fbpx

Resenha: O drama da doutrina

Resenha escrita por Erica Morais Ribeiro Neves, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2022


VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. 512 p.

“A doutrina é um grande drama encenado no palco da criação”. Essa é a tese central da obra O drama da doutrina, escrita por Kevin Vanhoozer, professor de Teologia Sistemática na Trinity Evangelical Divinity School. Escrita em 2005, a obra tem como objetivo mudar a percepção de que a doutrina e a vida da igreja estão separadas. A doutrina, defende Vanhoozer, ajuda os cristãos a interpretar sua fé e a viver de modo que demonstre a um público atento a redenção em Jesus. O livro tem 509 páginas e 12 capítulos, que se dividem em quarto partes: o drama (capítulos 1 a 3), o roteiro (capítulos 4 a 7), o dramaturgista (capítulos 8 a 10) e a encenação (capítulos 11 e 12).

A primeira parte (cap. 1-3) apresenta o tema e a forma resultante da teologia sob a ótica de um teodrama trino da redenção. Nessa parte da obra, o autor traz para o palco todos os elementos da teologia: Deus, Escrituras, doutrina, igreja, e os coordena por meio da metáfora principal do teodrama. Segundo Vanhoozer, a doutrina da Trindade responde tanto à questão de quem é Deus quanto à questão do que ele fez para salvar o mundo em Jesus Cristo. “A primeira premissa da teologia evangélica é que Deus pode entrar e de fato entrou em relacionamento com o mundo” (p. 55). Tal relacionamento tem o seu clímax na Encarnação da Segunda Pessoa da Trindade. Ainda nessa porção inicial da obra, Vanhoozer nos apresenta a teoria dos atos de fala e como esta envolve as pessoas da Trindade em seus aspectos locucionários, ilocucionários e perlocucionários. “Em suma, é o uso que Deus faz da linguagem que deve ser reconhecido como fonte e norma da doutrina cristã” (p. 114).

A segunda parte (cap. 4-7) apresenta as Escrituras como roteiro da igreja, a versão autorizada do teodrama, a constituição da igreja e o lócus da autoridade no que diz respeito à direção doutrinária para a participação adequada da igreja no teodrama em curso. É também na parte 2 que Vanhoozer define roteiro como a direção dramática exercida pelo cânon na vida da comunidade. O propósito dessa parte, diz ele, é explicar por que as Escrituras canônicas devem ser a norma suprema da doutrina cristã. Sobre o roteiro, o autor pontua: “O drama da doutrina consiste na direção do Espírito para que a igreja participe corretamente da ação evangélica através da encenação de seu roteiro oficial” (p. 118). A doutrina, segundo Vanhoozer, é a direção para a participação adequada de indivíduos e comunidades no drama da redenção. Entretanto, tal direção pressupõe um entendimento básico do drama da redenção em si.

O foco da terceira parte (cap. 8-10), intitulada “O dramaturgista”, está no método teológico: como é uma teologia compatível com o evangelho — com o teodrama da redenção e com o roteiro canônico — quando colocada em prática. Nessa parte da obra, o autor apresenta as seis características que, juntas, constituem a abordagem canônico-linguística da teologia. a saber: pós-propositiva, pós-conservadora pós-fundacionalista, prosaica, fronética e profética. “O drama da doutrina visa a um discurso verdadeiro e a uma ação correta: é para a glória de Deus que tudo se fala, tudo se pratica” (p. 255). Essa parte do livro apresenta a metáfora do dramaturgismo para conceber o trabalho de uma teologia atenta tanto ao cânone, quanto ao contexto contemporâneo, com o objetivo de conduzir os crentes no caminho de Cristo.

Na parte 4 (cap. 11-12), Vanhoozer trata da encenação, que nada mais é do que a igreja de Jesus vivenciando o drama da doutrina no palco de sua existência. O compromisso dessta parte, nas palavras do autor, é aplicar à vida cristã tudo o que foi dito anteriormente sobre as Escrituras e sobre a teologia, examinando o resultado dessa dogmática dramatúrgica: a vida vivida para a glória de Deus, empenhada em encenar as Escrituras que dão testemunho da aliança e de seu clímax, a pessoa e obra de Jesus Cristo. “A igreja participa de forma adequada do teodrama quando se torna um teatro da reconciliação, uma exposição do perdão divino e humano, um espetáculo do amor de Deus pelo mundo” (p. 376). 

O drama da doutrina é uma obra magistral que tem como principal trunfo resgatar o significado desgastado de doutrina ao mesmo tempo em que o reinsere no grande drama da história da redenção. Para a tradição cristã reformada, o valor dessta obra se encontra na proposta canônico-linguística que reinsere o texto sagrado no lugar de destaque que lhe é devido ao mesmo tempo em que precede, mas não prescinde, da interpretação da comunidade. Já para fé cristã, o livro apresenta grande valor ao se valer do diálogo constante com teólogos de diversas tradições, reafirmando a importância da catolicidade da igreja para a correta interpretação das Escrituras. 

O valor do livro, entretanto, transcende o debate teológico doutrinário ao prestar grande contribuição à missiologia quando resgata o conceito de teodrama. A razão instrumental — que é, segundo Vanhoozer, o modo de pensar a realidade preferido pela modernidade — resulta na atrofia da imaginação cultural e, finalmente, na perda de contato com a realidade última (p. 94). A metáfora teatral, diz ele, nos mostra que algo de grande importância está em jogo nas nossas decisões do dia a dia. “Seguir a direção do evangelho, portanto, é participar de um tipo de economia bem diferente daqueles que normalmente estruturam nossa vida comum” (p. 94-95).

Na era da pós-verdade, faz-se evidente que o homem contemporâneo não está em busca de conceitos, mas de uma narrativa que dê sentido à sua existência. E é exatamente nesse ponto que O drama da doutrina cumpre seu papel missiológico: ele nos situa como atores no grande palco da história da Salvação, nos lembra quem somos, de onde viemos, para onde vamos, onde caímos e qual o propósito supremo da nossa existência. “A vida é um teatro interativo divino-humano, e a teologia envolve tanto o que Deus disse e fez pelo mundo quanto o que devemos dizer e fazer como reposta de gratidão” (p. 53).

Como nos lembra Vanhoozer, a participação correta neste teodrama exige muito mais do que informações corretas; precisamos de maneiras corretas de processar e sentir as informações. “Necessitamos de mentes corretas, imaginações corretas e corações corretos (p. 256)”. Trata-se, portanto, de uma leitura imprescindível para todos os membros da igreja cristã da pós-modernidade.