Escrito por Lucia Medianeira Santos Post, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023
Para mim, para os cineastas a quem cheguei a amar e respeitar, para meus amigos que começaram a fazer filmes quase ao mesmo tempo que eu, o cinema tratava de revelação: revelação estética, emocional e espiritual.
(Martin Scorsese)
O artista não pode esperar (na realidade, ninguém pode) o mundo ser renovado, a crise ser solucionada e os novos princípios culturais serem desenvolvidos. Temos de participar agora.
(H. R. Rookmaaker)
Os seres humanos têm apreço por uma boa história. Desde a infância, narrativas encantam, inspiram e despertam as mais inimagináveis emoções. E assim, com a imagem em movimento, o cinema tem contribuído para isso, desde 1895, quando os irmãos Louis e Auguste Lumière projetaram um filme pela primeira vez, em um café em Paris1.
Este mesmo cinema atraiu e encantou Martin Scorsese, pois ele queria contar histórias, retratar realidades e projetar tudo isso. Para alguns, ele é como as telas de Pollock, uma explosão. Contudo, seria a filmografia de Scorsese uma obra de arte? Sua carreira como cineasta tem produzido alguma estética que se equipara à arte dita por Hans Rookmaaker? Assim, este artigo dedica-se a realizar uma breve análise da obra cinematográfica de Martin Scorsese, recorrendo aos apontamentos de Hans Rookmaaker no campo da estética e, através disso, examinar como a cinematografia do cineasta norte-americano pode dialogar com os cristãos.
O touro indomável
A história do cinema passa por Martin Scorsese. Nascido no Queens, no ano de 1947, o ítalo-americano, de família siciliana, na sua adolescência desejava ser padre, chegando a ingressar um seminário. Expulso deste e sem concluir o sacerdócio, ele se viu captado por outro desejo, contar as suas histórias. Influenciado por cineastas como John Cassavetes, Frederico Fellini e Elia Kazan, Scorsese abraçou o cinema como sua grande paixão e, para ele, o poder das imagens em movimento precisava ser revelado.
Desde o seu longa de estreia, Quem bate à minha porta?, de 1968, seus filmes tornaram-se referência. Sua filmografia passeia entre o drama, o suspense e a comédia, mesclando os gêneros diversas vezes. O diretor constrói seu estilo meticulosamente, desde a escrita do roteiro até as composições imagéticas. Em suma, complexidade e profundidade definem Scorsese2.
Segundo Rookmaarker, os artistas são aqueles que criam poemas, canções, imagens, metáforas — formas que podem tanto expressar o que foi obtido por meio da inspiração, da sabedoria e da direção, quanto passar essas coisas aos outros de forma positiva e incisiva (ROOKMAAKER, 2010, p. 34). Neste sentido, podemos compreender que a obra do ex-seminarista de Nova Iorque tem se comunicado artisticamente de forma genuína e emblemática e, como ele próprio reconhece, tudo se resume à questão da graça. A graça é algo que acontece ao longo da vida. Ela vem quando você não a espera3.
Sua profunda necessidade de contar histórias traduz a linguagem do diretor. A forma como manuseia a câmera comunica com o público; a trilha sonora em harmonia com a fotografia e a direção de arte revelam um dom criativo de perscrutar os personagens e seus roteiros, sejam eles originais ou adaptados. Quando confiados às interpretações das “suas musas”, seus atores favoritos, que acompanham o diretor ao longo da sua filmografia, esses entregam grandes atuações.
Entusiasta por explorar as realidades e todos os territórios do cinema, Scorsese atua como um artífice, extraindo o sublime que considera essencial e primordial para comunicar com os seus espectadores. Nisso, ao tentar entender a mente humana e retratar as pluralidades dos seres humanos, sejam com os muitos personagens caóticos e assombrosos da sua filmografia, seja ao explorar a sua fé, enquanto católico que é, Martin Scorsese nos conta uma história real, a realidade de todos nós.
