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Performando a santa polifonia: explicando o teodrama vanhoozeano por uma perspectiva musical

Escrito por Jônathas Souza, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024


Em O drama da doutrina, do teólogo Kevin Vanhoozer, a metáfora do teodrama surge como resposta às questões contemporâneas da autoridade das Escrituras e do uso normativo das mesmas na vida da igreja, ou seja, como podemos construir doutrinas adequadas e biblicamente fundamentadas que levem o contexto em que cada comunidade de fé se encontra. 

Ao propor um evangelho teodramático, com diversas entradas e saídas divinas, com seu clímax no que Deus fez em Jesus Cristo, Kevin Vanhoozer põe a doutrina como orientação para a participação adequada da igreja no drama da redenção1. Além disso, resgata o sola Scriptura como prática e não abstração, onde o Espírito Santo leva a igreja a “participar das práticas canônicas que compõem as Escrituras”2. É entendendo essas práticas, e na direção do Espírito, que teólogos e teólogas podem fornecer “entendimento criativo”, dando aos discípulos de Cristo a capacidade de improvisar, ou seja, praticar sua fé adequadamente onde estão inseridos3. Esse improviso ocorre justamente no “teatro do evangelho”, onde, pela direção da doutrina, conseguimos tornar público o Evangelho, vivendo como imitadores de Cristo4.

Nesse sentido, Vanhoozer investe tempo considerável construindo sua lógica do drama, se amparando especialmente na teoria teatral. Entretanto, o próprio autor lembra que a igreja sempre foi ambivalente ao teatro, seja por seu aspecto pagão5, seja pela forma como os reformadores identificaram as missas medievais como “apenas teatro”6. Assim, o presente texto busca expor a proposta vanhoozeana de uma perspectiva mais abertamente aceita em nossas igrejas: a música. O objetivo do artigo é fazer uma ponte entre o roteiro e o repertório, o ator e o músico, a companhia e a banda, o dramaturgista e o arranjador, para aprofundar ainda mais a metáfora e permitir novos entendimentos e, consequentemente, apontar para uma prática adequada de homens e mulheres que buscam ser “imitadores de Cristo” (1Co 11.1) cantando diariamente “uma nova canção” (Sl 93.1).

O repertório

“Onde a revelação divina pode ser encontrada agora?”7. Para Vanhoozer, é no roteiro divinamente escrito, lugar onde Deus fala e age, convidando pessoas a participar de seu projeto. São exatamente esses atos ilocutórios divinos que estabelecem a autoridade bíblica, sendo Deus um “dramatista que realiza coisas na ação dialógica de terceiros e também por meio dela”8. Em nosso caso, tendo a música em vista, Deus é o grande compositor que direciona e aproveita das composições de homens e mulheres que, escutando sua voz, a traduzem em melodia.

Assim, é esperado um cancioneiro em vez de uma só canção.  “Por muito tempo Deus falou várias vezes e de diversas maneiras […]” (Hb 1.1a, NVT) e a verdade do que Deus está fazendo em Jesus refletiu como uma luz nas Escrituras, criando um espectro de cores canônicas, a saber, diferentes formas literárias9. Cada um desses gêneros permite que vejamos, sintamos e provemos aspectos da realidade de formas diferentes. Da mesma forma, gêneros musicais organizam os elementos da música de forma diversa, evocando sensações e sentimentos diferentes, adequados em momentos diferentes.

Inclusive, é interessante perceber que no cânon conseguimos achar esse mesmo fenômeno. O que seriam os Salmos senão uma coleção de canções que se originam de intensa relação pessoal com Deus, que incluem desde frases tranquilizadoras (“O Senhor é meu pastor”) a cenários que parecem mais um festival de violência (“Feliz aquele que pegar teus filhos e esmagá-los contra a pedra”)?10. Assim, o povo de Israel aprendeu, desde o início, que, para performar adequadamente, é necessário performar canções diferentes, adequadas para contextos diferentes11.

Ao olhar para cada item do repertório, podemos apreender como os elementos básicos da música12 — melodia, harmonia e ritmo — refletem a metáfora do teodrama. Primeiramente, a harmonia é um conjunto de sons dispostos em ordem sucessiva; acordes que, dispostos no tempo, relacionam-se entre si, estabelecendo uma relação (teleo)lógica: cada acorde desempenha uma função harmônica, demonstrando propósito13. Da mesma forma, o roteiro canônico está cheio de práticas canônicas, atividades sociocomunicadoras do Espírito Santo que não só transmitem coisas a respeito de Deus, mas têm funções específicas na economia da salvação — proclamar tensão e resolução, assim como os acordes14.

