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Prolegômenos de Cosmovisão (Parte II): Feuerbach, Dooyeweerd e a essência do coração

Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o coração, porque dele procedem as fontes da vida

Provérbios 4:23

A demitologização das pretensões teóricas da religião. Essas palavras são uma boa descrição daquilo que o filósofo alemão Ludwig Feuerbach (1804-1872) procurou fazer em Das Wesen des Christentums, 1841, publicado pela editora Vozes com o título A essência do cristianismo, 2007. Visto, curiosamente, como um pensador apaixonado pelo estudo da religião, seu objetivo nunca foi eliminar as crenças religiosas, e, sim, desnudá-las, mostrar a sua essência. A ironia, no entanto, como será visto à luz do pensamento do filósofo holandês Herman Dooyeweerd (1894-1977), é que, no empreendimento de demitologizar a arché da religião, e do cristianismo em particular, Feuerbach o faz sem a plena consciência das suas próprias pressuposições religiosas.

A religião nos limites da natureza

Poucos discípulos de G. W. Hegel (1770-1831) causaram tanto impacto na tradição filosófica quanto Ludwig Feuerbach (1804-1872). Semelhante à Nietzsche, suas críticas incisivas à religião lhe custaram o prestígio na academia. Ironicamente, tornou-se um perseguido por pregar suas “boas-novas”.

Feuerbach foi um importante filósofo e antropólogo alemão, geralmente lembrado por ter sido aluno de Hegel e pela influência que exerceu sobre Karl Marx (1818-1883) e Sigmund Freud 1856-1939). Lecionou em Erlagen e Heidelberg, Alemanha. Entre as suas obras, destacam-se A essência do cristianismo, 1841, A essência da religião, 1845, e Preleções sobre a essência da religião, 1851. Faleceu em 1872, em Rechenberg, Alemanha.

Uma de suas premissas era o princípio: primus in orbe deos fecit timor, isto é, o medo é a fonte originária de todas as divindades. O medo nada mais é do que uma característica intrínseca do homem que demonstra sua dependência, e deste sentimento surge o seu sensus divinitatis. Não por ser algo da Imago Dei, mas um predicado concedido ao homem pela própria natureza. No princípio, era o homem. E o homem precisava de um Deus, e o homem criou o seu Deus.

Assim, numa expressão de Feuerbach, que se tornou uma de suas marcas registradas, religião é antropologia. Isto é, de si mesmo, e não de uma pressuposta revelação, é que o homem projeta todos os ditos “atributos divinos”. Onipotência, onisciência, onipresença, bondade, santidade etc. nada mais são do que qualidades humanas que, embora imperfeitas e limitadas, são projetadas em um Deus de modo absoluto e perfeito.

A expressão bíblica “glória de Deus”, nesse sentido, por exemplo. é na verdade uma demonstração da carência humana. Porque o homem deseja ser amado e exaltado, mas não encontra neste mundo tal coisa que o satisfaça , ele projeta numa divindade, algo externo a ele, aquilo que, de outra maneira, ele jamais poderia ter. Deus, portanto, é tudo aquilo que o homem gostaria de ser, mas não pode. Assim, quanto mais conhece a si mesmo, mais o homem conhecerá o seu Deus:

A unidade essencial conosco é a condição principal da divindade; o conceito da divindade torna-se dependente do conceito da personalidade, da consciência enquanto o que há de mais elevado que se possa pensar. Mas um Deus (significa ao mesmo tempo) que não é essencialmente diverso de nós não é um Deus (FEUERBACH, 2007, p. 217).

Colin Brown, no clássico, Filosofia e Fé Cristã, comenta que “Feuerbach não queria descartar a religião como mera superstição. Queria que as pessoas a reconhecessem por aquilo que realmente era, segundo ele acreditava” (BROWN, 2007, p. 114). Se por um lado, Hegel atribuía ao chamado espírito absoluto a origem de toda a realidade, para Feuerbach a origem de todas as coisas residia na própria natureza.

A solução para o que, logo depois na tradição filosófica, um discípulo seu chamou de “o ópio do povo”, não deveria ser um tipo de neoateísmo militante, contra qualquer forma de crença religiosa. A solução para o problema da religião não consistia em eliminá-la, mas, sim, entender a sua origem:

A religião é o relacionamento do homem com a sua própria essência – aí está a sua verdade e redenção moral – mas com a sua própria essência não como sendo sua, mas de outro ser diverso dele, até mesmo oposto – aí está a sua inverdade, a sua limitação, a sua contradição com a razão e a moral, aí está a fonte desgraçada do fanatismo religioso, aí o princípio supremo, metafísico, dos sangrentos sacrifícios humanos; em síntese, aí está a base de todas as crueldades, de todas as cenas horripilantes na tragédia da história da religião (FEUERBACH, 2007, p. 203).

