Escrito por Mateus Solino, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023
Introdução
Um amplo debate que ocorre na construção curricular de cursos de medicina é sobre o tema da interdisciplinaridade. A própria definição de saúde da Organização Mundial de Saúde reflete isso quando diz que a saúde é caracterizada não pela ausência de doença, mas por um bem-estar físico, mental e social1. Para especialistas, duas das maiores dificuldades para o ensino em saúde são o biologicismo e a subvalorização das dimensões ética e humanista da profissão (BATISTA, 2016).
A interdisciplinaridade é proveniente da ideia de conhecimento único e integral já presente entre hebreus, gregos e cristãos medievais, porém, foi perdida na modernidade como consequência do racionalismo que fragmentou o conhecimento ao isolar a racionalidade e elevá-la a único padrão de validação do conhecimento. Assim, o indivíduo foi reduzido à condição lógica e o conhecimento fragmentado em crescente especialização.
Apesar de ser uma ideia relativamente recente na área da medicina, esse debate já havia sido levantado pelo filósofo holandês Herman Dooyeweerd (1894-1977). Sua principal contribuição foi ter demonstrado que o pensamento teórico não é autônomo, mas segue uma predisposição de caráter religioso. Além disso, ele fundou a teoria dos aspectos modais, a qual explica a interação entre as ciências. Diante disso, neste artigo, buscamos aplicar a filosofia de Herman Dooyeweerd à discussão sobre interdisciplinaridade no ensino e na prática da medicina.
Fundamentos da filosofia de Herman Dooyeweerd
A filosofia de Herman Dooyeweerd é fundamentada na pressuposição de que Deus é o Criador e o sustentador de toda a realidade. Por isso, tanto o ser humano como a natureza estão sob a lei estabelecida por Deus e carregam significados dados por Ele mesmo. A realidade é dependente do Criador em origem, existência e meta (KALSBEEK, 2015, p. 72). Nesse sentido, dois conceitos são importantes para entendermos o pensamento do filósofo holandês, sendo o primeiro a tendência religiosa estrutural do eu. (DOOYEWEERD, 2018, p. 74).
A função mais básica do homem é sua relação incontornável e de caráter religioso com seu Criador, uma “orientação individual no que diz respeito ao que o indivíduo entende ser aquilo do qual todas as coisas dependem” (WOLTERS apud SPIER, 2019, p. 119). Essa relação do ser humano com seu Criador é a fonte do conteúdo positivo de significado para ele mesmo, para o seu relacionamento com o próximo e seu relacionamento com a realidade.
Seguindo a tradição agostiniana de pensamento, para Dooyeweerd, o ser humano possui um “impulso religioso inato” e o seu ego (ou coração) é o centro de sua existência, sua raiz religiosa unificada e mais profunda; no seu coração está a Imagem de Deus, que faz dele um ser religiosamente orientado. Essa orientação é ou em sentido a Deus e em conformidade à Sua lei, ou em rebelião contra Ele (apostasia). Em ambos os casos, se manifesta o impulso religioso do homem em seu comprometimento mais fundamental. Uma das consequências disso é a impossibilidade da autonomia do pensamento teórico.
A ciência moderna outorga para si um status de neutralidade e de análise fria e impessoal de fatos e dados, porém, a religiosidade inata do ser humano torna isso impossível. Nossos compromissos religiosos são a raiz de todo o nosso ser, inclusive de nossa atitude teórica. Assim, chegamos ao segundo conceito importante da filosofia de Dooyeweerd: a análise da atitude teórica (DOOYEWEERD, 2018, p. 47).
Para o filósofo holandês, a atitude teórica do pensamento compreende uma antítese entre aspectos lógicos e não lógicos de nossa experiência temporal. Essa experiência comum (ingênua) do ser humano é única e carrega um significado, porém se apresenta em uma grande diversidade de aspectos. Esses aspectos são modos pelos quais pensamos teoricamente sobre a experiência real; cada um deles é irredutível e não contém o sentido pleno da experiência e, portanto, são interdependentes para chegarmos ao significado completo. O significado especial de cada aspecto é o seu núcleo.
