sociedade. A realidade nos mostra que, apesar dessa crença, muitos países possuem forte participação de entidades religiosas na política, como é o caso do Brasil. Além disso, muitos cristãos se sentem desconfortáveis sobre a participação de sua religião na política e preferem assumir que a religião é assunto privativo de cada cidadão e, portanto, não deve ser expresso no debate público e nem ser usado para embasar decisões públicas. Neste artigo pretende-se discutir a relação entre religião e política a partir de duas vertentes teóricas antagônicas, a saber: o liberalismo político, que é a cosmovisão hegemônica (nesse debate), e a cosmovisão bíblico-cristã. Primeiramente, vamos lidar com o liberalismo político e apresentar como essa vertente teórica prescreve a relação entre religião e política. Posteriormente apresentaremos a posição bíblica sobre o assunto. Por fim, apontaremos o porquê cristãos não podem ser liberais (neste assunto), pois a Bíblia apresenta um modelo de interação entre religião e política em oposição ao liberalismo.
1. LIBERALISMO POLÍTICO: QUEM REINA NO ESPAÇO PÚBLICO É A RAZÃO
O liberalismo político no seu modelo clássico surge no século XVII como um modelo de fazer política e de Estado contrário às forças políticas da Igreja Católica e contra o absolutismo estatal. O principal modelo de Estado até aquele momento afirmava a autoridade do Soberano sobre seus súditos, dando ao Estado legitimidade para interferir em muitas áreas da vida dos cidadãos. Em muitos locais também havia forte influência e legitimidade da autoridade da Igreja Católica para intervir na vida dos cidadãos. Com a Reforma Protestante, o poder da Igreja Católica foi questionado e houve um rompimento e uma crescente desconfiança sobre a legitimidade da Igreja atuar no poder secular, isto é, estabelecendo regras de justiça pública. Paralelamente a isso, crescia o movimento do Renascimento cuja principal marca era a apreciação do mundo natural, em oposição ao mundo espiritual, ou seja, o objeto de atenção eram as pessoas (vida social) e a natureza no aqui e agora¹.
Desse modo, o poder da Igreja Católica e do Estado absoluto começaram a ruir. Surge, então, o Iluminismo, um movimento filosófico comprometido com a liberdade humana e os direitos individuais. O que caracteriza esse movimento “é a fé na razão humana de compreender nossa verdadeira natureza e a natureza de nossas circunstâncias” (SHAPIRO, 2006, p. 9). O liberalismo político, uma vertente do iluminismo, se compromete então a buscar a liberdade do indivíduo. Ele crê que o indivíduo possui uma razão autônoma, isto é, a capacidade racional de decidir o que é melhor para si, e possui direitos individuais. Como alcançar a liberdade individual? Essa era a principal pergunta. O liberalismo defende três princípios básicos: 1) é preciso limitar a atuação do Estado: ele não pode fazer o que quer, deve fazer o que a lei disser; 2) o Estado deve ser neutro: para isto é preciso retirar a religião da atuação estatal. A religião é importante para a vida privada, mas não para o espaço público. 3) o que deve guiar a justiça pública é a razão: não são textos sagrados, não é a fé, não é a revelação. A principal característica da razão é que ela é neutra e só ela é capaz de discernir a justiça pública.
Portanto, para se alcançar a liberdade humana, que é o valor fundamental a ser perseguido numa sociedade, é preciso separar: razão-fé, Estado-Igreja, público-privado, secular-sagrado. Esse foi o dualismo criado pelo liberalismo político. De um lado, tem-se o Estado para tratar de coisas públicas e seculares cuja legitimidade das decisões se baseiam na razão. Do outro lado, tem-se a Igreja para tratar de coisas privadas e sagradas cuja legitimidade das decisões se baseiam na fé.
Com relação à discussão sobre religião e política, o liberalismo defende a retirada da religião do espaço público por dois motivos principais: i) para tornar o Estado neutro/imparcial e ii) porque ela é irrelevante para as decisões públicas, uma vez que não se baseia na razão e sim na fé. O homem liberal é um homem dual. Ele é um na política e outro na igreja.
2. COSMOVISÃO BÍBLICA: QUEM REINA SOBRE TODOS OS ESPAÇOS É JESUS CRISTO
Uma das principais diferenças entre o liberalismo político e a cosmovisão cristã está na concepção de humanidade. As Escrituras nos afirmam que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1:26-28) e tudo que foi feito é direcionado para a glória de Cristo, especialmente, o ser humano (Ef 1:10). O homem é, portanto, essencialmente religioso. A teologia adotou o conceito de cosmovisão para expressar melhor essa ideia. Todo ser humano possui uma cosmovisão, isto é, lê a realidade a partir de algumas lentes. O melhor aspecto do conceito de cosmovisão é a ideia de que esta é um compromisso de fé do coração. O coração na concepção bíblica é o “âmago religioso de nosso ser” (GOHEEN e BARTHOLOMEW, 2016, p. 53). Isso significa que o homem é necessariamente religioso e não pode não ser. Significa também que ele possui fé (confiança) e não pode não possuí-la. “Quando homens e mulheres estão afastados de Deus, não deixam de ser religiosos; em vez disso, colocam sua lealdade religiosa em outro lugar, em algum aspecto da criação” (Idem, p. 82). Dessa forma, a pergunta não é se o homem possui ou não fé, mas sim em quem ou o que ele a deposita. Não se ele possui ou não religião, mas qual religião ele possui². O único dualismo que existe na Escritura é se a pessoa tem fé em Cristo ou em outro deus. Isso está explicitado claramente nas Escrituras: no primeiro mandamento (Ex 20:3) em que Yahweh diz para não ter outros deuses além dele, aqui não há qualquer indicação de neutralidade religiosa. O discurso de Jesus sobre servir a Deus ou às riquezas (Mt 6:24) também demonstra que não há neutralidade espiritual. Por fim, o dualismo apresentado por Paulo entre o escravo da justiça e o escravo do pecado (Rm 6), também indica a mesma conclusão anterior.