Feuerbach argumentava que suas ideias eram construídas a partir das coisas, e que não procurava, como a maioria, vê-las por meio de lentes com ideias preconcebidas e deliberadamente impostas. Embora tenha sido acusado de ateísmo, seria mais correto classificá-lo como um antiteísta. Como bem disse Colin Brown, ele “estava protestando contra a ideia de um Deus distante, que permanecesse fora do universo. Tomando Hegel como ponto de partida, chegou à conclusão de que o hegelianismo deveria ser transcendido. Ficou com a natureza, que passou a endeusar e, realmente, tratar como pessoal, à medida que a natureza irrompe na auto-consciência pessoal sob a forma humana” (BROWN, 2007, p. 114).

No princípio, era a natureza. Mesmo com uma crítica tão feroz ao cristianismo, procurando ser razoavelmente lógica, é inevitável perceber a natureza religiosa das pressuposições de Feuerbach. Se por um lado, nas suas palavras, religião é antropologia, por outro, a sua antropologia é religiosa. No lugar do teísmo cristão, a natureza foi elevada à condição de divindade. Feuerbach, à semelhança de Arão, construiu um bezerro de ouro para atender ás necessidades de seu tempo (Êx 32). Seu antiteísmo, assim, é uma expressão religiosa proveniente de uma filosofia pretensamente autônoma, mas que, por isso mesmo, era incapaz possuir uma consciência plena de suas pressuposições.

Herman Dooyeweerd e seu motivo-básico

Talvez nenhum outro autor tenha discorrido tão bem sobre essa característica do que Herman Dooyeweerd (1894-1977). Descrito por G. E. Langemeijer como “o filósofo mais original que a Holanda já produziu, incluindo Espinoza” (LANGEMEIJER apud KALSBEEK, 2015, p. 9) e por David Naugle como “o mais criativo e influente filósofo entre os neocalvinistas no século XX” (NAUGLE, 2017, p. 54), ele argumentava que toda filosofia, em última instância, é movida por pressuposições religiosas, e não teóricas, e de que ela sempre fracassará quando, desprovida dessa consciência, desejar ser autônoma.

A mola mestra da filosofia de Dooyeweerd, dando continuidade à tradição kuyperiana, era “a convicção de que a antítese espiritual tem marcado o próprio pensamento filosófico no decurso da História”, e que, assim, “o filósofo cristão deve discernir entre os motivos-básicos do cristão e do não cristão que deram luz às várias tradições de pensamento. Acima de tudo, o pensador cristão deve continuamente guardar a si mesmo de fazer qualquer tipo de síntese entre os motivos-básicos completamente antitéticos e mutuamente excludentes” (KALSBEEK, 2015, p. 41).

Por “motivo-básico/motivo-base” (grondmotief, no holandês), Dooyeweerd se referia ao “sentido de motivação fundamental, força direcionadora” (NAUGLE, 2017, p. 55). Quatro motivos-básicos foram assim classificados na sua leitura da história da civilização ocidental: matéria/forma, da filosofia grega, natureza/graça, do período medieval, natureza/liberdade, da filosofia moderna, e aquele que julgava o mais comprometido com a revelação bíblica: criação-queda-redenção. O motivo-básico , para Dooyeweerd, é uma característica intrínseca do coração humano. Uma vez que do coração vêm as fontes da vida, (Pv 4:23) ele é a fonte constitutiva da visão de mundo do ser humano, a weltanschauung, sendo assim, o fio condutor dos seus pensamentos, valores e ações.

Nesse sentido, compreende-se melhor as reservas de Abraham Kuyper (1837-1920) quanto à abordagem da escola clássica de apologética. Embora tecida de bons argumentos, para Kuyper ela era ineficiente diante da realidade dos efeitos do pecado no coração do homem, que desordenou o seu motivo-básico do Criador para as coisas criadas: “seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem do homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis” (Rm 1:21-23).