Os aspectos e seus respectivos núcleos de significado são: Numérico (quantidade), Espacial (extensão contínua), Cinemático (movimento), Físico (energia), Biótico (vitalidade), Sensitivo (sentimento), Lógico (distinção), Histórico (poder formativo), Linguístico (significado simbólico), Social (intercurso social), Econômico (frugalidade na administração de recursos escassos), Estético (harmonia), Jurídico (retribuição), Moral (amor em relacionamentos temporais) e Confessional (fé). Note que cada aspecto modal é investigado por uma ciência especial, porém o significado real está na convergência de todas elas. Cada ciência pode investigar dentro do seu campo de pesquisa (núcleo), porém nenhuma chegará à conclusão final sozinha. Dooyeweerd usa a ilustração de um prisma para explicar essa relação:
Toda essa diversidade de aspectos modais em nossa experiência só faz sentido dentro da ordem do tempo. Ela se refere a uma unidade central supratemporal e à plenitude de sentido em nosso mundo experiencial, que é refratada na ordem do tempo em uma rica diversidade de modi, ou modalidades de sentido, exatamente como a luz do sol é refratada por um prisma numa rica diversidade de cores (DOOYEWEERD, 2018, p. 49).
Nossa experiência ingênua vê a realidade como uma unidade, porém nossa atitude teórica quebra essa unidade para analisar a realidade em seus diversos aspectos. O homem funciona em todos os aspectos, então vamos tomá-lo como exemplo. O ser humano pode ser estudado da perspectiva de sua composição corporal (química), de seus movimentos (física), de suas atividades celulares (biologia), de seus relacionamentos sociais (sociologia), de seus direitos e deveres (direito), de sua linguagem (linguística), de sua lógica, etc. Cada uma dessas ciências estuda o homem a partir de um aspecto; nenhuma pode dizer que conhece o homem como um ser completo de maneira isolada porque o homem é composto de todos os aspectos e, portanto, todas as ciências precisam umas das outras. Quando isso acontece, estamos diante de uma absolutização — um aspecto torna seu próprio núcleo o significado completo da realidade.
Aplicações da filosofia de Dooyeweerd para a interdisciplinaridade na medicina
Os aspectos modais de Dooyeweerd evidenciam o caráter interdisciplinar das ciências e isso contribui para esse tema que tem sido muito discutido em saúde:
A interdisciplinaridade tem sido considerada por diversos autores como alternativa para se alcançar o desenvolvimento de um pensamento que responda pela complexidade que caracteriza o mundo atual, com seus desafios. Entre eles, encontram-se os problemas de saúde (VILELA e MENDES, 2003).
A abordagem da saúde baseada em especialidades isoladas não tem respondido satisfatoriamente à complexidade do ser humano e da realidade: “O exagero das especializações conduz a uma situação patológica em que uma ‘inteligência esfacelada’ produz um ‘saber em migalhas’” (VILELA e MENDES, 2003). A incompreensão da unidade dos aspectos e de que o significado da realidade é dado por Deus nessa unidade tornou a medicina uma ciência extremamente fragmentada, onde o ser humano é analisado somente em seu aspecto biótico e separado de suas condições sócio-econômicas. Outras fragmentações ocorrem na própria medicina quando cada sistema é estudado por especialidades e subespecialidades.
O conhecimento especializado é necessário diante do grande avanço científico tanto em quantidade como em qualidade. Atualmente, os profissionais especialistas têm dificuldade em acompanhar os avanços em sua própria área, sendo impossível ter um conhecimento médico integral atualizado. Porém, a tendência que deve ser combatida é a de isolar essas especialidades e absolutizá-las. Cada aspecto modal tem seu núcleo de significado, porém são interdependentes para o significado completo.