O interessante é que Vanhoozer descreve a relação da igreja com este roteiro canônico não como uma reprodução de práticas, mas como transposição, metáfora que se encaixa perfeitamente em nosso caso. Transportar uma melodia consiste em “grafar, ler, tocar ou cantá-la em outra altura ou num outro tom” mais adequado às condições em que a música está sendo interpretada, mas, ao mesmo tempo, “conserva[ndo] o modo e a estrutura melódico-rítmica da música”15. Ou seja, “a tarefa do teólogo não é compor, mas transpor, não criar, mas ressituar e interpretar para um novo público”16.

Por sua vez, temos a melodia, sequência de notas organizada sobre uma estrutura rítmica que encerra algum sentido musical17. É a melodia que nos faz identificar uma música específica. Ao reconhecermos a melodia das Escrituras, identificamos o sentido nela encerrado: proclamar a verdade de Jesus Cristo. Assim, essa sequência de notas se apoia nas funções harmônicas (práticas canônicas) e nos ajuda a responder fielmente às Escrituras. É “crendo em suas afirmações, confiando em suas promessas, obedecendo seus cânticos” que passamos a nos relacionar com Cristo factualmente18. Por fim, temos o ritmo, a “ordem e proporção em que estão dispostos os sons que constituem a melodia e a harmonia”. É ele que dita quando cada nota surge e dura, quando é hora de andar mais rápido, instigando urgência, ou de caminhar mais lentamente, provocando atenção aos detalhes. Fazemos isso lembrando de que existe um tempo grande19, um metrônomo que alinha o ritmo da história e adequa a velocidade de nossa interpretação ao ritmo de Deus.

Portanto, é necessário que existam arranjos para cada comunidade de fé, isto é, o trabalho de adaptação de uma melodia ou composição musical20. É pelo arranjo que transpomos fielmente melodia e harmonia, e interpretamos adequadamente. E o que para Vanhoozer é o dramaturgista, para nós é o arranjador, ou, num contexto coletivo, o diretor musical. É dessa pessoa a responsabilidade de que todos que fazem parte da produção cheguem a uma melhor compreensão da peça, de modo que a interpretação seja fiel21.

O músico-artista

Se a interpretação do músico deve ser fiel, pode parecer que o seu papel é reproduzir fielmente o que está em sua partitura. Contudo, alguns teóricos nos lembram que essa expectativa é impossível. A partitura deveria ser vista mais como um script do que um texto a ser interpretado22; analogamente, os cristãos não são chamados a reproduzir cópias exatas das Escrituras23. O objetivo de cada músico se torna descobrir como performar adequadamente, construindo sua vida ao redor do seu repertório, permitindo que se desenvolva uma “memória muscular”, ou seja, “cultivar bons hábitos, a saber, disposição para ver, julgar e agir de acordo com os padrões e práticas canônicos”24. No jargão musical, é tocar a música “de ouvido”, internalizando a “teoria musical, as regras de harmonia e contraponto, as convenções [e o] caráter estilístico da obra”25, performando adequadamente o repertório a que tem acesso.

Não obstante, é importante lembrar que, mesmo não sendo uma reprodução, uma atuação não significa mais espaço para improvisação sem sentido, exibicionismo técnico ou originalidade vazia26. Até em momentos que um solista é trazido para o centro do palco, o que se espera não é apenas demonstração de uma técnica brilhante27. É desenvolver uma percepção que permite tanto ler o contexto e participar adequadamente quanto uma perspectiva de alinhar o momento presente com a grande canção que o compositor vem compondo desde o início28.

Conclusão: juntos na banda

Fomos selecionados para a Orquestra de Jesus, performando adequadamente o repertório que apenas nós podemos interpretar: o Reino de Deus. É ao participar da banda que o repertório toma vida, e o povo de Deus caminha praticando hábitos de virtude que retratam a sabedoria do Eterno, morrendo para si e se sacrificando tal qual aquele que tentamos imitar: Jesus Cristo, o clímax do repertório divino. 

Além disso, o chamado é entender que bandas diferentes tocam em tons e instrumentações diferentes. Logo, independente de sua denominação ou alinhamento teológico, cada igreja local tem a responsabilidade de cuidar dos seus, promovendo a sã doutrina para que o resultado seja um coro de vozes alinhadas, uma polifonia santa, em vez de cacofonia que desonra ao compositor. Para isso, é necessário que teólogos e teólogas entendam sua responsabilidade como arranjadores, olhando para o repertório com reverência e santa ousadia, transpondo adequadamente para a realidade onde está.

