Escrito por Pedro Ferreira de Aguiar, estudante do Programa de Tutoria Filosófica, Turma 2021
Ao se pensar na história como o estudo do desenvolvimento do pensamento e das ações da humanidade no tempo e no espaço, pode-se notar características que marcam os diversos períodos. Mas como se dá a inauguração e o início de uma nova era? Cada novo período é um cisma, um rompimento com o que veio anteriormente, ou é uma consequência, um resultado de todo o processo de desenvolvimento iniciado no passado?
O presente ensaio tem por objetivo analisar o período de transição entre a Idade Média e o Renascimento, a fim de traçar uma perspectiva histórico-filosófica sobre o início da modernidade no Ocidente.
VISÕES SOBRE A BAIXA IDADE MÉDIA E SUA RELAÇÃO COM A REFORMA PROTESTANTE
Ao refletir sobre as origens do pensamento das Reformas no século XVI, o teólogo e filósofo britânico Alister McGrath levanta as seguintes questões:
“Então, de que maneira se desenvolveram essas ideias características da Reforma? E de que modo essas ideias diferem daquelas dos séculos anteriores à Reforma? O pensamento religioso da Reforma é um resultado natural do pensamento do final do período medieval, ou representa um rompimento com uma tradição intelectual até então homogênea?” (MCGRATH, 2019, p. 13).
A última questão apresentada por McGrath é de fato muito interessante porque não há um consenso sobre a resposta. Tanto críticos quanto adeptos do protestantismo, por vezes, defendem a posição de que no período pré-reforma havia uma unidade institucional, doutrinária e filosófica, e que portanto, a Reforma teria trazido o rompimento com essa suposta hegemonia dando lugar à secularização, ao ceticismo e ao cisma.
É o que o teólogo americano Kevin Vanhoozer (2017, p. 26-31) nos apresenta ao sintetizar o pensamento de alguns autores que compartilham dessa visão de descontinuidade sobre a Reforma. Na introdução de sua obra “Autoridade bíblica pós-reforma”, Vanhoozer mostra, como o pensamento de Brad Gregory apresenta, que foi a postura protestante que gerou o processo, e é a causadora da secularização.
Vanhoozer também lembra que Richard Popkin defende que a partir das discussões dos protestantes gerou-se o ceticismo que caracteriza a modernidade. E que o protestantismo não rasgou só o véu sacramental que unia céus e terra, mas também o véu institucional da igreja, dando a ideia de que se tratava de algo unitário no interior da tradição pré-protestante de acordo com Hans Boersma e Peter Leithart.
Contrapondo essa compreensão da Reforma como rompimento abrupto da Idade Média, e “respondendo” a pergunta de McGrath, o padre e filósofo brasileiro Henrique C. de Lima Vaz propõe que o fruto dado no século XVI, foi semeado no século XIII:
“Na verdade serão sementes de ideias e problemas lançados no solo medieval que irão crescer, desenvolver-se e expandir-se sob a ação de múltiplos fatores na sociedade e na cultura, vindo a formar a grande árvore simbólica da modernidade. Ora, será no solo intelectual do século XIII que poderemos identificar mais claramente a presença dessas sementes e descobrir a primeira germinação das raízes da árvore futura” (VAZ, 2002, p. 31).
Em concordância com o pensamento do Padre Henrique de Lima Vaz, o teólogo, filósofo e historiador brasileiro Gerson Leite de Moraes diz que
“A modernidade nasceu sob a forte influência dos debates filosóficos, políticos e religiosos gestados de alguma forma na Baixa Idade Média. Nesse momento, florescem as universidades onde se debateram assuntos que movimentaram o ambiente acadêmico e produziram graves consequências no âmbito religioso”( MORAES, 2014, p. 12).
De acordo com essa leitura, é correto afirmar que as várias correntes filosóficas da Baixa Idade Média estiveram presentes nas transformações religiosas do século XVI, determinando valores, princípios e ações.
Para compreender o papel das universidades na Baixa Idade Média nos debates que produziram as sementes que frutificarão no século XVI, é necessário compreender as dinâmicas das translações dos estudos entre o Ocidente e o Oriente.
A TRANSLAÇÃO DOS ESTUDOS ENTRE O OCIDENTE E O ORIENTE MÉDIO
A história nos mostra que no desenvolvimento do pensamento ocidental existe um importante fluxo de ideias com o Oriente Médio.
Após a condenação de Nestório no Concílio de Éfeso em 431, e de não serem reconciliados no Concílio de Calcedônia em 451, os cristãos que não aceitaram a condenação migraram para a Pérsia. Isso porque os excluídos da ortodoxia cristã em Edessa, na Mesopotâmia, tiveram suas escolas fechadas em 489 pelo Imperador Zenão.