O segundo isolamento que ocorre na medicina é em relação às outras ciências: enxergar o ser humano integralmente tornou-se difícil para os médicos. A saúde encontra-se na intersecção de vários conhecimentos, como ambiental, sociológico, econômico, epidemiológico, etc. O médico que só vê a parte biológica do seu paciente está fechando seu horizonte e, em algumas situações, não conseguirá cumprir seu papel assistencial.
Assim, outra contribuição da filosofia de Dooyeweerd é a centralidade dos compromissos de fé para a atividade teórica. Primeiramente, isso é importante para entendermos que nenhuma ciência é uma análise de dados neutra e, portanto, todo médico está seguindo seus compromissos religiosos quando analisa dados, lê um artigo ou conversa com o paciente. Isso tem implicações não somente para sua visão do ser humano e suas decisões éticas, mas para sua própria prática interdisciplinar:
Interdisciplinaridade também é uma questão de atitude. “É uma relação de reciprocidade, de mutualidade, que pressupõe uma atitude diferente a ser assumida diante do problema do conhecimento, ou seja, é a substituição de uma concepção fragmentária para unitária do ser humano”. Está também associada ao desenvolvimento de certos traços da personalidade, tais como: flexibilidade, confiança, paciência, intuição, capacidade de adaptação, sensibilidade em relação às demais pessoas, aceitação de riscos, aprender a agir na diversidade, aceitar novos papéis. A primeira condição de efetivação da interdisciplinaridade é o desenvolvimento da sensibilidade, fazendo-se necessário um treino na “arte de entender e esperar, um desenvolvimento no sentido da criação e da imaginação”. Interdisciplinaridade não se ensina nem se aprende, apenas vive-se e exerce-se. O projeto interdisciplinar envolve questionamentos sobre o sentido e a pertinência das colaborações entre as disciplinas, visando um conhecimento do “humano” (VILELA e MENDES, 2003).
Conclusão
A interdisciplinaridade, um assunto importante para a medicina, já foi fundamentada filosoficamente por Herman Dooyeweerd em termos cristãos no início do século XX. O dogma da autonomia da razão é prejudicial não somente por negar as raízes religiosas da atividade teórica e fazer uma falsa promessa de uma ciência neutra, mas também porque provoca reducionismos que prejudicam a interdisciplinaridade e, consequentemente, a prática médica.
Nesse sentido, as doutrinas cristãs da criação e da imagem de Deus no homem estabelecem os fundamentos para a verdadeira prática interdisciplinar ao explicarem o significado integral da realidade, a irredutibilidade do homem e sua relação mais fundamental com o Criador. Portanto, essas bases cristãs são fundamentais para uma medicina que verdadeiramente visa o cuidado integral do ser humano.
1 Saúde mental depende de bem-estar físico e social, diz OMS em dia mundial. Nações Unidas Brasil. 10 out. 2016. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/74566-sa%C3%BAde-mental-depende-de-bem-estar-f%C3%ADsico-e-social-diz-oms-em-dia-mundial.
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Referências bibliográficas
BATISTA, Sylvia Helena da Silva. A interdisciplinaridade no ensino médico. 2016. Ensaio. Revista Brasileira de Educação Médica. Abril; 30 (1). Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0100-55022006000100007.
DOOYEWEERD, H. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução: Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. Brasília, DF. Editora Monergismo, 2018. 276 p.
KALSBEEK, L. Contornos da filosofia cristã. Tradução: Rodrigo Amorim de Souza. São Paulo/SP: Editora Cultura Cristã, 2015. 288 p.
SPIER, J.M. O que é a filosofia calvinista?. Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto. Brasília/DF: Editora Monergismo, 2019. 176 p.
VILELA, Elaine, MENDES, Iranilde. Interdisciplinaridade e saúde: estudo bibliográfico. 2003. Artigo de Revisão. Revista Latino-americana de Enfermagem. Julho-agosto; 11(4): 525-31. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlae/a/DpsYjRRZdHvgfjrWYXj9bxQ/?lang=pt#.