Escrito por Thiago de Azevedo Almeida, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023
Introdução
O dia 8 de janeiro de 2023 ficará marcado como uma data vergonhosa na história do Brasil. Manifestantes invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes: Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal1. Inúmeros vídeos e imagens compartilhados nas redes sociais revelam o dano patrimonial virtualmente incalculável: de vidros e cadeiras a obras de arte e objetos históricos, nada parece ter sido poupado da insensatez e violência provocadas pela frustração política.
Em meio à gritaria e depredação mostradas nos mesmos vídeos, algo surpreendente surge: pessoas com a Bíblia na mão, citando versículos, cantando hinos cristãos, enquanto estimulam a baderna. Mesmo após o dia fatídico, não é difícil encontrar, pelas redes sociais, cristãos ainda raivosos justificando, defendendo e aprovando o ocorrido.
Diante disso, poderíamos argumentar que a postura pública desses crentes decorre de uma inconsistência em sua cosmovisão provocada por sínteses com outras ideologias. Assim sendo, o modo de corrigir essa atitude é instruir o cristão a respeito da cosmovisão cristã aplicada à política. Certamente, isso é importante para a formação cristã. No entanto, tão somente a instrução a respeito sobre o papel do Estado, esferas de soberania, poder da espada, desobediência civil etc. é suficiente para forjar um caráter virtuoso de modo que o cristão exerça uma presença pública fiel a Deus?
As manifestações virulentas, presenciais ou virtuais, bem como o ambiente político belicoso que se instalou entre os cristãos, evidenciaram que a destruição material do dia 8 de janeiro é um reflexo da desordem moral de seus corações2. Por isso, além de fornecermos uma estrutura teórica sobre política, é necessário sedimentá-la com virtudes públicas provenientes da sabedoria bíblica, como argumentaremos no presente ensaio. Nesse aspecto, as bem-aventuranças podem servir como vetor estruturante para uma teoria e prática política piedosas.
Uma definição de política
Inicialmente, consideremos Johannes Althusius (1557-1638), ao definir política nos seguintes termos:
A política é a arte de reunir os homens para estabelecer vida social comum, cultivá-la e conservá-la. Por isso, é chamada de “simbiótica”. O tema da política é, portanto, a associação (consociatio), na qual os simbióticos, por intermédio de pacto explícito ou tácito, se obrigam entre si à comunicação mútua daquilo que é necessário e útil para o exercício harmônico da vida social. (ALTHUSIUS, 2003, p. 103)
Assim, a partir da estrutura criação-queda-redenção, da cosmovisão reformada3, podemos identificar, preliminarmente, duas dimensões na definição acima. Em primeiro lugar, política está relacionada com a dimensão criacional. Althusius destaca que a finalidade da política é estabelecer a “vida social comum”. Isso nos remete ao mandato social estabelecido por Deus na criação, o qual se refere à natureza gregária do ser humano e que “provê a base divinamente ordenada para o casamento, para a família restrita e a família extensiva — os clãs, as nações e a comunidade da humanidade de todo o mundo” (GRONINGEN, 2002, p. 91).
Nessa perspectiva, política não é somente uma especialidade de teóricos ou de representantes públicos, tampouco envolve simplesmente conquistar espaço no poder estatal. Em virtude da natureza gregária humana, cada um tem a responsabilidade de preservar a vida em sociedade (vida “simbiótica”, nas palavras de Althusius), porquanto “Deus quis (…) que um ser humano carecesse do trabalho e do auxílio de outro, de maneira que a fraternidade unisse a todos e que ninguém menosprezasse o próximo” (ALTHUSIUS, 2003, p. 111).
Em segundo lugar, outra dimensão que deve ser considerada numa definição cristã de política relaciona-se à Queda. Althusius está ciente de que existem aqueles que preferem e defendem uma vida reclusa, como os monges e eremitas, mas destaca que isso é um desvio da norma divina e que a solitude é vista nas Escrituras como maldição (ALTHUSIUS, 2003, p. 112). Por essa razão, a atividade política é vista como uma “arte” que envolve “cultivar” e “conservar” a vida social. De fato, em virtude dos efeitos danosos do pecado e de sua força desagregadora, é necessário diálogo, consentimento, planejamento, esforço para reunir os homens e promover a harmonia social4.
Temos, portanto, estes dois pontos básicos que nos ajudam a esclarecer o que é política a partir da cosmovisão reformada: a natureza gregária de cada ser humano (dimensão criacional) e o efeito desagregador do pecado (dimensão da queda).
