Artigo escrito por Mariane Hort, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024
Introdução: Deus como protagonista da atividade teológica
Em sua obra O drama da doutrina, Vanhoozer apresenta a abordagem canônico-linguística e traz para a discussão a necessidade que o trabalho teológico tem de identificar a “fala” correta de Deus e o uso que o próprio Deus faz das Escrituras. Nas suas palavras: “O cânon é o meio central pelo qual a palavra indicadora de vida e o Espírito que concede vida são postos em ação na igreja e sobre ela”. (VANHOOZER, 2016, p. 232). Desse modo, O princípio da teologia evangélica está nos atos de fala de Deus, encontrados nas Escrituras, que possuem a norma para a vida prática da igreja. A igreja deve proclamar e praticar o evangelho.
Diante disso, o presente artigo visa abordar o trabalho teológico a partir da premissa de que a teologia é feita na igreja e para a igreja, transmitindo o que Deus falou e faz em Jesus a nosso favor. Sendo assim, a atividade teológica só pode ser caracterizada como tal se deixar Deus ser o protagonista. Tal investigação se dará tendo como suporte metodológico a abordagem canônico-linguística de Kevin Vanhoozer.
1. Abordagem canônico-linguística: localizando a autoridade teológica
Ao longo da história da igreja, a teologia foi influenciada pelo espírito de sua época e lidou com novos desafios para transmitir o evangelho diante das mudanças das diferentes épocas e contextos. Hoje não é diferente. Segundo Vanhoozer: “O desafio para aqueles que falam de Deus e em nome de Deus é identificar o lócus da autoridade teológica” (VANHOOZER, 2016, p. 74).
Nesse sentido, a virada linguístico-cultural no final da modernidade exerceu grande influência sobre a igreja, tendo como ponto de partida os usos da linguagem da comunidade de fé como base para o conhecimento de Deus, ou seja, no uso que a comunidade de fé faz das Escrituras. Assim como outros candidatos, a virada linguístico-cultural é reducionista, um modismo intelectual que tenta relacionar e acomodar as Escrituras à sua proposta teológica. A ênfase está na explicação da fé, não na explicação do texto bíblico: “E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens” (Mt 15.9).
A abordagem canônico-linguística, apesar de se opor à virada linguístico-cultural, encontra nela um ponto de contato no que se refere à linguagem como premissa, porém não é a prática eclesial sua norma, mas o cânon. O próprio Deus usa as Escrituras como norma para se comunicar com o seu povo. O ponto de partida para a teologia, então, são os atos de fala de Deus, que vêm Dele, revelados e inspirados pelo Espírito. Sem isso, nada temos com o Evangelho. É no cânon bíblico que encontramos os parâmetros comunicacionais pronunciados e estabelecidos pelo próprio Deus. Além de ser canônica, a teologia deve também ser católica. Nas suas palavras: “Catolicidade significa a igreja no sentido do povo de Deus como um todo, disperso no espaço, através das culturas e ao longo do tempo” (VANHOOZER, 2016, p. 44).
2. O teólogo no teodrama
Na metáfora da dramaturgia, com referências ao teatro clássico grego, Vanhoozer se refere ao evangelho como um teodrama, ou seja, um teatro no qual Deus é o dramaturgo que escreve o seu roteiro, mas que também interage com a sua criação, fazendo entradas e saídas na história. No drama, falar é agir. “Um drama é um fazer, uma atuação” (VANHOOZER, 2016, p. 53). O roteiro é o próprio cânon, que conserva o princípio sola Scriptura como autoridade suprema, mas também como prática comunicadora do Espírito, para que das Escrituras aprendamos e sejamos participantes. A atuação é a nossa participação como quem encena as falas e as práticas simultaneamente, rompendo com a dicotomia entre teoria e prática, sendo a igreja dirigida pelo texto na missão de transmitir aquilo que vimos e ouvimos, aquilo que Deus estava fazendo em Jesus — o teodrama. No teatro divino, os pastores, que, em uma situação ideal, também são teólogos, têm o papel de dramaturgistas, auxiliando o dramaturgo a comunicar aos os atores o roteiro para uma encenação adequada ao texto.
As referências de imagens para definir o trabalho do pastor ao longo da história ditavam o estilo de seu ministério, imagens que não necessariamente eram boas para desenvolver um trabalho pastoral fiel ao roteiro canônico. Com frequência, o pastor teve sua imagem associada a um cientista, um pregador das multidões, evangelista, terapeuta, gestor e administrador, porém a imagem de dramaturgista proposta pela metáfora do drama situa o pastor como teólogo.
O trabalho do teólogo é tanto interpretar o roteiro (cânon), quanto prepará-lo e apresentá-lo para os atores. O dramaturgista se dirige ao texto e segue para a encenação. Ele entende o texto através da tarefa exegética exercida a partir dos textos bíblicos, em diferentes gêneros literários, que comunicam diversos aspectos e dirigem o leitor, dando as normas de adequação para aqueles que estão em aliança com Deus:
Scientia refere-se em primeiro lugar às disciplinas intelectuais e espirituais que habilitam o intérprete da Bíblia a participar do objeto de estudo do texto. E isso nos traz de volta a importância das práticas canônicas. A teologia como forma de scientia exegética é, em última análise, uma questão de aprendizado intelectual, espiritual, imaginativo e prático das práticas canônicas, da forma escritural com que Deus se faz conhecido (VANHOOZER, 2016, p. 264).
Para além do roteiro, após entender, ele prepara o texto para ensinar a sua prática. O teólogo apresenta quais são as prescrições de Deus para sua igreja, sobre como ela deve viver em resposta ao que Deus fez em Cristo Jesus. Para fugir de encenações repetidas e engessadas, a metáfora de “transposição” é uma boa analogia para entendermos como encenar o teodrama em épocas e contextos diferentes sem alterar a natureza do seu conteúdo.
A transposição dramática, à semelhança de sua contraparte musical, é uma questão de preservar a mesma linha melódica e a configuração harmônica, embora em uma clave diferente, em que a “melodia” é a principal linha de ação, e “harmonia”, o contexto mais amplo que dá à melodia seu significado específico. Resumindo, a tarefa sapiencial da teologia é saber como transpor o drama da redenção para o presente (VANHOOZER, 2016, p. 270).
Portanto, o dramaturgista não compõe um novo roteiro, mas transpõe o teodrama para novas linguagens em gerações e contextos diferentes.
Considerações finais: identidade e autoridade
Em suma, a abordagem canônico-linguística desenvolvida por Kevin J. Vanhoozer identifica a autoridade e a identidade da teologia na força dos atos de fala de Deus contidos nas Escrituras, forma pela qual Deus escolheu se comunicar com seu povo, documento de aliança divino. Sendo assim, a teologia deve se colocar diante da sua Palavra (cânon), comprometida com a correta interpretação para transmitir o evangelho, desenvolvendo uma forma de vida em aliança com Deus. Porque Deus encarnou, na carne de Jesus, o povo de Deus, então, é chamado a encarnar e encenar as verdades do evangelho em diferentes culturas.
Referências bibliográficas
BÍBLIA. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira Almeida. 2ª ed. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônica linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel Oliveira. 1. ed. São Paulo, SP: Editora Vida Nova, 2016. 512 p.
VANHOOZER, Kevin J.; STRACHAN, Owen. O pastor como teólogo público: recuperando uma visão perdida. Tradução: Marcio L. Redondo. 1 ed. São Paulo, SP: Vida Nova, 2016. 256 p.