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A natureza triperspectiva da teologia e sua tarefa

Escrito por Carolina Freitas Costa, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023


Introdução

Em 2009, a revista Time elencou dez ideias que estavam transformando o mundo. Uma delas dizia respeito ao reaparecimento do Calvinismo no cenário norte-americano, e, consequentemente, no cenário mundial1. No Brasil, o movimento do Novo Calvinismo ganhou força na internet, levando muitos cristãos a se interessarem por conteúdo teológico2. Surge, então, a seguinte questão: qual a tarefa da teologia? 

Não poucas vezes, tópicos teológicos foram motivo de discussões inúteis e inconvenientes, afastando as pessoas uma das outras e do próprio Deus, visto que é fácil para pecadores superestimar a extensão do seu conhecimento, além de esquecer do amor como um importante conceito epistemológico (Cf. 1 Co 8:1-3) (FRAME, 2010, p. 171). Diante disso, este artigo pretende dissertar sobre as visões de John Frame e Kevin Vanhoozer a respeito da natureza da teologia e como ela cumpre a tarefa de aproximar o ser humano do seu Criador e Senhor em cada aspecto da vida.

A natureza da teologia

Seguindo os passos do reformador João Calvino, o teólogo e filósofo americano John Frame pretende compreender como se dá o conhecer a Deus, tendo como base a Revelação Especial. Com este fim, Frame sustenta a ideia de que o verdadeiro conhecimento de Deus demanda conhecê-lo como Senhor, o que, por sua vez, significa conhecer sua autoridade, seu controle e sua presença (FRAME, 2010, p. 34). Deste modo, em vista do senhorio divino, as objeções agnósticas perdem sua força, pois o Deus da Escritura é, ao mesmo tempo, transcendente e imanente, sendo uma personalidade absoluta (FRAME, 2010, p. 33). Nas suas palavras:

Porque Deus controla todas as coisas, ele adentra o seu mundo — o nosso mundo — sem ser relativizado por ele, sem perder sua divindade. Dessa maneira, ao conhecer o nosso mundo, conhecemos Deus. Porque Deus é a suprema autoridade, o autor de todos os critérios pelos quais fazemos julgamentos ou chegamos a conclusões, nós o conhecemos mais certamente do que conhecemos qualquer outro fato do mundo. E porque Deus é o Ser supremamente presente, ele é inevitável, não há como escaparmos dele. O mundo não se fecha para Deus, impedindo-o de entrar; ele não é incapacitado de revelar-se por causa da finidade da mente humana. Ao contrário, toda realidade revela Deus (FRAME, 2010, p. 35–36).

Por sua vez, Vanhoozer elabora a ideia de que “conhecer a Deus é se alistar no teatro participativo” (VANHOOZER, 2016, p. 94). Seu pensamento sobre doutrina e conhecimento de Deus ligado à metáfora do teatro encontram, segundo ele, pelo menos três benefícios: primeiro, revigorar a imaginação, a qual tem sido enfraquecida pelas banalidades oferecidas pela cultura contemporânea; segundo, pensar na vida diária como repleta de tensão e urgência, implicando em saber como agir em novas e complexas situações de maneira correspondente com o evangelho; terceiro, enriquecer a avaliação do que está envolvido na autoridade bíblica e no fazer teologia, relacionando o texto e a interpretação por meio da atuação. 

A visão teatral de Vanhoozer encontra ressonância com o entendimento de  Frame sobre a compreensão do que é a teologia, a qual deve ser compreendida como a “aplicação da Palavra de Deus por pessoas a todas as áreas da vida” (FRAME, 2010, p. 93). Tal conceito coordena três perspectivas que resultam na metodologia característica de Frame, o triperspectivismo, cuja base é a Palavra de Deus (perspectiva normativa) aplicada por pessoas (perspectiva existencial) a uma situação (perspectiva situacional) (FRAME, 2010, p. 98).