Capital moral na política
Outro ponto importante na definição de Althusius é seu entendimento de que as comunidades humanas, ou “associações”, são formadas por meio de um pacto, ou seja, um compromisso de que cada um está a serviço e benefício do próximo. Comentando acerca dessa característica, Roel Kuiper menciona o seguinte:
Um pacto é o epítome da confiança social. O pacto cria uma situação inclusiva em que as pessoas cuidam e se apoiam umas às outras. Em Althusius, os cidadãos se chamam colaboradores. Instituições políticas são criadas nessa situação para fazer com que o conjunto simbiótico desses colaboradores funcione melhor; eles não estão em oposição à sociedade, mas a serviço da sociedade (KUIPER, 2019, p. 172, ênfase no original).
De acordo com Roel Kuiper, o que sedimenta as diversas associações existentes na sociedade são os valores morais, como amor, fidelidade, respeito, confiança, lealdade, que devem ser comunicados aos outros de modo a permearem os relacionamentos, capacitando as pessoas a se voltarem e doarem-se ao próximo. Desse modo, há cooperação mútua, fortalecendo as relações (KUIPER, 2019, p. 51). Essa postura, de “estar junto ao próximo e ao mundo de uma forma preocupada”, Kuiper chama de “capital moral” (KUIPER, 2019, p. 24).
Portanto, além das duas dimensões relacionadas à definição de política (criação e queda), podemos complementar com a terceira: como cristãos, devemos considerar a “redenção por Jesus Cristo na comunhão do Espírito Santo” (DOOYEWEERD, 2010, p. 87) em nossa ação política, no sentido de que devemos refletir o caráter de um cidadão do Reino de Deus, comunicando em nossos relacionamentos os valores e virtudes desse Reino para o bem do próximo e a glória de Deus.
Considerando essa terceira dimensão, nossa definição de política é enriquecida com o aspecto moral, pois suplementa a natureza gregária do ser humano ao nos chamar a amar o próximo ativa e voluntariamente, bem como pode desarticular a força desagregadora do pecado. É nesse ponto que a sabedoria constante nas bem-aventuranças demonstra seu valor.
Virtudes públicas para cristãos sábios
Dentre as várias acepções que a palavra “sabedoria” apresenta nas Escrituras, José Líndez destaca que ela adquire seu significado “mais elevado e nobre” quando equivale à prudência/sensatez. Nessa acepção, o termo “sabedoria” refere-se ao plano moral do ser humano e significa uma “virtude ou qualidade positiva, enriquecedora de quem a possui, e pela qual orienta sua vida ordenadamente e segundo a vontade do Senhor” (LÍNDEZ, 2014, p. 49). Nesse sentido:
(…) normalmente a sabedoria é relacionada com o homem justo e piedoso (…) um homem que procurava agir em sua vida conforme a vontade expressa de Deus na Lei ou, se preferir, com honestidade diante dos demais e diante de Deus (LÍNDEZ, 2014, p. 49-50).
Diante disso, é perceptível a característica sapiencial do Sermão do Monte (Mt 5-7). Isso porque, em primeiro lugar, Jesus inicia o discurso delineando as virtudes que devem fazer parte do caráter cristão (Mt 5.3-12). Segundo, descreve a conduta do cristão diante dos homens e de Deus (Mt 5.13-7.23). Por último, conclui ressaltando que, de um lado, aquele que obedece às suas palavras é comparado a um homem prudente. De outro lado, o desobediente é comparado a um homem insensato (Mt 7.24-27)5.
A respeito das bem-aventuranças, Jonathan Pennington menciona que:
Jesus, o filósofo, proclamou sua própria visão autoritativa sobre a natureza da verdadeira felicidade nas “Bem-aventuranças”, abordando um tópico importante da filosofia antiga. Ele descreveu o que significa ser uma pessoa íntegra e virtuosa (em grego, teleios, uma das palavras favoritas de Aristóteles) e contrastou fortemente os dois caminhos do “tolo” e da “pessoa sábia” (o phronimos, outro favorito grego) mostrando seus resultados variados de destruição e florescimento. (PENNINGTON, 2021)
Nesse passo, podemos conceber que as virtudes descritas nas bem-aventuranças, além de constituírem o caráter cristão, devem ser praticadas diante de Deus e comunicadas aos homens, sendo, por isso, públicas. Não à toa, na seção seguinte às beatitudes (Mt 5.13-16), Jesus declara que os cristãos devem ser “sal da terra” (indicando serem agentes benéficos de preservação) e “luz do mundo”, chamando-lhes a brilharem “a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus” (Mt 5.16, ênfase minha).
