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Tecnologia como salvação: fé e esperança em um mundo mediado por artefatos tecnológicos

Escrito por Mateus de Matos Nunes, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020

INTRODUÇÃO

Neste trabalho discutiremos a respeito dos elementos písticos presentes nos usos contemporâneos da tecnologia, a partir de insights produzidos principalmente por pensadores da escola da filosofia da ideia cosmonômica.

Verificaremos como a tecnologia tem sido usada na busca pelo transcendente e, nesse processo, tornou-se um receptáculo de fé e esperança de salvação. Também abordaremos a questão com um olhar em direção a alguns artefatos da cultura pop que captaram esse problema e o abordaram de modos distintos, seja em uma visão positiva desse fenômeno, ou mesmo em uma postura negativa.

1. TECNOLOGIA E FÉ: O PROBLEMA

Desde a Revolução Industrial, o mundo tem vivido um avanço significativo no desenvolvimento de máquinas e engenhos que permitiram a transformação dos espaços natural e social em algo totalmente diferente daquilo que se conhecia em toda a história anterior.

No âmbito da história das ideias, registra-se o aparecimento do Iluminismo, com sua cosmovisão caracterizada pelo dogma do progresso humano ascendente e ilimitado, o que seria uma emancipação contra as forças hostis do dogma, do mito e da natureza.

A partir do domínio da corrente elétrica alternada, do desenvolvimento dos microcircuitos, da instalação dos cabos submarinos de fibra óptica e, principalmente, da Internet, a humanidade entra em uma nova era, que, mesmo nas décadas incipientes do século XXI, já é denominada a Era da Informação.

Apesar da “doutrina” da neutralidade religiosa pregada pelo establishment, Egbert Schuurman, em sua obra “Fé, Esperança e Tecnologia: ciência e fé cristã em uma cultura tecnológica”, escancara o caráter pístico da relação da sociedade contemporânea com os artefatos tecnológicos produzidos, em ritmo frenético, cotidianamente. Para o filósofo neerlandês:

O pensamento ateísta, dominante na ciência e na tecnologia, projetou-se em nossa cultura. A ciência e a tecnologia, numa combinação extremamente poderosa, são consideradas os principais ingredientes do ar que respiramos todos os dias. O caráter “autônomo” ou “iluminado” do pensamento científico faz-se notar em nossas conquistas científico-tecnológicas. Não é por acaso que falamos, com frequência, de uma cultura tecnológico-científica, ou simplesmente na cultura tecnológica em que vivemos. Porém, a segunda característica principal dessa cultura é o fato de ser altamente secularizada. Nessa cultura, nenhum estudante passa incólume pelo choque de valores e normas da fé cristã.

Assim, para muitos jovens estudantes, tal cultura desprovida de Deus representa um segundo confronto. Aqueles que possuem um histórico religioso, ao ingressar na universidade, adentram um ambiente e uma cultura na qual Deus não possui mais espaço. Ele é ora declarado morto, ora ignorado. Desta forma, como nenhuma atenção é dada a Deus no tocante ao passado, ele também sai de cena no futuro. A humanidade toma para si o futuro como sendo o seu futuro. Esse futuro é centrado especialmente no poder e no desenvolvimento técnico-econômico. É nisto que nossa cultura colocou a sua esperança. As expectativas futuras não são mais expectativa de que Deus surgirá e fará novas todas as coisas, pelo contrário, o poder humano solucionará todos os problemas, e preparará o caminho para o porvir. As próprias pessoas determinarão a origem e o objetivo de todas as coisas. Isto é tido como algo evidente. Se o céu é um vazio, os seres humanos colocarão sua esperança na ciência e na tecnologia. Espera-se que ambos nos garantam um bom futuro. Se no final das contas esta expectativa desmoronar, terminaremos num niilismo […]

Conforme demonstrado pelo histórico intelectual do Ocidente, as expectativas em relação ao futuro estiveram, por muito tempo, acompanhadas de grandes visões. De fato, depois que a humanidade teve de assimilar diversas decepções, as pretensões humanas de autodeterminação reduziram-se de certo modo. Agora, elas são de cunho mais individual. Embora seja possível observar todo tipo de mudança no cenário da cultura ocidental, não há sinais de uma grande reversão. O interesse pela importância de Deus e de seu Filho Jesus Cristo para a ciência, tecnologia, cultura e futuro estão em franco declínio. A importância do reino de Deus foi e tem sido excluída do escopo do pensamento e ação humanos (SCHUURMAN, 2016, p. 19/20).

