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No crepúsculo da idolatria afetivo-sensorial: casamento, celibato e amizade à luz do pensamento de Herman Dooyeweerd

Escrito por Guilherme Joshua Fantini Blake, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023


Introdução

O presente artigo visa investigar possíveis aplicações práticas dos conceitos apresentados pelo jurista holandês Herman Dooyeweerd (1894-1977), em sua obra No crepúsculo do pensamento ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico (2018), publicado anteriormente em inglês sob o título In The Twilight of Western Thought: Studies in the Pretended Autonomy of Philosophical Thought (1960). 

Em especial, atenta-se às discussões existentes sobre a importância, no pensamento cristão contemporâneo, do amor romântico e da realização afetivo-sexual. Toma-se como pressuposto que a dita ‘Revolução Sexual’ dos anos 1960 impactou fortemente o pensamento e prática social ocidental, inclusive dentro das igrejas. Hipotetiza-se que a igreja protestante reagiu à resultante cisão entre sexo, casamento e reprodução1 com um enfoque maior no casamento, como ‘resposta’. Em termos dooyeweerdianos, a Revolução teria criado um ídolo, naturalmente evocando seu contraídolo. Isto é, ante a absolutização da realização afetivo-sexual promíscua (“Amor Livre” etc) pela Revolução, a igreja, em reação, teria absolutizado o casamento (enquanto locus da prosperidade ou realização afetivo-sexual lícita), colaborando, assim, com uma visão reducionista da realidade, na qual outros aspectos — como o celibato e outras relações não eróticas — foram sacrificados no altar da realização afetivo-sexual. 

Aproveita-se o conceito de ‘idolatria afetivo-sensorial’, desenvolvido pela teóloga Andréa Vargas, para dar nome à absolutização da realização afetivo-sexual. Recorre-se à obra e conceitos de Herman Dooyeweerd para analisar a questão, à luz dos pressupostos e da hipótese apresentada, considerando possíveis aplicações práticas no discipulado e aconselhamento cristão.

No crepúsculo do pensamento ocidental: as contribuições de Herman Dooyeweerd

A crítica central de Herman Dooyeweerd é à imaginada neutralidade do pensamento filosófico. Para o autor, todo ser humano é orientado por “um motivo central suprateórico que só pode ser de caráter religioso” (DOOYEWEERD, 2018, p. 101-1022). Qualquer filosofia não cristã é, portanto, “inevitavelmente dogmática”, sendo alicerçada em “compromissos e pressupostos pré-teóricos3 extensos que são basicamente religiosos” — mesmo que teorizada por quem pressuponha “a autossuficiência e a autonomia de seu pensamento filosófico” (Ibid., p. 19).

Justifica-se, assim, um pensamento filosófico cristão (para Dooyeweerd, o único que poderá ser realmente crítico, cf. Ibid.) em pé de igualdade com qualquer outro pensamento filosófico: todos estão comprometidos com algum summum bonum. Sobre este homo religiosus, Dooyeweerd segue Agostinho ao afirmar que poderá “encontrar significado e repouso somente em seu criador” (Ibid., p. 45). Se “não encontra seu telos na verdadeira Origem do eu, então se dirige ao mundo, onde experimenta tão-somente dissolução e desintegração”, sendo impulsionado nessa busca por significado por aquilo que Dooyeweerd denomina de “caráter concêntrico do eu” (Ibid.). 

É possível realizar essa busca no autoconhecimento e nas relações intersubjetivas (cf. Ibid., p. 96), mas ambas as tentativas estão fadadas ao insucesso: nenhum dos mergulhos (em si ou no outro) poderá fornecer conteúdo positivo ao ego (cf. Ibid., p. 97). Segundo Dooyeweerd, o ego é vazio em si mesmo (cf. Ibid., p. 102), de modo que “o ego de nosso semelhante confronta-nos com o mesmo mistério de nosso próprio” (Ibid., p. 97).

Dooyeweerd reiteradamente refere-se ao ego como assento central da imago Dei (cf. Ibid., p. 118, 238, 241). A noção do ego como vazio em si mesmo, porém, remete o leitor a outro termo quase simultaneamente usado nas primeiras páginas de Gênesis, também em referência ao ser humano e sua relação com o Deus-Criador. Em Gênesis 2:7 o homem é criado “alma vivente”, originalmente nefesh, termo dotado de conotações de fome, sede e desejo (PRAZERES, 2018, p. 55). Diz Palau:

Originariamente, a palavra nefesh significa ‘garganta’ ou ‘pescoço’. Nestas duas significações está presente não apenas uma parte, mas o homem todo, pois, quando a ‘garganta’ sente fome, é o próprio homem que tem fome; ou, quando necessita de ar, é o homem todo que dele necessita para sobreviver. Não se pode dizer que o homem possui uma nefesh, mas, sim, que ele é nefesh, isto é, um ser necessitado de vida. Nefesh, portanto, tem também um sentido figurado, pois expressa a vitalidade interior, a vontade que o ser humano tem de viver.  (PALAU, 2007, p. 174) 

