Escrito por Gabriel Maia Peter do Nascimento, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020
Introdução
Portanto, se já ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas que são de cima, onde Cristo está assentado à destra de Deus. Pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra (Colossenses 3.1-2).
Muitos ao ler o trecho acima rapidamente entenderão a assertiva como uma chamada asceta ou alienadora. Pensar nas coisas do alto não parece ser uma boa alternativa para quem vive em um mundo cheio de perigos – mas também prazeres; É privar-se de viver e de sobreviver; é viver em um conto de fadas e não na realidade concreta da vida. Mas, quem adere a esse julgamento pode ficar ainda mais confuso. Pois, por meio da carta, Paulo combatia uma crença que colocava em dúvida o senhorio de Cristo – crença esta que dizia ser Jesus não o logos divino, mas uma espécie de demiurgo. Ou seja, mesmo Paulo dizendo para pensarmos nas coisas de cima, ele está defendendo que o próprio Deus esteve na terra – se fazendo carne – para reconciliar não só o homem todo (corpo e alma), mas toda criação consigo mesmo (Cl 1.20). Como isso se dá? Como o apóstolo pode defender a encarnação divina e, ao mesmo tempo, nos chamar para olharmos para fora do mundo?
Nas entrelinhas da questão levantada repousa a reflexão sobre o que é ser e estar no mundo. Quem questiona o imperativo de Paulo, a princípio, parece assumir que, para de fato estar – e interpretar – no mundo, é necessário que se olhe para dentro dele e não fora. De certa forma, isso quer dizer que, a essência da realidade – ou seja, em que consiste a realidade (o que a define) – é apreendida de um ponto de partida puramente temporal – isto é, de algo que está confinado na nossa existência temporal (incluindo a nós mesmos). Entretanto, no presente texto, pretendemos defender que a assertiva de Paulo na verdade não é contraditória, mas um paradoxo – o qual é mais do que necessário assumir para que se esteja inteiramente no mundo e ciente da totalidade da realidade (e não de fragmentos dela).
1. Interpretando a partir de quem?
(i) o mundo inventado ou um mundo dado?
No mundo contemporâneo há uma grande desconfiança com o significado do texto – por texto, queremos dizer qualquer evento da vida o qual exige de nós algum tipo de interpretação, e não só os escritos. Ou seja, a realidade – o mundo em que vivemos – é um grande texto que exige de nós uma interpretação. A desconfiança, se há ou não significado, se dá, por não acreditar que há, no mundo, alguma referência a partir da qual pode-se afirmar o sentido real de alguma coisa. Ou seja, não há um ponto de partida seguro do qual podemos reconhecer o real significado da realidade. Todavia, sabemos que, mesmo que muitos se apropriem deste discurso, as pessoas – ouso em dizer que todas –, mesmo os acadêmicos, não se portam – e não vivem – como se não houvesse um, por assim dizer, “chão para caminhar”. No fim, dizer não ser possível apreender um significado é, também, uma crença – é assumir um ponto de partida – estável – para “ler” a realidade.
De certa forma, o relato da Queda nos auxilia a entender esta condição do pensamento contemporâneo. Na narrativa bíblica, o pecado original, se afastando de uma leitura superficial, ainda que não seja completa, não se resume a mordida no fruto proibido, é mais profundo, é algo anterior a isto. Ao tentar a mulher, a serpente afirma que, ao experimentar do fruto, ela seria como Deus – e nisso, primariamente, consiste o pecado: querer ser igual a Deus. Querer ser o que não se pode, é esquecer da sua real identidade, buscando, em um mundo com significado – criado com intencionalidade por Deus – imprimir o seu próprio sentido a ele. Logo, partindo da narrativa bíblica – mas longe de resumir a questão somente a um ponto –, reconhecer o sentido ou significado no mundo está intimamente ligado a nossa identidade – isto é, quem eu sou.