Na Pérsia, a síntese entre filosofia cristã e pensamento grego continuou com o trabalho iniciado em Edessa de traduzir as obras de lógica do grego para o siríaco. De acordo com Anthony Kenny (2008, p. 54-55):
“Depois da conquista muçulmana da Pérsia e da Síria, estudiosos pertencentes a essa escola foram convidados para a corte de Bagdá na época dos califas. Entre 750 e 900 esses sírios [da escola dos cristãos dissidentes] traduziram para o árabe boa parte do corpus aristotélico, bem como a República e as Leis de Platão. Também tornaram disponíveis para o mundo muçulmano os tratados científicos e médicos de Euclides, Arquimedes, Hipócrates e Galeno”.
São com as traduções de suas obras para o siríaco que Aristóteles é trazido pelos cristãos heréticos à Pérsia. Com seus princípios de lógica, o Organon, Aristóteles passou a ser mais chamativo dado o interesse científico do Oriente Médio.
Com a conquista árabe da Pérsia e da Síria, há o interesse dos califas em desenvolver filosófica e culturalmente seu poderio militar, por isso os estudiosos da escola dos cristãos dissidentes são convidados para Bagdá.
Assim se dá o desenvolvimento da medicina, da matemática e das muitas traduções de Aristóteles que é incorporado pela filosofia árabe.
Posteriormente com as conquistas muçulmanas na Península Ibérica todo esse desenvolvimento, além de Aristóteles, chegam ao Ocidente através das traduções árabes.
Moraes ainda aponta que
“Ao elegerem o latim como língua oficial […] os mestres escolásticos transformaram-se em […] tradutores de uma série de obras importantes, tais como: o corpus de escritos aristotélicos, alguns comentários de Averróis sobre Aristóteles, alguns escritos médicos e filosóficos de Avicena, e vários outros escritos. Pode-se dizer que sem essas traduções não existiria escolástica. Mais incrível ainda é saber que muitos mestres da escolástica não sabiam ler o grego, o árabe ou o hebraico” (MORAES, 2014, p. 23).
Perceber esse movimento de translação dos estudos de Edessa para a Pérsia, da conquista muçulmana na Pérsia e Síria para Bagdá, e de Bagdá para a Europa, é muito importante para entendermos a filosofia escolástica, especialmente no nome de Tomás de Aquino. O contato que Tomás de Aquino teve com a filosofia de Aristóteles vem da tradução e da tradição árabe, e com isso, toda a influência e mistura dos compromissos religiosos e dinâmicas típicas da religião muçulmana que irão adentrar também no cristianismo determinando a teologia e a filosofia do período escolástico.
A ESCOLÁSTICA COMO RAIZ DO PENSAMENTO MODERNO
Moraes aponta que uma das grandes problemáticas da escolástica será a tentativa de “equilibrar os valores inalienáveis transmitidos pela traditio (tradição), com o aparecimento das novitates (novidades), principalmente a partir do momento em que o corpus aristotélico passa a ser hegemônico entre os pensadores escolásticos” (MORAES, 2014, p. 24).
Moraes (2014, p. 26) prossegue dizendo que “a construção do conhecimento medieval articula-se em meio a uma série de embates internos, tanto no seio da Igreja como no interior da universidade”.
Ou seja, esses embates no interior das universidades e da Igreja denotam justamente que não havia unidade no seio do pensamento medieval.
Especialmente em Paris no século XIII, percebem-se vários grupos religiosos e filosóficos articulando-se naquele campo conflituoso. Fernand Van Steenberghen (1991, p. 384-385) faz um apanhado das forças presentes no movimento doutrinal entre 1250 e 1277:
“Quais são as forças presentes? À extrema esquerda, dentro da faculdade de artes, o grupo inquieto do aristotelismo radical. À extrema direita, na faculdade de teologia, seculares e franciscanos formaram uma ala militante de reação dos teólogos contra os filósofos, para a defesa da sabedoria cristã contra a pagã; […] chamamos esse grupo de partido dos teólogos conservadores. Ao centro, tem-se Tomás de Aquino, cercado de discípulos em que se podem discernir dois grupos: a escola dominicana de Paris e os aristotélicos moderados da faculdade de artes.”
Em 1277, ao censurar 219 proposições de Tomás de Aquino, assessorado por teólogos neo-agostinianos, e seguindo o inquérito solicitado pelo o Papa João XXI, o bispo de Paris (Étienne Tempier) intervém numa controvérsia em torno de ideias fundamentais da concepção teológico-filosófica então predominante. Essa intervenção é provavelmente a decisão magistral mais importante da Igreja na Idade Média, cujas repercussões se estenderão até o século XVII (VAZ, 2002, p. 68).
