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O início da filosofia grega e sua influência na arte

Ensaio escrito por Suelen Santos de Oliveira, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024


Introdução

A arte é um dos pontos indispensáveis para a compreensão da história e da filosofia. A história de uma época e os costumes de um povo são expressos e posteriormente conhecidos pela sua produção artística. Nesse sentido, podemos dizer que a arte produz o objeto do saber. Segundo Reale e Antiseri: “A grande arte visa alcançar, de forma mítica e fantástica, ou seja, mediante a intuição e a imaginação, objetivos que são próprios também a filosofia” (REALE; ANTISERI, 2017, p. 13).

Diante disso, neste ensaio pretendo traçar o surgimento da ideia de belo, a partir dos gregos, fazendo um contraponto com a cosmovisão cristã bíblica da arte, percorrendo toda a história da filosofia antiga, desde o seu surgimento no Ocidente. O objetivo deste trabalho é explicar a construção do pensamento ocidental sobre o belo e como isto impacta o entendimento contemporâneo sobre o assunto para, assim, fazer uma leitura bíblica a respeito, a fim de desmistificar possíveis equívocos. 

O surgimento do conceito de arte na filosofia grega

A filosofia grega passa pelos poemas de Homero1 e o conceito de arte e estética2 vai se desdobrando em outros pensadores. A partir daí, assim como em outras culturas, a arte tem uma estreita ligação com o sagrado. Por isso, seus poemas exerceram na Grécia uma relação de influência análoga àquela que a Bíblia exerceu sobre os judeus. Nos desdobramentos do pensamento grego, a superação da fantasia e do mito deu lugar à razão. O poema aplainou o caminho à posterior cosmologia filosófica, que buscou com a razão, e não mais com a fantasia, o “princípio primeiro” do qual tudo foi gerado (REALE; ANTISERI, 2017, p. 15).

A este respeito, dois sofistas tiveram um papel importante para o pensamento sobre arte no período antigo, são eles Protágoras e Górgias. Neles, a ideia de arte surge envolta ao surgimento do relativismo e de uma espécie de niilismo, como expressão de individualismo e subjetivismo. A ideia central do pensamento de Protágoras3 é que o homem é a medida de todas as coisas. Este axioma foi considerado a máxima do relativismo ocidental e significa que a norma de juízo sobre as coisas é o próprio homem, ou seja, o que ele sente ou pensa a respeito das coisas é a verdade sobre ela. Para Protágoras, portanto, tudo é relativo: não há um “verdadeiro” absoluto e sequer há valores morais absolutos (“bens” absolutos). (REALE; ANTISERI, 2017, p. 75).

Enquanto Protágoras parte do relativismo, Górgias parte do niilismo. Para ele, não existe ser, ou seja, nada existe. Seus escritos são uma espécie de manifesto do niilismo ocidental. Segundo ele, não é possível explicar um pensamento ou sentimento através de palavras; logo, o ser das coisas não pode ser manifesto de forma explicita, pois o ser não existe. Por exemplo, a cor vermelha pode ser vista pelos olhos e sentida por quem a vê, mas não pode ser explicada em forma de verdade absoluta sobre ela.

Nesse ponto, resta somente a “opinião” (doxa), mas esta também é negada por ser a menos confiável. Por fim, ele percorre a via da razão, que se limita a iluminar os fatos, circunstâncias e situações da vida, mas que também não pode ser portadora de uma verdade absoluta; logo, tudo é falso. O pensamento de Górgias4 tem uma grande importância no conceito ocidental sobre a arte. Ele foi o primeiro filósofo que procurou teorizar o que hoje equivale à “estética” da palavra e à essência da poesia, que ele definiu como “produção de sofridos sentimentos”. Segundo ele, a arte é moção de sentimentos, que não visa interesses práticos, mas, sim, ao engano poético.

Nesse sentido, a arte produz o engano com sua capacidade criativa de produzir ilusões poéticas, e aquele que é enganado se torna capaz de captar a mensagem dessa criatividade. Além disso: “Tanto Platão como Aristóteles servir-se-ão desses pensamentos; o primeiro para negar a validade da arte, o segundo, pelo contrário, para descobrir a potencialidade catártica, purificadora, do sentimento poético, como veremos” (REALE; ANTISERI, 2017, p. 77).