Da questão identitária desvela-se outro ponto importante sobre interpretar a realidade (isto é, viver no mundo): o ser humano é incapaz de viver sem um absoluto. Mesmo que no relato da Queda o ser humano tenha se rebelado contra seu Absoluto (O Criador), ele não o faz para que se elimine a existência de toda e qualquer referência, mas sim para que ele mesmo – o ser humano – se torne seu absoluto (seu ponto de partida do qual se lê e vive a realidade). Ou seja, mesmo que o ser humano “elimine” Deus, ele está fadado a “procurar” um ponto de estabilidade – devido a sua própria natureza: um ser finito que foi criado para se relacionar com um ser infinito, com alguém maior do que ele mesmo. A questão é, há algo, ou alguém, no nosso horizonte temporal (ou seja, no mundo) capaz de ocupar a posição de Deus nesta relação?
(ii) o eu e suas relações
Como discutido acima, uma das formas de investigar a questão sobre estar no mundo – vivê-lo em sua totalidade –, a partir do relato bíblico da Queda, é se nortear pela pergunta a respeito do ego humano – isto é, sobre o que determina o eu humano – e assim o faremos.
Herman Dooyeweerd, tratando sobre o problema do dogma da autonomia da razão dentro do pensamento teórico, nos traz uma contribuição para nossa questão norteadora: o eu – isto é, o ego humano – é em si mesmo vazio, e que este só pode ser percebido – ter substância – a partir de três relações centrais, a saber: com as coisas no nosso horizonte temporal (a natureza), a relação eu-tu e, por fim, a relação do eu com sua Origem (O Criador).
Segundo Dooyeweerd, a realidade – nossa existência no horizonte temporal – é uma unidade inquebrantável da diversidade de aspecto modais que a constitui –, isto é, que na nossa experiência ordinária sentimos e nos relacionamos não só com o aspecto econômico ou histórico de um objeto, mas com o objeto em toda sua inteireza. Esta abstração – de se olhar apenas um aspecto, em detrimento dos outros – é apenas um movimento, dentro do pensamento teórico, artificial para se compreender melhor determinado modo de ser (aspecto modal) de um objeto. Dooyeweerd, todavia, assumindo a estrutura religiosa do ser humano, reconheceu um vício na maneira do homem interpretar esta separação analítica artificial, a saber, a absolutização de um dos aspectos constitutivos da realidade, tornando todos os outros relativos (submissos) a ele.
Este movimento de absolutizar o relativo é devido a um impulso religioso – mascarado pelo dogma da autonomia da razão – do ser humano. É inerente ao homem essa busca por um objeto de devoção. E se essa busca se dá dentro do próprio horizonte temporal – em que todos os aspectos, na experiência pré-teórica, são vividos de forma coerentemente unidos –, o homem absolutizará o que só pode ser entendido de forma dependente – e não como algo em si mesmo. Em outras palavras, ao absolutizar o relativo – e reduzir todos os outros aspectos ao “absoluto” – a realidade será vista de forma fragmentada – e não em sua totalidade.
Da mesma forma, a relação eu-tu, assim como a primeira, se dá dentro da temporalidade. Ou seja, apesar de ser necessária para se compreender o ego humano, a relação eu-tu está limitada aos próprios limites desse conjunto de aspectos modais – ela, em si mesma, também não pode ser suficiente para trazer substância ao eu humano. Nas palavras de Dooyeweerd:“[…] A razão é que o ego de nosso semelhante confronta-nos com o mesmo mistério de nosso próprio ego […]” (2018,p.71).Isto é, se absolutizarmos esta relação com o outro, encontraremos um vazio tão grande quanto o nosso – seremos incapazes de, a partir desta relação – olharmos para o mundo em toda sua completude.
Isto posto, a assertiva de Paulo ganha novos contornos. Olhando para dentro do mundo – desta realidade inquebrantável de aspectos perpassados pelo tempo –, o homem se encontra fadado a um fracasso: olha-se para o relativo como absoluto e tem sua visão – e sua interpretação – do mundo deturpada. É como se, ao deitar sobre o chão este desaparecesse. Eis o paradoxo, quanto mais o coração se direciona ao que é perceptível aos nossos sentidos – o mundo material –, ou para si mesmo, mais a realidade parece ser reduzida – perdendo o seu sentido.
