Escrita por Erica Campos Vieira Braz, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023
DOOYEWEERD, Herman. Raízes da cultura ocidental: as opções pagã, secular e cristã. Tradução Afonso Teixeira Filho. São Paulo: Cultura Cristã, 2015. 256 p.
A obra Raízes da cultura ocidental reúne um conjunto de artigos de Herman Dooyeweerd em que o autor critica o Movimento Nacional Holandês por querer acabar, após a Segunda Guerra Mundial, com a antítese entre o cristianismo e o humanismo e defender um tipo de socialismo. Dooyeweerd escreve em seu semanário Niew Nederland rebatendo essa iniciativa e convida a uma análise dos motivos bases religiosos que orientam e formação e compreensão da cultura.
O conjunto foi publicado como livro pela primeira vez em 1959 com o título Renovação e reflexão sobre o motivo básico reformador. Uma segunda edição ocorreu em 1963 com alguns acréscimos e a primeira tradução para o inglês data de 1979 com o título que conhecemos hoje. A presente edição em português é de 2015, tem 256 páginas e conta com uma introdução e oito capítulos, além de um glossário e prefácios do autor, da edição de 1979 e de seu tradutor.
A presente obra apresenta um cuidadoso estudo sobre as forças religiosas que permearam a história do Ocidente. Dooyeweerd parte do pressuposto de que todo homem é essencialmente um ser religioso, partindo da concepção bíblica de coração como centro religioso. Assim, as direções que ele toma são de natureza religiosa, se refletindo na cultura, na política etc.
Dooyeweerd foi um filósofo cristão que desenvolveu um edifício filosófico biblicamente orientado. Isto não significa que sua filosofia seja perene. Ele próprio reconhecia a impossibilidade de uma filosofia duradoura e livre de críticas. Assim como qualquer outro sistema teórico desenvolvido num mundo decaído, a filosofia da ideia cosmonômica está sujeita a imprecisões e conviveu com opositores.
Contudo, por ter sido construída sobre os pressupostos religiosos centrais das Escrituras, se apresenta como uma proposta a ser considerada por aqueles que desejam esposar uma visão de mundo cristã. Foi e continua sendo o fundamento para o desenvolvimento de outros edifícios teórico-científicos biblicamente orientados.
Para melhor compreendê-la, devemos considerar a atmosfera intelectual cristã neocalvinista, que caracteriza seu pensamento complexo, impregnado de rigor acadêmico. É como filósofo que o autor precisa ser lido, sob pena de ser tanto mal interpretado como mal compreendido. Sua terminologia e conceitos precisam ser interpretados, sobretudo, a partir do todo de seu próprio sistema, e não a partir de conceitos pré-estabelecidos por qualquer outra área do conhecimento.
Dooyeweerd identifica quatorze modalidades distintas que nos permitem experimentar a realidade, sendo elas: número, espaço, movimento, vida orgânica, sentimento emocional, distinção lógica, desenvolvimento histórico da cultura, significado simbólico, interação social, valor econômico, harmonia estética, lei, avaliação moral e certeza de fé (p. 56).
É verdade que todos os aspectos se relacionam quando estamos tendo uma experiência ordinária, mas o ponto fundamental é que “os vários aspectos da realidade, no entanto, não podem ser reduzidos uns aos outros em sua relação mútua” (p. 58). Nessa irredutibilidade de cada aspecto da realidade percebemos as influências de Guillaume Groen van Prinsterer e Abraham Kuyper, no conceito de soberania das esferas. O argumento consiste em identificar uma estrutura criacional específica, livre de contradição, que legisla sobre cada um dos aspectos da realidade, formando esferas próprias que não podem ser reduzidas umas às outras.
Para compreender a criação de Deus, o homem não pode absolutizar um de seus aspectos ou esferas. Não se pode compreender a realidade somente pelo seu viés histórico ou lógico. Embora cada um desses aspectos possua uma série de leis internas e uma soberania própria, todas as perspectivas da realidade manifestam-se de forma concreta e interligada. Aquele que deseja compreender melhor a criação, deve se esforçar por adquirir uma ampla visão de todas as esferas e de suas ligações analógicas (que Dooyeweerd chama de antecipações e retrocipações). Desse modo, absolutizar uma das esferas, como a econômica (marxistas), ou a sentimental (hedonismo), é um tipo de idolatria que diminui a inteligência humana e sua capacidade de interagir com o mundo de forma eficaz. Tal ato de empobrecimento intelectual é chamado de reducionismo pelo autor.
A esfera pística é considerada pelo autor como a mais alta esfera. É justamente a fé que se encontra no limiar entre o temporal e o atemporal, entre a imanência e a transcendência. No capítulo Fé e Cultura, Dooyeweerd demonstra como a fé utiliza todas as esferas anteriores e como as transcende, exemplificando sua teoria filosófica.