Percebe-se aqui a influência do antigo regime teológico neo-agostiniano em tensão com a nova teologia sendo feita nas universidades de Paris com Tomás de Aquino e com a vinda de Aristóteles pela filosofia árabe. São essas tensões que farão florescer, posteriormente, a filosofia no movimento franciscano com Duns Scotus e ainda Guilherme de Ockham.
Sobre essas disputas, Moraes aponta a importância de distinguir o realismo do nominalismo para se compreender os embates intelectuais medievais no desenvolvimento entre os séculos XIII e XV.
“Esse modo de pensar e articular filosofia e teologia, baseado no realismo e em conceitos universais, será chamado de via antiqua e estará relacionado a Tomás de Aquino e posteriormente a Duns Scotus” (MORAES, 2014, p. 30).
“Contudo nos séculos XIV e XV, a escolástica como movimento intelectual viu surgir vários outros movimentos importantes que ocuparam um espaço considerável nos campos teológico e filosófico. […] Se a filosofia da Baixa Idade Média foi inicialmente dominada pelo realismo, seja de Tomás de Aquino ou de Duns Scotus, o período posterior será dominado pelo nominalismo, corrente filosófica que terá como expoentes homens como Guilherme de Ockham” (MORAES, 2014, p. 31).
De acordo com McGrath, a diferença entre esses dois sistemas pode ser descrita do seguinte modo:
“Considere duas pedras brancas. O realismo afirma que existe um conceito universal de “brancura” que essas duas pedras corporalizam. Essas pedras em particular possuem a característica universal de “brancura”. Enquanto as duas pedras existem no tempo e no espaço, o conceito universal de “brancura” existe num plano metafísico diferente. O nominalismo, por sua vez, afirma que o conceito universal de “brancura” é desnecessário e argumenta que devemos nos concentrar nas características particulares. Eis aqui essas duas pedras – e não há nenhuma necessidade de entrar num “conceito universal de brancura” (MCGRATH, 2007b, p. 123 apud MORAES, 2014, p. 31-32).
A fim de demonstrar as novas dinâmicas no interior da escolástica na Idade Média tardia, Moraes aponta que o nominalismo de Ockham:
“Diz abertamente que não é possível haver nenhuma prova concreta da existência de Deus, cabendo tal atitude ao âmbito da fé. Segundo ele, não é possível provar a existência de Deus pelo princípio da causalidade, como havia dito Tomás de Aquino na Suma Teológica” (MORAES, 2014, p. 33).
CONCLUSÃO
“As consequências desse tipo de pensamento levaram à criação de um abismo entre o conhecimento científico e os domínios do pensamento religioso. A tentativa de reconciliação entre fé e razão realizada pela escolástica, de repente, viu suas bases epistemológicas ruírem. Não havia mais espaço para a fé na racionalidade. A certeza religiosa não pode apoiar-se mais na razão, já que a fé será o único refúgio para a certeza religiosa” (MORAES, 2014, p. 33 – 34).
A partir dos materiais levantados no presente ensaio, podemos afirmar que a modernidade nasce dessas crises doutrinárias do século XIII. Em 1277 percebe-se o ajuste fino das configurações educacionais, antropológicas, filosóficas e teológicas que vão fazer com que perguntas surjam e respostas sejam dadas e que irão reaparecer sob novas feições nos séculos XIV e XV.
São essas tensões das crises e das respostas na produção teológica no interior dessa disputa que farão florescer uma série de discussões que são as discussões modernas. Uma vez que Tomás de Aquino tenta sintetizar fé cristã com filosofia, e, em Duns Scotus, e principalmente em Guilherme de Ockham, o rompimento será evidente, fazendo com que no Renascimento a fé seja marginalizada pouco a pouco até os séculos XVII e XVIII com o iluminismo.
“Os problemas ali levantados irão alimentar o pensamento da Idade Média tardia. É lícito, pois, admitir que foi na crise do século XIII que esses problemas cavaram sulcos teóricos nos quais germinarão as primeiras raízes da modernidade” (VAZ, 2002, p. 71).
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BIBLIOGRAFIA
KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ocidental, vol. II. Tradução: Carlos Alberto Bárbaro 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008. 392 p.
MORAES, Gerson Leite de. Entre a Bíblia e a espada: uma análise da filosofia e da teologia política em João Calvino. São Paulo: Editora Mackenzie, 2014. 250 p.
MCGRATH, Alister. Origens intelectuais da Reforma. Tradução: Susana Klassen. São Paulo: Cultura Cristã, 2007. 304 p.
VANHOOZER, Kevin J. Autoridade bíblica pós-reforma: resgatando os solas segundo a essência do cristianismo protestante puro e simples. Tradução: A. G. Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2017. 336 p.
VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia VII: Raízes da modernidade. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002. 296 p.