2. O mundo como sentido.
(i) a terceira relação do eu
Se a realidade – o mundo – em que vivemos é um grande texto, então, como foi visto na seção anterior, nem o leitor – que é a nossa condição – e nem o próprio texto – que é o mundo – pode nos fornecer um ponto estável para reconhecermos a totalidade da realidade (seu significado). Defendemos que, para reconhecer a realidade em sua plenitude devemos admitir que ela é intencional. Em outras palavras, a realidade só tem significado, porque alguém a criou – e a dotou de sentido. Logo, a terceira relação que define o eu – do ego humano com sua Origem, na verdade se mostra como a primeira – é a que dá substância ao ego humano e que direciona todas as outras duas relações.
Dooyeweerd, explicando o movimento subjacente ao universo pré-teórico e teórico que o ser humano faz na busca de um absoluto, diz:
[…] Pois é somente nessa relação religiosa central com a sua Origem divina que o ego pensante pode colocar a si mesmo e a diversidade modal de seu mundo temporal na direção do absoluto […] como o ponto de concentração de todo significado, que ele encontra disperso na diversidade modal de seu horizonte de experiência temporal, o ego humano aponta, acima de si mesmo, para a Origem de todo o significado, cuja absolutilidade reflete-se no ego humano como o assento central da imagem de Deus.[… ] (2018, p.74)
Isto é, o ser humano, de fato, só é capaz de reconhecer a realidade – com toda sua unidade de diversidade de aspecto modais – a partir do momento que ele reconhece – por meio da Obra de Jesus Cristo e ação do Espírito Santo, um movimento de Deus ao homem – o verdadeiro Absoluto – a Origem, o Criador de todas as coisas.
(ii) olhando para fora do mundo – e conhecendo o sentido
Voltando a objeção inicial– levantada na introdução –, quem assume a assertiva de Paulo como um contrassenso – uma sentença contraditória – está assumindo que, a realidade dentro do espaço temporal – incluindo a nós mesmos, o ego humano – é capaz de nos fornecer uma referência interpretativa para o mundo –, a partir da qual determinará nossa forma de agir. Todavia, como mostramos até aqui, até mesmo para os céticos a respeito de um princípio hermenêutico para a realidade: (1) é inerente ao ser humano o movimento religioso de voltar-se a um absoluto e (2) nada, dentro do horizonte temporal da nossa existência, é capaz de ser este absoluto – pelo contrário, se curvar ao que é relativo é ser escravo de um totalitarismo, um reducionismo da diversidade modal. Neste contexto, mesmo um cético – seja de qual nível for – mantêm crenças. Entretanto, enquanto crer, para eles, subjaz uma afirmação de autonomia; crer, na narrativa bíblica é sinônimo de confiar no outro – e não na minha capacidade de discernir. Confiar é crer no testemunho – nas palavras – de outro que não seja você mesmo; é enxergar além do que se sente ou vê por meio dos sentidos. E isto vai de encontro a relação norteadora – do eu com sua Origem.
Ao contrário do logos grego – que era um princípio racional, abstrato, ordenador do cosmos –, João coloca, no início de seu evangelho, o Logos como uma pessoa – a saber, Jesus Cristo. Ou seja, o princípio que dá sentido e coesão ao cosmos deixou de ser abstrato para se tornar pessoal. A palavra de Deus se fez carne. Esta afirmação joanina, mas acima de tudo, revelação de Deus, conecta tudo o que temos defendido até aqui. Se relacionar com Deus – alguém para além da nossa capacidade sensorial, isto é, transcendente – não é apenas acreditar em sua existência – assumindo-a apenas como um pressuposto necessário para interpretar o mundo –, mas é confiar no que Ele diz. Ou seja, cultivar um relacionamento com o Senhor, é ter um relacionamento com o próprio Cristo – a palavra encarnada, que nos revela o significado, imprimido pelo seu Autor, da realidade.