A carreira do cineasta revela a trajetória de apresentar narrativas cheias de personagens que desvelam muito dos efeitos noéticos e, ainda que essa temática não venha nessa roupagem, podemos fazer essa leitura enquanto cristãos. Acompanhe o que nos apresenta Rookmaaker:
Quando as pessoas abandonam a raiz ou o núcleo da realidade, não apenas teoricamente, mas em seu entendimento e experiência de vida, perdem sua conexão, sua relação com as coisas. O resultado, do qual se fala na filosofia moderna, expresso com tanta intensidade na arte moderna, é alienação: a vida num mundo absurdo, surreal, entre estranhos. Até a realidade da existência das outras pessoas pode tornar-se opressiva, pois me limita. O mundo é uma prisão estranha, sem saída, sem rota de fuga, como descrita na famosa peça de Jean Paul Sartre. A realidade é bizarra, irracional, incompreensível (ROOKMAAKER, 2018, p. 56).
Assim, diante da vida artística de um dos maiores diretores de cinema de todos os tempos e uma emblemática filmografia, podemos dizer que estamos diante de um autor cinematográfico que entrega obras que recriam o real, as realidades e suas humanidades. Embora a obra de Scorsese tenha muito mais a ser extenuada, é sábio reconhecer que suas impressões artísticas são impregnadas de um impulso religioso. Afinal de contas, sua trajetória parece revelar que o cinema é o seu touro indomável e, assim, algo que lhe é sagrado.
Quem bate à nossa porta?
Nascido em Haia, no ano de 1922, Henderik Roelof Rookmaaker, ou Hans, como ficou conhecido, foi um importantíssimo pensador neerlandês, tendo cooperado exaustivamente à ciência das artes. Sua conversão à fé cristã sobreveio em meio ao terror do nazismo. Em 1942, recebeu a Cristo e a fé protestante em um campo de concentração. A história de Hans Rookmaaker é permeada por extensas produções acadêmicas, chegando a atuar na cadeira de História da Arte na Universidade Livre de Amsterdã. O espólio de sua vida faz luz aos nossos dias, afinal, uma parcela da comunidade cristã virou as costas para as artes, ou está por aí com uma leitura bastante alterada do que é o campo estético.
Na sua obra A arte não precisa de justificativa (2010), o autor delineia a relação entre arte, sociedade e o conexo disso, pois a arte tem um lugar complexo na sociedade. Ela cria as imagens significativas pelas quais são expressas coisas importantes e comuns. Por meio da imagem artística, a essência de uma sociedade torna-se uma propriedade e uma realidade comuns (ROOKMAAKER, 2010, p. 52).
No entanto, por vezes a comunidade evangélica cristã acaba recorrendo à alternativa de fechar a porta para o campo das artes. No Brasil, onde a fé evangélica oriunda de um berço estadunidense e onde um número expressivo de igrejas tem sua teologia radicada nos movimentos carismáticos, a arte, a estética e as camadas artísticas parecem caber a uma sociedade a qual o cristão não deseja pertencer.
Por isso, diante dos aspectos da obra do pensador neerlandês, em que a arte se configura como uma estrutura esteticamente qualificada, torna-se imperativo desconstruir a apreciação da arte de forma ingênua. O cinema, como mero entretenimento, incide num reducionismo estético, intelectual e cultural, pois os aspectos estéticos de um filme não devem ser avaliados por uma bilheteria milionária.
Desta forma, o que se aprende com a cinematografia de Scorsese é que o cinema é real. Este recria realidades, muitas delas desesperadamente cheias de significados correlacionados aos efeitos da história real que conhecemos a partir de Gênesis 3. Por isso, de alguma forma a realidade em cartaz do cineasta dialoga com a comunidade cristã. Recorremos mais uma vez ao professor Hans:
Sabemos como os filmes influenciam profundamente a forma como as pessoas vivem e pensam. Seus heróis, suas visões de mundo, seus sonhos e assim por diante. Os filmes geralmente têm um papel importante na formação de uma nova moda, que certamente é mais do que a simples escolha de cores ou do comprimento da saia; ela representa a maneira que nos movemos e até sentimos (ROOKMAAKER, 2010, p. 53).
Neste sentido, cristãos não devem desdenhar da participação na cultura (ROOKMAAKER, 2018, p. 40). Antes, eles são corregentes com Deus do movimento artístico no mundo, não apenas de forma empírica, mas com subsídios e abordagens normativas, enriquecendo este mundo com uma estética qualificada, harmônica, florescendo a cultura e a sociedade.