Nesta obra, Dooyeweerd não se detém nos aspectos teóricos da filosofia da ideia cosmonômica – como ficou conhecida a sua filosofia. Contudo, a partir dos conceitos apresentados, faz uma análise profunda dos desenvolvimentos históricos elaborados com toda a sofisticação de uma filosofia rigorosa. Além disso, tornando ainda mais clara a influência de Abraham Kuyper, os princípios da fé cristã precisam interagir não só com a cultura, mas com a política, a ciência, e todo o tecido social. A análise histórico-cultural elaborada a partir dos conceitos de antítese religiosa, motivos básicos religiosos e ideia de lei constitui uma abordagem robusta da filosofia enquanto ciência.
Dooyeweerd é, sem dúvida, um dos maiores filósofos cristãos protestantes que pensaram a fé cristã nas possíveis esferas de atuação do cristão no mundo criado por Deus, não se restringindo apenas à Igreja. Com linguajar acadêmico, complexo e detendo um conhecimento de filosofia como poucos tiveram, demonstra como todo o pensamento da cultura ocidental possui, no seu âmago, uma raiz espiritual ou existencial. A visão do lugar onde a pessoa passará (ou não) a eternidade afeta inegavelmente a forma como ela vive. Identificando, então, qual é esta raiz religiosa do pensamento, uma crítica construtiva a este pensamento perde a tentação de ser reducionista, mas possibilita ter a amplitude que abarca o maior número de esferas da nossa realidade. Sua proposição no livro não é descartar as antigas ideias e refazê-las do zero, mas reorientá-las dentro desta cosmovisão bíblica.
Esse avivamento neocalvinista tenta recuperar a ética cristã em contraste com as liberalidades no pensamento moderno e pós-moderno e sua influência na Igreja. Pretende defender a fé cristã como a real saída para a humanidade decaída e, ainda, que fé e razão não são opostas nem inimigas, mas complementares; e que as ideologias podem se tornar idolatrias em nosso pensamento. Assim, o autor apresenta os motivos básicos que ainda lutam para se tornarem absolutos no homem, sendo eles: matéria – forma (grego), natureza – graça (escolástico), natureza – liberdade (humanismo) e criação, queda e redenção (religioso). Destes, apenas o último é genuinamente bíblico, pois retorna ao verdadeiro sentido do coração do homem, que é seu relacionamento com Deus.
Todas as tentativas de sintetizar os outros motivos básicos são e foram falhas, pois elas são antíteses religiosas; cada polo clama para si o absoluto do coração humano. Vemos essa falha no caso escolástico, que adota concepções gregas e tenta fazer uma síntese com o cristianismo. O livro trata de vários outros aspectos do desenvolvimento ocidental e análises das consequências que trouxeram os motivos básicos. A primeira dessas fundações é a pagã, grega e romana. Baseada no dualismo entre o elemento vital e natural e o elemento cultural e histórico, ela gerou uma visão de matéria e forma mesclada à fé cristã pelo catolicismo romano. Segundo Dooyeweerd, essa síntese católica comprometeu a visão original de Cristo de integralidade de Criação, Queda e Redenção.
O segundo motivo base é justamente o cristianismo, baseado não numa abstração ou numa divisão entre forma e matéria, mas na concretude do ser humano centrado em seu coração ou alma, num cosmo descrito em termos de Criação, Queda e Redenção, afetando todos os aspectos existenciais ligados ao homem. O terceiro motivo básico é a tentativa de síntese entre os dois anteriores e o quarto é o secularismo, que absolutiza um dos polos da fundação pagã. Para Dooyeweerd, há uma antinomia essencial entre as visões de mundo cristã, secular e pagã, e qualquer sincretismo pode minar irremediavelmente a potência da cosmovisão cristã, distorcendo a forma pela qual enxergamos a realidade.
Herman Dooyeweerd aprofunda conceitos importantes para a compreensão de sua teoria da soberania das esferas e como a visão cristã antagoniza as visões pagãs e seculares. Busca os pressupostos metafísicos que qualificam a visão reformada frente às demais, bem como descreve desenvolvimentos históricos e acadêmicos que nos ajudam a compreender o atual secularismo e como o mundo das ideias contribuiu para o fenômeno antirreligioso que hoje se nota.
Por tudo isso, a obra Raízes da Cultura Ocidental é monumental. O rigor e profundidade filosófica é muito grande, além de ótima crítica cristã ao pensamento secular e bom trabalho crítico filosófico no meio acadêmico. Apesar do livro não ser de rápida leitura, de requerer um bom conhecimento prévio de filosofia e teologia, é um divisor de águas no pensamento de qualquer leitor. Recomendamos a leitura da obra para quem pretende se aprofundar nos estudos de filosofia e teologia sistemática; a leitura é densa, prolixa, apresentando certa dificuldade. O autor, porém, fez grande trabalho, com profundo domínio e conhecimento sobre os temas analisados, o que acaba por superar as dificuldades que o texto possa apresentar.