Olhar para o mundo – e, portanto, viver nele – a partir de si mesmo ou de qualquer coisa confinada na temporalidade, faz-nos olhar para a realidade não como ela, de fato, é, mas de forma reduzida. É como se, pessoas em uma cultura distante do desenvolvimento científico e tecnológico moderno, ao pegar um artefato high-tech – como um notebook –, o usassem como tampa de uma mesa. Isto é, eles têm o contato material com o notebook – mas não com o real significado dele. O notebook é mais do que sua estrutura material, ele é o que é, pelo sentido dado a ele. Engenheiros e designers o desenvolveram e o materializaram com um sentido diretivo – que atrela a matéria a uma estância superior a ela. Logo, as pessoas hipotéticas da nossa metáfora, só podem de fato ter o real contato com o que é, de fato, um notebook, conhecendo o seu significado. Da mesma forma o homem com a realidade.
Olhar para fora do mundo – pensar nas coisas do alto – é assumir que a realidade não se resume somente a matéria, mas, que esta, sem o conhecimento do seu real sentido, se torna um objeto estranho a nós – podendo ser tratada de forma indevida. Olhar para Cristo, ter o coração direcionado ao Senhor de todas as coisas, é se curvar – arrependendo-se da nossa ânsia pela autonomia – ao Deus que imputa sentido à realidade. Olhar para Jesus é ouvir e confiar nas palavras do próprio Criador – apreendendo não só o significado do mundo, mas aprendendo a viver o presente confiante nas promessas do Senhor para o futuro – mas que já começam a se cumprir agora. É olhar para fora do mundo, mas pisando nele.
Conclusão
O imperativo de Paulo na carta aos Colossenses não é, então, um chamado asceta ou alienador. Pelo contrário. É um chamado para bem dentro do mundo, mas um mundo com significado. A chamativa de Paulo é libertadora e não escravizante. Como foi discutido ao longo do artigo, o contrário é verdadeiro: voltar-se para si – como ponto de partida (princípio) para a interpretação do mundo – ou para qualquer aspecto constitutivo da realidade, é se tornar escravo de uma mentira. Mentira que deturpa e nos impede de reconhecer a nós mesmos, o outro, a realidade e, acima de tudo, o próprio Criador. Voltar-se para Cristo é encontrar-se com a verdade, é relacionar-se com a própria palavra de Deus; é se lançar (confiar) naquele em que todas as coisas são sustentadas. Eis um paradoxo, pensar nas coisas da terra nos faz mais distantes dela, mas voltar-se para as coisas do alto nos faz viver o que realmente é ser e estar no mundo.
Referências Bibliográficas
DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza – Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018.
CARVALHO, Guilherme. Cristianismo, realidade e racionalidade 1. L’abri Fellowship Brasil, Lagoa Santa – MG.
CARVALHO, Guilherme. Fé e dúvida. Igreja Esperança, Belo Horizonte – MG. 07 de janeiro de 2017.
1 comment
Lucas Ferreira Rodrigues
Excelente : “Eis um paradoxo, pensar nas coisas da terra nos faz mais distantes dela, mas voltar-se para as coisas do alto nos faz viver o que realmente é ser e estar no mundo.”
Não sei se é coerente, mas vejo – da maneira mais simples possível – a garça como um animal que representa esse “ser e estar no mundo” ; sem ser, todavia, do mundo. Isso porque, embora habite em meio à lama e sujeira, não se suja; embora mantenha os “pés” na terra – “mundo” – permanece com o corpo e a cabeça no alto. E estar lá acima é inclusive umas das qualidades que a ajuda a visualizar e capturar seu alimento peixe e crustáceos. Da mesma maneira, “pensar nas coisas do alto” nos fazem visualizar melhor a nossa realidade terrena, que na metáfora da garça, é a lama – mundo.
Apesar da garça ser um exemplo insuficiente para explicar a totalidade da relação cristão-mundo, me parece ainda assim servir como boa ilustração.
O que pensam?