Ademais, para cristãos, fazer uma dualidade na vida entre, de um lado, sua espiritualidade e fé e, do outro, a atividade “neutra”, mais ou menos cristã, da experiência diária, é empobrecer a existência. Nega a soberania de Deus sobre grande parte da vida da pessoa e cria uma dicotomia perigosa para nossa espiritualidade (ROOKMAAKER, 2018, p. 41).
Neste processo, quem bate à nossa porta é o professor Rookmaaker e seus apontamentos desta relação entre o cristão e a estética, demonstrando como esse mote é legítimo e carece de todo o apreço da igreja evangélica, piedosa e redentiva. Uma igreja que ama o Seu Salvador precisa empenhar-se pelas artes e contribuir para que o campo estético aponte um caráter digno e criativo como somente Aquele que é verdadeiro e unicamente belo, no completo significado de beleza, pode revelar.
Neste caminho, compreendemos que a filmografia do diretor de Nova Iorque tem seus percalços. Sua trajetória não está isenta de erros, caminhos tortuosos, escolhas obscuras. Sua temática não agrada de forma unânime; alguns dormem enquanto encaram seus longas-metragens, conhecidamente longos. Entretanto, a obra cinematográfica de Martin Scorsese, quando observada a partir dos aspectos de Rookmaaker, revela seriedade estética criativa e natureza qualificada. Evoca nossos pecados na perspectiva de personagens tão próximos à nossa natureza pecaminosa e, por fim, atrai o cristão à sala de cinema, pois a majestosa obra de Scorsese se comunica conosco, retratando a estética da nossa humanidade.
Considerações finais
Com isso, e como fora apontado neste artigo, compreende-se que as perspectivas sobre arte de Rookmaaker são para todos, essenciais para os cristãos e para os nossos dias. O autor, no conjunto de sua vida acadêmica e literária, como profundo estudioso do tema estético, dissipa as trevas da ignorância artística. Para além, nos leva a refletir como temos consumido e participado deste movimento.
Desta forma, Hans Rookmaaker nos auxilia a apreciar e analisar a vasta filmografia de Martin Scorsese, nos instruindo a interpretar todas as realidades que encontramos nos filmes do diretor. Como filhos Deus, podemos encontrar elevada beleza na obra desses homens e aprender com eles que a graça visita em todo tempo.
1 História do cinema: confira este guia e se destaque! Academia Internacional de Cinema. Disponível em: <https://www.aicinema.com.br/historia-do-cinema-confira-este-guia-e-se-destaque/#:~:text=E%20o%20in%C3%ADcio%20do%20cinema,em%20um%20caf%C3%A9%20em%20Paris. >. Acesso em: 31 de out de 2023.
2 SANTOS, Alyson. Martin Scorsese. Todo Estudo. Disponível em: <https://www.todoestudo.com.br/artes/martin-scorsese >. Acesso em: 31 de out de 2023.
3 SBARDELOTTO, Moisés. Entrevista com Martin Scorsese. Instituto Humanitas Unisinos. Disponível em: < https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/563274-eu-ex-coroinha-em-nova-york-e-diretor-de-um-filme-esperado-pela-vida-inteira-entrevista-com-martin-scorsese >. Acesso em: 31 de out de 2023.
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Referências Bibliográficas
História do cinema: confira este guia e se destaque! Academia Internacional de Cinema. Disponível em:
<https://www.aicinema.com.br/historia-do-cinema-confira-este-guia-e-se-destaque/#:~:text=E%20o%20in%C3%ADcio%20do%20cinema,em%20um%20caf%C3%A9%20em%20Paris. >. Acesso em: 31 de out de 2023.
ROOKMAAKER, H. R. A arte não precisa de justificativa. Tradução: Fernando Guarany Jr. Viçosa, MG: Ultimato, 2010, 80 p.
ROOKMAAKER, Hans R. O dom criativo. Tradução: William Campos da Cruz. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018, 216 p.
SANTOS, Alyson. Martin Scorsese. Todo Estudo. Disponível em: <https://www.todoestudo.com.br/artes/martin-scorsese >. Acesso em: 31 de out de 2023.
SBARDELOTTO, Moisés. Entrevista com Martin Scorsese. Instituto Humanitas Unisinos. Disponível em: < https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/563274-eu-ex-coroinha-em-nova-york-e-diretor-de-um-filme-esperado-pela-vida-inteira-entrevista-com-martin-scorsese >. Acesso em: 31 de out de 2023.