Os poetas são expulsos por Platão

Há três conceitos inseparáveis no pensamento de Platão: a verdade, o belo e o bom. O belo não se encontra no plano sensível, mas no mundo das Ideias, onde tudo é perfeito. O mundo das Ideias é um lugar de transcendência metafísica, onde só é possível chegar pelo uso da razão. Platão5 avalia a arte pela medida em que essa se aproxima da verdade, se essa torna o homem bom e se tem valor educativo. E a resposta é negativa, pois, para Platão, a arte não vela pelo verdadeiro e não é uma forma de conhecimento. Pelo contrário, ela corrompe o homem, pois é mentirosa e se dirige às partes não racionais do homem, que são inferiores REALE; ANTISERI, 2017, n.p.).

A arte, por esse ponto de vista, é, em todas as suas manifestações, uma mimeses, que significa “imitação”, e como a arte imita aquilo que está no plano sensível e sujeita ao sentimento, é, portanto, a imitação da imitação e está três vezes distante da verdade. A arte reaparece como um engano, inútil e irracional, mas ao contrário de Górgias, Platão tem interesse na verdade absoluta. Segundo ele, a verdade só pode ser alcançada por meio da razão no mundo das ideias e, logo que uma ideia atinge o mundo sensível, ela se torna objeto imperfeito.

Se formos relacionar este conceito ao fato de Jesus ter vindo à terra como homem6, Ele seria a “ideia” de Deus manifestado no plano sensível, e, logo, uma cópia imperfeita. Nesse ponto, há uma incompatibilidade com a visão cristã que acredita que Jesus Cristo é Deus, pois sua manifestação no plano sensível não corrompe o seu valor. Assim, essa justificativa platônica que subjuga o fazer artístico não se aplica a uma cosmovisão cristã bíblica. Platão considera a arte como um afastamento da verdade e por esse motivo ele expulsa os poetas da cidade idealizada por ele no livro III de A República7. No mesmo livro ele considera a utilidade da arte a fim de que seu papel social sirva para ensinar o bem e não para mero entretenimento. Este é um pensamento que permanece na sociedade e na igreja, que marginaliza o artista e questiona a sua função social.

A poética aristotélica

Segundo Aristóteles8, o objeto do desejo é aquilo que é belo e bom; o homem é movido pelo desejo atrelado ao belo. Esse estreitamento entre os conceitos de belo e bom se problematiza à medida que se define o que é o belo, pois um padrão de beleza pode definir aquilo que é bom ou mal e ser o objeto do desejo humano. Sobre isso, o livro de Gênesis 3:6 diz: “E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela”. Nos versículos anteriores a este, Eva havia sido instruída por Deus a não comer do fruto desta árvore, mas foi enganada pelo discurso contrário e seu desejo se voltou para o que parecia belo e bom. 

Neste exemplo bíblico, há um engano pelos sentidos para atrair o objeto do desejo. Logo, em uma cosmovisão bíblica, o bom não está ligado ao belo, mas à vontade de Deus, pois o belo pode ser facilmente moldado pelo discurso, pelas tendências e pela cultura. Outro exemplo no mesmo livro de Gênesis é quando Deus vê que o que Ele criou é bom. É claro que a criação de Deus é bela e nos serve de inspiração, mas o conceito de bom nessa percepção vem do cumprimento da vontade Deus, que é boa perfeita e agradável (Romanos 8:28). 

Aristóteles, diferente de Platão, dá mais credibilidade ao que é sensível e perceptível. A arte, para além da experiência, procura tocar o conhecimento do porquê. Por isso, as artes são uma forma de conhecimento e  pertencem ao quadro geral do saber. Nesse sentido, ele não reprova a mimeses , mas a mimeses só valeria a pena se estivesse ligada com o bem, o belo e a verdade (PAVINI, 2021, p. 28). Há, portanto, as artes produzidas para um fim prático e outras que não têm uma finalidade pragmática. Estas últimas são as chamadas “belas artes”, que Aristóteles examina na Poética