Dessa maneira, ao sermos humildes de espírito (Mt 5.3), reconhecemos que nossa ação política deve ser realizada na dependência de Deus. O lamento pelo pecado (Mt 5.4), nos lembra que todos os sistemas políticos, planos econômicos e governantes estão marcados pela Queda, por isso não colocamos nossa esperança neles. A mansidão (Mt 5.5) neutraliza nosso ímpeto por vingança e violência mesmo quando somos ofendidos ou sofremos injustamente. O anseio por justiça (Mt 5.6) nos recorda que não devemos nos acostumar com as diversas formas de injustiças e conduz-nos a uma vida reta conforme a lei de Deus. A misericórdia (Mt 5.7) ensina que nossa atuação política manifesta-se concretamente em atos de bondade cotidianos. A limpeza de coração (Mt 5.8) nos adverte contra a hipocrisia, bem como indica uma vida santa no âmbito privado e público. A paz (Mt 5.9) nos chama a sermos agentes de reconciliação ao invés de entusiastas do caos e da divisão. Por fim, a bem-aventurança da perseguição (Mt 5.10-12) nos lembra que devemos esperar oposição quando evidenciarmos as virtudes antecedentes, porque os valores e virtudes cristãos são antitéticos aos do mundo6.
Conclusão
Por tudo isso, um conceito cristão de política, visto sob as lentes da estrutura criação-queda-redenção, deve compreender o aspecto moral. Nesse sentido, as bem-aventuranças, além de orientarem nossa identidade como cidadãos do Reino de Deus, podem nos guiar tanto na reflexão teórica quanto em nossa atuação política. Dessa forma, um retorno ao estudo e prática das beatitudes pode ajudar os cristãos nesse tempo de insensatez política, como no episódio do dia 8 de janeiro, a serem mais sábios, virtuosos e coerentes com a fé cristã em suas posturas públicas presenciais e virtuais.
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1 ABRÃO, Camila; GRANDI, Guilherme. Manifestantes contra Lula invadem Congresso, Planalto e STF em Brasília. www.gazetadopovo.com.br, 2023. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/republica/protesto-brasilia-contra-lula/>. Acesso em: 14 de janeiro de 2023.
2 Cf. Mc 7.21-23 e Lc 6.43-45.
3 WOLTERS, Albert M. A criação restaurada. Tradução: Denise Pereira Ribeiro Meister. São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2006, p. 22-23.
4 Essa força desagregadora do pecado não se refere somente ao individualismo contemporâneo, mas também ao “pluralismo confessional”, definido como a “variabilidade de compromissos espirituais, cosmovisões e orientações últimas” das pessoas (DULCI, 2018, p. 109). Ou seja, a atividade política envolve harmonizar interesses diversos de pessoas com visões de mundo diferentes e, muitas vezes, discordantes entre si.
5 Sigo o esboço do Sermão do Monte delineado pelo D. Martyn Lloyd-Jones (com uma pequena alteração a fim de ressaltar o contraste prudente-insensato) em LLOYD-JONES, D. Martyn. Estudos no sermão do monte. Tradução: João Bentes. 6ª reimpressão. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2008, 19-27. Na obra, Lloyd-Jones menciona que “[o] sétimo capítulo de Mateus pode ser aceito como uma descrição do crente como quem vive perenemente sob o escrutínio de Deus, e, portanto, no temor ao Senhor” (p. 23, ênfase minha). A expressão “temor ao Senhor” ou “temor do Senhor” é recorrente na literatura sapiencial. Os insights a respeito das bem-aventuranças, logo abaixo, também foram inspirados pela mesma obra.
6 Id., 2008, p. 32-34.
Referências Bibliográficas
A Bíblia Sagrada. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2 ed. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.
ABRÃO, Camila; GRANDI, Guilherme. Manifestantes contra Lula invadem Congresso, Planalto e STF em Brasília. www.gazetadopovo.com.br, 2023. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/republica/protesto-brasilia-contra-lula/>. Acesso em: 14 de janeiro de 2023.
ALTHUSIUS, Johannes. Política. Tradução: Joubert de Oliveira Brízida. Rio de Janeiro, RJ: Topbooks, 2003. 407 p.
DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos de Souza. São Paulo, SP: Hagnos, 2010. 304 p.
DULCI, Pedro Lucas. Fé cristã e ação política: a relevância pública da espiritualidade cristã. Viçosa, MG: Ultimato, 2018. 208 p.
GRONINGEN, Gerard Van. Criação e consumação, vol. 1. Tradução: Denise Meister. São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2002. 654 p.
KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Tradução: Francis Petra Janssen. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. 310 p.
LÍNDEZ, José Vílchez. Sabedoria e sábios em Israel. Tradução: José Benedito Alves. 3. ed. São Paulo, SP: Edições Loyola, 2014. 272 p.
LLOYD-JONES, D. Martyn. Estudos no sermão do monte. Tradução: João Bentes. 6ª reimpressão. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2008, 608 p.
PENNINGTON, Jonathan. Jesus, o filósofo. https://hebraicthought.org. Disponível em <https://hebraicthought.org/jesus-o-filosofo/>. Acesso em: 23 de janeiro de 2023.
WOLTERS, Albert M. A criação restaurada. Tradução: Denise Pereira Ribeiro Meister. São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2006. 128 p.