Além disso, a Escritura é muito clara em afirmar que Deus é rei sobre todas as coisas. Vale frisar aqui as passagens que falam claramente sobre a soberania de Deus sobre o Estado e a política. Romanos 13:1-7 temos a afirmação de que o Estado e as autoridades são servos de Deus. Em Salmos 2:10-11, o autor apresenta a rebelião dos reis da terra e dos governos que se levantam contra o Ungido de Deus (Jesus Cristo) e conclama “Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos instruir, juízes da terra. Servi ao Senhor com temor, e alegrai-vos com tremor”. E vale ressaltar também o Salmo 22:27-28, em que Davi afirma: “Os confins da terra se lembrarão do Senhor e a ele se converterão; diante dele se prostrarão todas as famílias das nações. Pois do Senhor é o reino, é ele quem governa as nações”. Nessa passagem o termo prostrar (ou curvar-se) tem o sentido religioso, pois as pessoas se converterão, e o sentido político, pois as pessoas se prostrarão porque Ele é o Rei.
3. EM DIREÇÃO A UMA POLÍTICA CRISTÃ
Portanto, a revelação bíblica nos indica que o ser humano é inevitavelmente religioso e por isso tudo que ele faz possui uma base religiosa – ainda que o sujeito não tenha consciência disso. Ou seja, a atuação política e as decisões públicas são baseadas em alguma concepção religiosa, o que nos faz repensar a ideia de laicidade do Estado. A laicidade deve ser entendida como uma separação institucional e jurisdicional do Estado e da Igreja, porém é impossível separar a religião da política. Ambas são diferentes entre si, mas inseparáveis.
Além disso, a revelação bíblica não faz a separação entre público e privado da mesma forma que o liberalismo. Não há dúvidas de que essa separação produziu limites ao Estado, o que foi algo excelente para construção de maior liberdade aos cidadãos. A liberdade trazida pelo liberalismo foi em muitos casos uma benção de Cristo à nós. Porém, o maior erro do liberalismo é não reconhecer o senhorio de Cristo sobre todas as coisas, especialmente sobre o espaço público e as decisões políticas. O segundo maior erro foi crer que a neutralidade religiosa é possível.
Portanto, cristãos não devem se sentir desconfortáveis em defender a moralidade cristã nas decisões políticas, Cristo é Rei sobre tudo, inclusive o Estado. Ao não reconhecermos o senhorio de Cristo cometemos o mesmo pecado do liberalismo e todo pecado tem origem religiosa, pois consiste fundamentalmente em se curvar perante um deus e rei que não é Cristo.
O evangelho de Cristo é uma notícia a ser contada para todas as pessoas e o senhorio de Cristo deve ser reconhecido por todos. Portanto, para nós, cristãos, é impossível defendermos que a religião é apenas de âmbito privado. Pelo contrário, o evangelho é uma verdade pública, pois é um anúncio da chegada do reino de Deus sobre todos os espaços, tanto privado quanto público.
Concordamos com Spykman de que:
“Nosso chamado é para levar a ordem de nossa vida no mundo de Deus seja no púlpito ou na política, em nossas salas de aula ou em nosso mundo dos negócios, a estar em conformidade com a boa ordem de Deus para nossa vida em seu mundo” (SPYKMAN apud GOHEEN e BARTHOLOMEW, 2016, p. 71).
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¹ Goheen e Bartholomew (2016) encontram em Tomás de Aquino o impulso para um novo interesse pelo mundo natural, por meio de sua diferenciação entre graça e natureza, entre espiritual e natural. Apesar de o mundo natural ser inferior em importância ao espiritual, “Aquino afirmou a virtude do nosso mundo presente, do corpo, da vida social e cultural e da razão empírica como raramente havia sido afirmada nos séculos anteriores” (Idem, p. 126).
² É possível perceber aqui que os surveys realizados por institutos de pesquisa em ciências humanas estão todos equivocados na forma de estudar e perguntar sobre religião, uma vez que ateus e outros são tidos como não-religiosos. Isso é fruto de uma ciência que não se baseia na fé cristã, mas sim em compromissos religiosos que creem na mitologia dualista do liberalismo, por exemplo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GOHEEN, Michael W.; BARTHOLOMEW, Craig G. Introdução à cosmovisão cristã: vivendo na intersecção entre a visão bíblica e contemporânea. Trad. Marcio L. Redondo São Paulo: Vida Nova, 2016. 272 p.
KOYZIS, David T. Visões & Ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias contemporâneas. Trad. Lucas G. Freire. São Paulo: Vida Nova, 2014. 352 p.
LEEMAN, Jonathan. As chaves do reino: a natureza política da Igreja como embaixada de Cristo. Trad. Lucília Marques. São Paulo: Vida Nova, 2021. 457 p. [recurso digital].
SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política. Trad. Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 327 p.
WALSH, Brian J.; MIDDLETON, J. Richard. A visão transformadora: moldando uma cosmovisão cristã. Trad. Valdeci Santos. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. 189 p.