Há um bom tempo venho refletindo, lendo e ouvindo de forma mais intencional muitas coisas a respeito das transformações socioculturais que temos vivido, principalmente no que tange às questões envolvendo o uso da tecnologia e a conectividade.
Longe de qualquer oportunismo barato, esse texto é uma reflexão sincera. Uma tentativa de discernir nosso tempo, nossos (novos) desafios e algumas das consequências desse período que estamos vivendo.
Sem dúvida alguma, a pandemia de 2020 é algo assustador. Trouxe situações pelas quais minha geração, por exemplo, nunca experimentou. No máximo, tivemos alguma projeção a respeito ao assistir determinado filme ou ler uma ficção científica. Fora disso, não cogitávamos algo assim.
Mas ela aconteceu, é real. Trouxe consigo dor, sofrimento, medo, angústia, preocupação. Negar isso é estar alheio ao que se passa no mundo, no nosso país, nas nossas cidades. Não pretendo minimizar isso, e sim pensar no que virá após.
O vácuo tecnocultural
Carlos Nepomuceno, doutor em Ciência da Informação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), aponta um termo interessante para entendermos o que, na minha opinião, estamos passando: vácuo tecnocultural.
“O vácuo tecnocultral é o espaço que se abre entre o que não se podia e o que se pode passar a fazer com a tecnocultura, a partir da massificação de novas tecnologias.”
Isso significa que, quando uma nova tecnologia se faz presente, ela alarga nossas barreiras, as fazem expansíveis, gerando um vácuo entre o que fazemos e o que podemos fazer. Agora temos a possibilidade experimentar e avançar em direções que outrora não eram possíveis. Obviamente que isso não é um processo rápido, e nem que acontece da noite para o dia. Mas, gradualmente, começamos a preencher o vácuo até a nova fronteira que foi criada ser alcançada.
Esse processo todo pode ser amplificado quando estamos diante de uma macro-crise, tal qual a que estamos passando, como o próprio autor também aponta:
Macro-crises demandam inovações incrementais, radicais ou disruptivas no modelo de sobrevivência do sapiens ao longo da macro-história.”
Assim, uma crise de grandes proporções tem uma inconveniente força de catalisar inovações para que haja a manutenção dos processos comunicacionais e administrativos da nossa sociedade.
A igreja fora do prédio
Desde que o contexto de isolamento social começou, seja por questões legais ou por decisões internas, nossas comunidades de fé precisaram buscar alternativas para, minimamente, continuarem ativas em relação às suas atividades eclesiásticas, tais como a exposição das Escrituras, aconselhamentos, reuniões de conselho ou presbitério.
Várias igrejas passaram a adotar meios de transmissão da mensagem dominical, por exemplo. Algumas ao vivo, outras disponibilizando uma mensagem gravada. Algumas gravando no prédio da igreja, outras da própria casa. Algumas pelo Instagram, outras via YouTube.
Está sendo comum (e em alguns casos, até mesmo incentivado) a reunião de irmãos e irmãs em pequenos grupos para conversas em videoconferência, usando o Google Hangouts, Zoom ou outros meios disponíveis. Estou tendo essa prática pelo menos uma vez na semana, e tem sido algo muito importante!
No meio disso tudo, foi notório que essa era uma realidade que estava bastante distante da rotina da igreja, falando de forma genérica. Com certa frequência, vi pessoas pedindo ajuda no Twitter para saber como realizar transmissões, enquanto outras que já tinham algum conhecimento na área disponibilizaram tutoriais ou recomendações para auxiliarem nessa demanda. Até mesmo uma “corrente” de inscrição no YouTube aconteceu, para que a plataforma liberasse a transmissão via celular nos canais das igrejas.
A impressão que eu tive é que essa crise está provocando uma caminhada a passos largos no vácuo tecnocultural por parte das nossas comunidades de fé. Digo isso porque esses recursos existem e já estão acessíveis a um bom tempo, mas somente agora a igreja evangélica brasileira (mais um vez, reforço que estou falando de forma generalizada) está se apropriando deles.
Isso por si só não é um problema, pelo contrário: nos dá várias possibilidades que anteriormente não existiam. Por outro lado, tenho refletido bastante sobre a questão relacional, entendendo-a como um princípio orientador, como apontam Pedro Dulci e Rafael Cassiano:
“Os relacionamentos não são uma metodologia, mas um princípio orientador. Não unimos as pessoas para trabalhar, mas trabalhamos para nos mantermos juntos e unidos, pois cremos que essa é a vontade de Deus para os membros do seu corpo.” (2015, p. 19)
De forma bem resumida, significa que aqueles que se dizem cristãos precisam ter um esforço, um empenho relacional, afinal, somos um só corpo. Essa é a causa do Movimento Mosaico, por exemplo, que há mais de cinco anos busca a manutenção da unidade da igreja por meio das relações.