Nesse raciocínio, o homem criado imago Dei (“imagem e semelhança de Deus”) é estruturalmente constituído nefesh, fome e sede em movimento, uma garganta ressequida e faminta (cf. Salmos 107:94 e FRIGHETTO; RUPPENTHAL NETO, 2020, pp. 259). A relação criatura-Criador, imago e Deus é estrutural e inescapável: o homem anseia e há de ansiar por algo. Nos termos do autor, o caráter concêntrico do eu, movido (ou seria sinônimo?) de um impulso religioso inato, sempre situará o homem na realidade comprometendo-se com algum absoluto, mesmo que imaginado ou postulado (Ibid., p. 34), reconhecido como fonte de saciedade e sentido para os anseios humanos.

A estrutura é imutável: o que varia é a direção dada a ela pelo homem (para mais sobre estrutura e direção, cf. WOLTERS, 2019). Se o eu faminto não se direciona ao Criador, Dooyeweerd entende que necessariamente absolutizará algum aspecto da ordem temporal como substituto (DOOYEWEERD, 2019, p. 34). Considerando a realidade multidimensional no que o ‘eu’ se encontra5 (Ibid., p. 41) e a coerência inquebrantável dessa realidade (Ibid., p. 68), “absolutizar um aspecto da criação é distorcer toda a criação e torná-la desprovida de significado” (Ibid., p. 25). 

Idolatria afetivo-sensorial, casamento, celibato e amizade

Andréa Vargas conceitua a idolatria afetivo-sensorial como a “tirania do nosso próprio coração, que nos seduz para que fiquemos escravos de nossos afetos e sentidos (sensações)” (informação verbal6). Trata-se da absolutização de qualquer um da miríade de afetos e sensações que poderão ser experimentadas pelo ser humano, quer de dor, incômodo, carência, repulsa, desprazer, quer de deleite, êxtase, euforia, alívio, contentamento, etc. A problematização não está no reconhecimento da existência destes e tantos outros afetos e sensações, mas na absolutização de qualquer um deles como fonte provedora de conteúdo positivo (identidade, sentido, valor) para o ego.

O termo aparenta se adequar às premissas da Revolução Sexual. De acordo com a teóloga Nancy Pearcey, foi o psicólogo Wilhelm Reich que cunhou o termo, advogando uma mensagem de redenção através da imersão completa nos instintos sexuais. Em suas próprias palavras, “o âmago da felicidade na vida é a felicidade sexual” (REICH apud PEARCEY, 2018, p. 133, tradução nossa). O princípio eudemonista por trás do pensamento de Reich, e da Revolução que nomeou, se encontra tanto na absolutização dos desejos carnais do homem como na absolutização de seus anseios românticos. Posto evadir ao escopo do presente trabalho delinear a genealogia dessa absolutização, toma-se a mesma como pressuposto autoevidente, cediça e notória, premissa viável para o que se segue. 

Recorda-se que, para Dooyeweerd (2019, p. 109), “qualquer ídolo que tenha sido criado pela absolutização de um aspecto modal evocará seu contraídolo”. Assim, Eentende-se que o ídolo eudemonista da Revolução Sexual evocou um contraídolo: escondido por trás de um verniz gospel, a idolatria da realização afetivo-sexual se escondeu na instituição casamento enquanto mecanismo para se viver algo da Revolução Sexual sem incorrer na ira divina. O resultado é o hiperfoco no romance, sexo e paixão, e atrofia do resto, em especial as demais relações: de ensino, ajuda e amizade.

Historicamente, a igreja serviu como catalisadora dessas relações de intimidade. A tradição judaico-cristã de relações íntimas, mas não eróticas, é longa e densa, remontando aos conhecidos paradigmas veterotestamentários7, passando pelo Novo Testamento8 até chegar em Aelredo de Rievaulx, C. S. Lewis, Dietrich Bonhoeffer e inúmeros outros cristãos que fizeram história sendo amigos e/ou pais espirituais.

Nota-se que a transição do Antigo para o Novo Testamento indicou a transição de um povo escolhido, étnica-biologicamente qualificado (as tribos de Israel), para uma família de Deus (cf. Efésios 2.19) constituída mediante adoção (cf. Efésios 1:5), composta por muitos irmãos (cf. Romanos 8:29), também amigos (cf. João 15), onde os mais velhos devem ser tratados como pais e mães, e os de semelhante idade como irmãos e irmãs (cf. 1 Timóteo 5:-2). Jesus, que humanamente nunca casou nem se reproduziu, surge como o mais interessante dos paradigmas: sua glória e realização está em obedecer ao Pai e se tornar o primogênito de muitos irmãos, e não em se apaixonar, realizar-se afetiva ou sensorial/sexualmente, ou ter filhos biológicos. Absolutizar tais vivências implicaria, em Jesus, reduzir o maior exemplo de todos.