Segundo Frame, é da natureza da teologia ser perspectiva. Uma maneira de compreender isso é a partir da variedade da linguagem bíblica:

A Escritura contém narrativa, lei, poesia, sabedoria, profecia, apocalipse, tratado, parábola, epístola, e diversas outras categorias mais específicas. […] Numa epistemologia bíblico-ortodoxa, toda a Escritura, independentemente da sua forma literária, é Palavra de Deus. Portanto, história e lei, poesia e sabedoria, apocalipse e epístola – todas as formas literárias que se acham dentro dos documentos canônicos têm igual autoridade (FRAME, 2010, p. 218).

A partir da autoridade de toda a Bíblia, seu estudo é suficiente para, ao apresentar os feitos redentores de Deus, satisfazer as necessidades do coração humano. Olhando através dessa revelação divina, normativa, é possível ver claramente todas as coisas com o fim de transformar a vida pessoal. E o exame das Escrituras, como meio para responder perguntas e interesses de um indivíduo, é de fato útil quando reflete a relação de um indivíduo com Deus na História. Assim, as perspectivas normativa, existencial e situacional se entrelaçam, sendo igualmente necessárias.

A tarefa da teologia

De acordo com Frame, a teologia tem como tarefa “tomar a verdade da Escritura e humildemente servir ao povo de Deus ensinando-a e pregando-a, e aconselhando e evangelizando” (FRAME, 2010, p. 100). Sua visão contrapõe uma visão academicista, em que a teologia deve descobrir verdades abstratas e distantes do cotidiano. Em concordância, Vanhoozer afirma que “o ministério da Palavra é mais do que comunicar algumas verdades; é a transmissão de todo um modo de pensar e sentir” (VANHOOZER, 2016, p. 90).

Contudo, há outros modos de pensar na natureza e tarefa da teologia, de modo que, nos termos do triperspectivismo, uma perspectiva é absolutizada em detrimento das outras. Por exemplo, Schleiermacher definia teologia em função dos afetos religiosos, visando com isso substituir a exposição dos ensinos da Escritura pelo sentimento humano como autoridade final (FRAME, 2010, p. 94). Assim, o aspecto normativo é completamente negligenciado. 

Por outro lado, Charles Hodge pensava a teologia como a “exibição dos fatos da Escritura em sua ordem e relação próprias, com princípios ou verdades gerais envolvidos nos fatos e que impregnam e harmonizam o todo” (HODGE apud FRAME, 2010, p. 94). Sua abordagem era demasiado intelectualista e excluiu, ainda que sem perceber, a tarefa de responder às necessidades humanas. “A obra da teologia não é meramente declarar doutrinas bíblicas na forma proposicional, mas também questionar-nos, ordenar-nos e exclamar exaltando a grandeza de Deus” (FRAME, 2010, p. 217–218). Nas palavras de Vanhoozer:

A teologia propositivo-cognitiva corre o risco de desviar a doutrina de sua função própria de atrair-nos para o drama transformando-o em um conhecimento rígido e formalista que ou será ignorado, ou, em outro cenário plausível, será usado como instrumento ‘xibolético’ de poder (VANHOOZER, 2016,  p. 103).

Assim como Frame, Vanhoozer percebe que a teologia precisa gerenciar as três perspectivas para cumprir sua tarefa de “ajudar as pessoas a usarem a verdade” (FRAME, 2010, p. 96):

A classificação tríplice de Lindbeck sugere que os vários tipos de teologia correspondem basicamente à cabeça, coração ou mão (e. g., o cognitivo, o afetivo, o prático). No entanto, a convicção deste livro é que a doutrina ministra à pessoa toda, e não apenas a uma faculdade ou parte do corpo (VANHOOZER, 2016, p. 98–99).

A diversidade da Escritura não é somente de linguagem, mas também de temas teológicos. Por isso, Frame apresenta o desenvolvimento histórico de uma tendência pela busca de uma teologia contextual, em que os temas não são vistos isolados de sua mensagem central. Entretanto, ele reconhece que há legitimidade em abordar temas “periféricos”, já que a “tarefa da teologia não é repetir a Escritura, mas aplicá-la” (FRAME, 2010, p. 198).