Os desafios relacionais
Vivemos em um mundo volátil, incerto, complexo e ambíguo. A cada dia, temos a impressão que o tempo passa mais rápido, de que trabalhamos mais e que estamos mais exaustos. Se pensar nas relações já era algo “em segundo plano”, com a igreja experimentando (por meio da graça comum, obviamente) as facilidades e benefícios da conectividade, tenho um receio de que as relações, que já estão frágeis, se percam ainda mais.
Quero trazer um alerta em três níveis, envolvendo a questão relacional:
- Cultos públicos
Antes mesmo da crise acontecer, lembro de um amigo compartilhar, para o meu espanto, que determinada igreja havia considerado implementar um “culto online”, dando a possibilidade de que seus membros participassem de casa. Isso me causou um certo espanto, obviamente. Talvez para uma classe bíblica, seria até compreensível. Mas para o culto público? Confesso que ainda não consegui digerir.
Tenho uma suspeita que, quando o isolamento passar, igrejas que antes não transmitiam seus cultos, passem a transmitir. Ou então, irmãos que antes frequentavam fisicamente os cultos de igrejas que faziam transmissão para aqueles que estavam impossibilitados de ir, optem por ficar em casa.
Isso seria um problema, do ponto de vista relacional. Não acho que deva parar de transmitir. Esse recurso pode abençoar muita gente! A questão não é essa. Mas na falta de consciência relacional, tendo a transmissão como pretexto para se ausentar da responsabilidade com o corpo. - Reuniões ordinárias
Um segundo nível, talvez menos crítico que o primeiro, se dá em relação às reuniões ordinárias, como pequenos grupos ou reuniões de liderança.
Por mais que o uso da videochamada seja útil e muito facilitador em determinados contextos, o alerta é que isso também não pode ser absolutizado! Não sou contra o uso, mas é preferível que hajam encontros pessoais, presenciais, físicos, tendo o recurso tecnológico como uma alternativa caso o “plano A” fique inviável. - Eventos
Muito provavelmente você viu pessoas fazendo lives, dando aulas ao vivo ou participando de fóruns remotamente. Isso é algo fantástico, que inclusive fazemos aqui no InC.
Mas tenho uma suspeita que será cada vez mais comum eventos, conferências ou seminários convidarem preletores para uma participação remota. Isso reduziria os custos com hospedagem, transportes e tornaria mais acessível a participação de determinado irmão ou irmã que a organização tanto gostaria.
Essa prática é comum no meio acadêmico, por exemplo. Vários simpósios, inclusive internacionais, aceitam a apresentação de trabalhos por meio de uma chamada no Skype. Mais uma vez, não há nada errado nisso!
Mas eles não tem a preocupação relacional que nós, igreja, em tese, deveríamos ter. Afinal de contas, o que é mais importante: o conteúdo do preletor ou a relação com ele?
Já ouvi várias pessoas, de preletores a participantes, dizendo que a melhor parte de ir a evento X ou Y não é o conteúdo em si, a parte das palestras ou pregações, mas o pós-evento. A melhor parte é aquela onde um determinado grupo senta à mesa, e ali podem conversar e compartilhar suas vidas. Isso sim é importante! O resto é apenas um pretexto.
Conclusão
A tecnologia, a internet, a conectividade são uma benção nas nossas vidas. Usadas com sabedoria, prudência e equilíbrio, elas podem trazer enormes benefícios para nós e nos ajudar a transpor barreiras. O Invisible College é um exemplo disso!
Meu alerta não é para deixarmos isso de lado, para não nos apropriarmos desses maravilhosos recursos. É um chamado ao uso consciente, de modo que a conexão não sobreponha a relação. É um alerta sobre a importância cada vez maior de conscientizarmos nossas igrejas sobre a importância do empenho relacional.
Por fim, é importante lembrar o que Dulci e Cassiano apontam sobre o texto de Efésios 4:3, no qual somos intimados a preservar a unidade do Espírito por meio do vínculo da paz:
“(…) isso significa dizer que só existe uma maneira da cristandade experimentar a unidade do Espírito Santo, qual seja: pelo vínculo relacional que tem na paz sua qualidade distintiva.” (2015, p. 20)
Notas
DULCI, Pedro. CASSIANO, Rafael. Movimente-se: o Movimento Mosaico. Uberlândia: Sal Editora, 2015.
NEPOMUCENO, Carlos. Administração 3.0: por que e como “uberizar” uma organização tradicional. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018.
4 comments
Diego Pereira Pacheco
Acredito que o meio cristão está recebendo grupos de pessoas que não servem a Cristo verdadeiramente e isso é Bíblico.
Tudo está se cumprindo!!
José Maria de Castro
Fantástica a abordagem, principalmente no que se refere ao “ajuntamento” como corpo, isto é imprescindível para manutenção e no equilíbrio nos relacionamentos.
Silvaren Oliveira
Muito bom…
Douglas
Obrigado por trazer esse temática e deixá-la registrada aqui. Temas nessa abordagem são muito importantes para que os relacionamentos se intensifiquem e cumpram seu propósito.