As dinâmicas presenciadas na cruz, quando Cristo entregou sua mãe ao apóstolo João como mãe, e este a ela como filho (João 19:26-27), e nas cartas de Paulo aos seus “verdadeiros filhos na fé”, como Tito, Timóteo e Onésimo, também oferecem indicações adicionais do pretendido papel dessa ‘família de Deus’, enquanto familiares suplementares uns para os outros.

Considerações Finais

Por fim, considera-se aqui que a obra de Herman Dooyeweerd poderá contribuir com importantes pistas para o aconselhamento e discipulado cristão. A visão da realidade como multidimensional pode ajudar o interlocutor angustiado a ver para além de seus afetos e sensações: o afetivo e o sensorial existem, mas não podem fornecer ‘conteúdo positivo’ para o eu vazio, ou melhor, saciar a fome do nefesh faminto.

Dessarte, pode-se usar Dooyeweerd para atrair o olhar do interlocutor de volta às Escrituras e ao Criador que se revela, o Pão-Vivo que sacia. Coloca-se, então, cada coisa em seu devido lugar: Deus, no trono, e o casamento, o celibato (permanente ou temporário), e amizade em seus devidos postos, sem idolatria ou reducionismo. A partir do momento em que a realização afetivo-sexual é destronada como Absoluto, as distorções associadas podem ser desfeitas, permitindo que se caminhe em direção à realidade em toda sua coerência inquebrantável.

Pesquisas futuras poderão se dedicar ao estado da arte do casamento, celibato e amizade na igreja contemporânea, e as muitas tradições eclesiásticas valorizando a amizade, a solteirice e as relações familiares suplementares. Ademais, carece-se aqui de uma análise mais profunda de como a realidade atual se desenvolveu em paralelo (e diálogo com) a dita Revolução Sexual e seu vasto legado social e psicossexual.


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1 Nota-se que a ‘Revolução Sexual’ dos anos 1960 catalisou e colaborou com a cisão entre sexo e reprodução inaugurada pela disseminação, no ocidente, das pílulas anticoncepcionais alguns anos antes.

2 Numeração Kindle.

3 No que diz respeito a esses compromissos e motivos centrais/básicos, Dooyeweerd parece usar os termos supra e pré-teóricos intercambiavelmente.

4 “Pois Ele [Deus] satisfaz a alma sedenta, e enche de bens a alma faminta” (Almeida Revista), alternativamente “porque Ele sacia o sedento e satisfaz plenamente o faminto” (NVI-PT).

5 Dooyeweerd teoriza 15 esferas modais, alternativamente modalidades, aspectos ou esferas de lei, cada uma com suas próprias leis de funcionamento. 

6 Aula na Escola de Sexualidade, Avalanche Missões, no dia 16 de Setembro de 2022. 

7 Notavelmente Davi e Jônatas, Rute e Noemi, Ester e Mardoqueu. 

8 Notavelmente Jesus e Pedro, Tiago e João; Pedro e Paulo; Paulo e seus filhos espirituais. 


Referências Bibliográficas

DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Trad. Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018.

FRIGHETTO, Renan; RUPPENTHAL NETO, Willibaldo. Muito mais que carne e ossos: o corpo e a relação com Deus na Bíblia Hebraica. In: Mirabilia Journal 30 (2020/1): War and Disease in Antiquity and the Middle Ages, Jan-Jun 2020. Disponível em: <https://www.revistamirabilia.com/sites/default/files/pdfs/12._willibaldo.pdf>. Acesso 03 de maio de 2023.

PALAU, José Roberto Fortes. A Força Salvífica da Mortificação: Proposta de uma nova reflexão teológico-pastoral acerca da mortificação cristã. 2007. Tese (Doutorado em Teologia) – PUC Rio, Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: <https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/10064/10064_9.PDF>. Acesso 04 de maio 2023.

PEARCEY, Nancy. Love Thy Body: Answering Hard Questions about Life and Sexuality. Edição de Kindle, 2018. Baker Publishing Group. 

PRAZERES, Alexandre de Jesus dos. Néfesh e Basar: A Relação Corpo-Alma na Bíblia Hebraica e suas implicações para a cultura somática hodierna. 2013. Dissertação (Mestre em Ciências da Religião) – Universidade Católica de Pernambuco, Recife – PE, 2013. Disponível em: <tede2.unicap.br:8080/bitstream/tede/349/1/alexandre_jesus_prazeres.pdf>. Acesso 03 de maio de 2023.

WOLTERS, Albert M. A criação restaurada: A base bíblica da Cosmovisão Reformada. Trad. Denise Meister. 2a Edição. São Paulo: Cultura Cristã, 2019.