Nesta concepção, pode-se perceber a sútil divisão entre o artista e o artesão, em que o artesão é o que produz a obra mecanicamente para uma utilidade precisa, enquanto o artista não se ocupa da utilidade da obra, mas da reflexão ou sentimento que induz à reflexão. Essa é uma visão classista e preconceituosa que exalta a razão em detrimento da prática, principalmente pela definição de “belas artes”, que atribui a esta maior virtude. Para Aristóteles, a poesia mimética pode completar aquilo que não está na natureza e, portanto, imita o que ela tem de mais essencial, a capacidade de criar. Logo, o artista imita a capacidade de criar da natureza e não a natureza em si. Este é um ponto importante que redime a visão marginalizada que Platão atribuiu ao artista e, mais que isso, o aproxima de uma cosmovisão cristã, que considera a capacidade criativa como dom de Deus, porém, a visão aristotélica sobre o propósito da arte diverge do ponto de vista bíblico.

Para Aristóteles, a arte provoca a catarse, uma libertação análoga ao que hoje chamamos de prazer estético. A catarse pela mimese “tem por finalidade não apenas a razão conduzida ao termo, mas também os acontecimentos que suscitam pavor e paixão” (ARISTÓTELES, 2015, p. 1452a). Esse efeito provocado pela arte seria capaz de libertar e até curar as pessoas das suas ilusões. Esse pensamento continua presente no contemporâneo, atribuindo, assim, poderes transcendentais à arte. De fato, a arte pode mudar perspectivas de pensamento e chamar atenção para coisas que não estamos atentos no cotidiano. Contudo, seria esse um poder libertador? 

Conclusão: uma cosmovisão bíblica da arte

A arte está presente na filosofia desde os poemas de Homero e foi conceituada pelos sofistas Protágoras e Górgias em uma configuração de relativismo e niilismo. Em Platão, a arte não é útil para uma sociedade ideal, pois produz engano e se afasta da verdade, enquanto, para Aristóteles, a arte ganha poderes que transcendem o pensamento, provocando a catarse e libertando o homem das suas ilusões.

Finalmente, na Bíblia, é possível perceber um padrão que demonstra a importância da beleza desde a criação do mundo, até a construção do Tabernáculo pelas ordens de Deus sobre seus detalhes e adornos. No livro de Êxodo (31:1-3), Deus chama homens para a ciência de todo o artifício, e os enche do seu Espírito, de sabedoria e de entendimento. Em suma, nas palavras de Francis Schaeffer: “Como cristãos, sabemos por que uma obra de arte tem valor. Primeiro, porque uma obra de arte é uma obra de criatividade, e a criatividade tem valor porque Deus é o criador” (SCHAEFFER, 2010, p. 45).


1 Séculos VII e VI a.C.

2 O termo “estética” surgiu em 1750, com o filósofo alemão Alexander Baumgardeten (1714-1762), como o nome da disciplina que tenta sistematizar racionalmente a diversidade de experiências da beleza na arte. Será usado aqui apenas como definição do padrão de belo no conceito de arte, pois no período antigo ainda não existia o conceito de estética como disciplina filosófica.

3 Entre 491/ 481 a.C.

4 Entre 485/480 a.C.

5 428/427 a.C. a 348-347 a.C.

6 O exemplo é anacrônico, pois o período platônico é anterior ao nascimento de Jesus Cristo, mas será aplicado aqui para fins de ilustração a uma cosmovisão cristã, considerando que o platonismo permanece atualmente tanto no pensamento da sociedade como no da igreja.

7 PLATÃO, 2014, p. 398a-b.

8 384/383 a.C.


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Bibliografia

ANTISERI, Dario; REALE, Giovani. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, vol. 1. São Paulo- SP: Paulus, 2017. 176 p.

ARISTÓTELES. Poética. Trad. Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2015. 232 p.

BÍBLIA. Bíblia Sagrada. Traduzida por João Ferreira de Almeida. Revista e Corrigida. 4. ed. 2009. Barueri- SP.: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013. 864p.

FEITOSA, Charles. Explicando a filosofia com a arte. Rio de Janeiro- RJ: Ediouro, 2004. 199 p.

PAVINI, Renan. Estética e filosofia da arte. Maringá- PR: Unicesumar, 2021. 176 p.

PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. 512 p.

SCHAEFFER, Francis. A arte e a Bíblia. Viçosa- MG: Ultimato, 2010. 80 p.