Tal qual uma banda de casamento, que conhece de cor seu repertório, se aventura por múltiplos estilos musicais e constrói sua confiança na participação contínua, nós nos preparamos para nosso próprio casamento — o dia em que a Noiva será recebida nas Bodas do Cordeiro e celebraremos com o Compositor dos compositores.


1 VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2016. p. 48.

2 Ibid., p. 49.

3 Ibid., p. 49.

4 Ibid., p. 50.

5 Ibid., p. 34.

6 É curioso que o teatro foi o grande modelo para organização espacial das igrejas protestantes, com um público em volta de um púlpito, com corais e órgãos por detrás. Ver KILDE, Jeanne Halgren. Church Becomes Theatre, In: When Church Became Theatre: The Transformation of Evangelical Architecture and Worship in Nineteenth-Century America. New York: Oxford Academic, 2002 Disponível em: https://doi.org/10.1093/0195143418.003.0005. Acessado em 27 jan. 2023.

7 VANHOOZER, op. cit. p. 20.

8 Ibid., p. 196.

9 Ibid., p. 298.

10 DILLARD, Raymond & LONGMAN III, Tremper. Introdução ao Antigo Testamento. Tradução: Sueli Saraiva. 1ª Ed. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 201.

11 Comentaristas lembram da importância dos títulos de cada salmo para lançar luz ao contexto e auxiliar a interpretação do mesmo. Ver DILLARD & LONGMAN III, op.cit, p. 203-206.

12 MED, Bohumil. Teoria da música. 4. ed. rev. e ampl. Brasília, DF : Musimed, 1996, p. 11ss.

13 Um acorde pode ter uma função de Tônica (estável, “estar em casa”), subdominante (instabilidade) e Dominante (tensão total, o acorde “pede” para ser resolvido, i.e. que o próximo acorde seja a Tônica). Assim, um só acorde (Lá maior) pode desempenhar a função de tônica, subdominante ou dominante, dependendo do tom escolhido para a música (Lá, Mi ou Ré maior, respectivamente). Ver KAUL, Vinny, Chord And Harmonic Functions In Music (A Crash Course). Disponível em: https://producerhive.com/music-theory/chord-and-harmonic-functions-in-music/. Acesso 29 jan. 2024

14 VANHOOZER, op. cit., p. 233.

15 MED, op. cit., p. 176.

16 VANHOOZER, op. cit., p. 269

17 DOURADO, Henrique A. Dicionário de termos e expressões da música. São Paulo: Editora 34, 2004. p. 200.

18 VANHOOZER, op. cit. p. 84.

19 Ibid., p. 361ss.

20 DOURADO, op. cit., p. 31.

21 VANHOOZER, op. cit., p. 261.

22 COOK, N. Between Process and Product: Music and/as Performance. Music Theory Online, v. 7, n. 2, p. 1–15, 2001.

23 VANHOOZER, op. cit., p. 269.

24 Ibid., p. 390.

25 YOUNG, Frances: The Art of Performance: Towards a Theology of Holy Scripture. London: Darton, Longman and Todd, 1990., p. 160.

26 VANHOOZER, op. cit., p. 268.

27 YOUNG, op.cit., p. 161.

28 VANHOOZER, op. cit., p. 348-350.


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Referências Bibliográficas

COOK, N. Between Process and Product: Music and/as Performance. Music Theory Online, v. 7, n. 2, p. 1–15, 2001. Disponível em:  https://www.mtosmt.org/issues/mto.01.7.2/mto.01.7.2.cook.html Acesso: 29 jan. 2024

DOURADO, Henrique Autran. Dicionário de termos e expressões da música. São Paulo: Editora 34, 2004. 368 p. 

DULCI, Pedro (org.). A vida do lado de fora: uma presença fiel na filosofia, na teologia e nas ciências. São Paulo: Thomas Nelson Brasil, 2021. 304 p.

KAUL, Vinny. Chord And Harmonic Functions In Music (A Crash Course). Disponível em: https://producerhive.com/music-theory/chord-and-harmonic-functions-in-music/. Acesso 29 jan. 2024

KILDE, Jeanne Halgren. Church Becomes Theatre, In: When Church Became Theatre: The Transformation of Evangelical Architecture and Worship in Nineteenth-Century America. New York: Oxford Academic, 2002 Disponível em: https://doi.org/10.1093/0195143418.003.0005, acessado em 27 Jan. 2024

MED, Bohumil. Teoria da música. 4. ed. rev. e ampl. — Brasília, DF : Musimed, 1996, 420p.

VANHOOZER, Kevin. J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel De Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. 512 p.

YOUNG, Frances: The Art of Performance: Towards a Theology of Holy Scripture. London: Darton, Longman and Todd, 1990.