Há realmente um ponto focal na Escritura. Há uma ‘mensagem central’. A Escritura foi escrita para que as pessoas creiam em Cristo (Jo 20.31), e para que os crentes sejam edificados na piedade cristã (2 Tm 3.16s). Cristo é o centro das Escrituras (Lc 24.13-35; Jo 5.39-47). Claro está, porém, que nem todas as partes da Escritura são igualmente importantes à luz desses propósitos. […] Para entender o pleno escopo da obra redentora de Cristo necessitamos do cânon bíblico completo. […] Há, pois, uma reciprocidade ‘perspectivista’ entre a mensagem central da Escritura e suas mensagens pormenorizadas, particulares. A mensagem central é definida pelas mensagens particulares, e as mensagens particulares têm de ser entendidas à luz da mensagem central. […] Significa que o cristianismo tem muitos ‘centros’, ou, para dizê-lo de outro modo, o cristianismo tem um único centro (Cristo), que pode ser exposto de muitas maneiras (FRAME, 2010, p. 208–209).

Mais uma vez, Vanhoozer concorda com Frame, reconhecendo que tal diversidade teológica permite uma resposta suficiente para as necessidades humanas:

Há algumas vantagens em dar atenção à diversidade teológica dos textos bíblicos. Reconhecer múltiplos pontos de vista é um antídoto eficaz para o veneno da distorção ideológica. […] É justamente sua diversidade — chame-se isso de plenitude, de exagero de riquezas, de pluralidade pentecostal — que permite às Escrituras falarem em tantos níveis para tantos tipos diferentes de situações (VANHOOZER, 2016, p. 289–290).

Considerações finais

Em um ambiente de crescente interesse por conteúdo teológico, a teologia não deve se apresentar como “escritos de uma elite acadêmica”, mas, sim, com um conhecimento real de Deus que se converte no modo de “falar e agir em situações cotidianas para a glória de Deus”  (VANHOOZER, 2016, p. 324). Isso não significa a inexistência de um campo teológico especializado e acadêmico, mas, sim, que tal campo deve servir àqueles que estão alistados no teatro participativo divino.

Como afirmou Frame, toda realidade revela Deus, mas a finitude e limitações humanas impedem de apreendê-la de forma única e completa. A partir de uma visualização em perspectivas da vida diante de Deus, é possível aplicar suas normas para cada situação, alcançando necessidades pessoais que serão satisfeitas justamente ao apontar para o Deus que detém toda autoridade, controle e está presente.


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1 BIEMA, David V. The New Calvinism. 10 Ideas Changing the World Right Now. Time, New York, 2009. Disponível em: https://content.time.com/time/specials/packages/article/0,28804,1884779_1884782_1884760,00.html

2 SIQUEIRA, Juan de Paula. Tupiniquins para a glória de Deus: a redescoberta e o crescimento da fé Reformada no Brasil. Teologia Brasileira, 2018. Disponível em: https://teologiabrasileira.com.br/tupiniquins-para-a-gloria-de-deus-a-redescoberta-e-o-crescimento-da-fe-reformada-no-brasil/


Referências bibliográficas

BIEMA, David V. The New Calvinism. 10 Ideas Changing the World Right Now. Time, New York, 12 de mar. de 2009. Disponível em: https://content.time.com/time/specials/packages/article/0,28804,1884779_1884782_1884760,00.html Acesso em 01 de jul. de 2023. 

FRAME, John. A doutrina do conhecimento de Deus. Tradução: Odayr Olivetti. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010. 448 p.

SIQUEIRA, Juan de Paula. Tupiniquins para a glória de Deus: a redescoberta e o crescimento da fé Reformada no Brasil. Teologia Brasileira, 2018. Disponível em: https://teologiabrasileira.com.br/tupiniquins-para-a-gloria-de-deus-a-redescoberta-e-o-crescimento-da-fe-reformada-no-brasil/ Acesso em 01 de jul. de 2023.

VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. 1.ed. São Paulo: Editora Vida Nova, 2016. 512 p.