Uma boa apologética é aquela que considera a importância dos motivos-básicos do coração na constituição de uma cosmovisão. A força direcionadora da vida humana reside, antes de tudo, no coração. A regeneração, mediante o ato transformador do Espírito Santo no coração, pela Palavra, é o que redime e faz nascer de novo o coração que, uma vez morto em seus delitos e pecados, jamais poderia ser redirecionado ao Criador por si mesmo através de evidências, pois

Embora a fé seja a última função limite da nossa vida como seres humanos, ela não deve ser confundida com a unidade religiosa básica do coração, da alma ou espírito da existência humana. Isso porque é do coração que emanam os pontos de partida da nossa vida temporal, incluindo aqueles da nossa vida de fé temporal. Isso porque a fé de todos os seres humanos é função subjetiva de sua consciência interior, quer sejam eles crentes em Cristo ou direcionados para a apostasia. Em termos de direção e conteúdo, a fé ou é apóstata ou é aquela que está viva numa pessoa por meio do Espírito Santo. Tanto uma como outra operam dentro da mesma estrutura da função temporal da função temporal da consciência que Deus deu à natureza humana na criação. Ambas estão encerradas no aspecto limite da realidade temporal (DOOYEWEERD, 2015, p. 108)

Para Dooyeweerd, há no mundo uma guerra travada entre dois princípios, dois “motivos-base religiosos fundamentais” (NAUGLE, 2017, p. 56), a saber, o espírito de santidade, fruto da obra regeneradora do Espírito Santo no coração do homem, e o espírito de apostasia, o comprometimento apóstata com algum fragmento da realidade criada, numa atitude de rebelião contra o Criador, sendo a fonte de toda idolatria e “absolutização do relativo visto na atitude teórica do pensamento” (DOOYEWEERD apud NAUGLE, 2017, p. 57, admitindo inúmeras possibilidades em termos de conteúdo.

Um compromisso do coração

Feuerbach afirmava que “o caráter da relígião é a contemplação imediata, espontânea, inconsciente da essência humana como uma outra essência. Mas esta essência objetivamente contemplada num objeto da reflexão, da teologia, torna-se uma mina inesgotável de mentiras, ilusões, cegueiras, contradições e sofismas.” (FEUERBACH, 2007, p. 217). Para ele, conquanto inconsciente da sua essência, o homem passou a adorar a divindade tendo nela seu objeto de reflexão. Mas ao apontar aquilo que considerava ser o grande erro da religião, ele o fez inconsciente do seu próprio motivo-base, dos seus compromissos pré-teóricos.

Não por acaso Colin Brown disse que “dadas as premissas de Feuerbach, seu sistema é razoavelmente lógico. Exige que tudo seja interpretado à luz do seu sistema. A dificuldade com ele é que o cristianismo apresenta uma massa obstinada que realmente não se deixa dissolver dentro desse sistema, pois fala de um Deus que é diferente da natureza. Resta ao homem moderno uma escolha, portanto: seguir Feuerbach até suas conclusões lógicas, ou levar a sério a massa obstinada do cristianismo , que se recusa a dissolver-se” (BROWN, 2007, p. 114).

Assim, o preço a se pagar ao abraçar a sua weltanschauung é o próprio evangelho. O caráter trino e úno do Deus pessoal, que se revelou conforme as Escrituras, só faz sentido no coração mediante o motivo-base criação-queda-redenção, por meio da ação regeneradora do Espírito Santo. Ao comentar Dooyeweerd, David Naugle afirma que “o conteúdo do coração humano – raiz única do pensamento e toda ação – é a linha de fundo, a própria chave da existência. Ele é o fator último que molda a compreensão da realidade por alguém, quer praticamente na cosmovisão, quer teoricamente na filosofia e na ciência” (NAUGLE, 2017, p. 58). Não por acaso o autor bíblico disse que “sobre tudo o que se deve guardar, guarda o coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Pv 4:23).


Referências Bibliográficas

BROWN, Colin. Filosofia e Fé Cristã. Trad. Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 2007.

DOOYEWEERD, Herman. Raízes da cultura ocidental: as opções pagãs, secular e cristã. Trad. Afonso Teixeira Filho. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.

FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Trad. José da Silva Brandão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

KALSBEEK, L. Contornos da filosofia cristã. Trad, Rodrigo Amorim de Sousa. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.

NAUGLE, David K. Cosmovisão: a história de um conceito. Trad. Marcelo Herberts. Brasília, DF: Monergismo, 2017.