Como denunciado por Herman Dooyeweerd e, antes dele, por toda a tradição filosófico-teológica reformada, o coração humano – centro da personalidade (Ego) -, é uma fábrica de ídolos.

Na verdade, toda a história das religiões pagãs pode ser resumida como a constante de reducionismo e absolutização de determinados aspectos da realidade (DOOYEWEERD, 2018). 

Conforme cada sociedade, em sua própria cosmovisão, compreendia esses aspectos da realidade como mais cruciais ou críticos para sua vida coletiva, passou a deificá-los, personificando-os com nomes e atributos divinos.

Assim, por exemplo, o amor e a sexualidade foram personificados em: Afrodite, Vênus, Ishtar, Inana e Hator; a fertilidade e a agricultura em: Cibele, Ártemis, Astarote e Ísis; os fenômenos atmosféricos em: Zeus, Júpiter e Hadad; a guerra e a violência em: Ares, Marte e Sekhmet; a imortalidade em: Hades, Plutão, Anúbis e Osíris; o poder estatal em: Dea Roma, Hórus, Baal etc.

Esse processo de deificar os aspectos da realidade não se resume apenas às civilizações da Antiguidade, mas é uma constante em todos os tempos. Na Era Moderna, vimos a razão, o progresso, a ciência, a nação, a classe social, o gênero sexual, a etnia, e – nas últimas décadas – a tecnologia, serem submetidos a esse tipo de apoteose.

2. A TECNOLOGIA E O TRANSCENDENTAL: MITOLOGIA CONTEMPORÂNEA E SALVAÇÃO POR MEIOS TECNOLÓGICOS

A fé e a esperança depositadas na tecnologia, como demonstra Egbert Schuurman, não escapou à percepção de produtores de cultura pop. Essa situação pode ser verificada, por exemplo, desde a publicação das primeiras obras de Isaac Asimov, na década de 1940.

Basta, ainda, verificar a lista de filmes e séries disponíveis em plataformas de streaming para encontrar artefatos culturais que trabalham com visões transcendentais da tecnologia, tais como: Black Mirror, Dark, Altered Carbon, American Gods e muitos outros.

O livro de Neil Gaiman, American Gods, convertido em uma série de duas temporadas para a plataforma Amazon Prime Video, apresenta de maneira mais clara os aspectos religiosos envolvidos nos usos contemporâneos da tecnologia.

O livro/série aborda uma guerra entre antigos deuses das mitologias nórdica, irlandesa, egípcia, indiana e africana com os novos deuses da humanidade, que são personificações de aspectos da tecnologia atual: a internet (Technical Boy), a televisão (Media), a globalização (Mr. World), o mercado financeiro (The Intangibles) etc. O enredo gira em torno da luta entre esses dois grupos de deuses pelas mentes e corações humanos.

Não apenas os afetos e a atenção das massas são afetados pelas novas divindades tecnológicas; a morte também poderia ser superada com o desenvolvimento de novas tecnologias que permitissem a “transferência” da consciência humana para ambientes virtuais em que as pessoas poderiam viver para sempre, como fantasia o episódio San Junipero da série Black Mirror, disponível na plataforma Netflix.

3. TECNOLOGIA COMO MEDIADORA DO DIVINO

Mas, além dessa relação de forjamento de novos ídolos para a sociedade contemporânea,  como descrito anteriormente, há ainda o surgimento da confiança religiosa na tecnologia como meio intermediário entre o homem e Deus, senão como a própria mediadora da relação transcendental entre o humano e o divino.

Nessa situação, a tecnologia (internet ou ambiente virtual) não é o próprio objeto de culto, mas passa a ser um instrumento eficaz para a realização de atos religiosos, muitas vezes substituindo totalmente a necessidade de presença física ao templo, tornando-se ela mesma uma nova espécie de templo imaterial.

Como aponta Moisés Sbardelotto: 

Em um processo de midiatização do fenômeno religioso, começam a surgir novas modalidades de experiência da fé, a partir do deslocamento das práticas religiosas para a ambiência comunicacional da internet. Poderíamos dizer que ocorre hoje uma “diáspora”, já que a internet torna-se o ambiente para o qual grande parte (senão todas) as religiões tradicionais vão, aos poucos, se deslocando. […]

Assim, “liturgia, oração, ritual, meditação e homilética se unem e funcionam com o próprio espaço online atuando como Igreja, templo, sinagoga, mesquita.

Além de se informar sobre a sua Igreja, portanto, o fiel também pratica, vivencia e experiencia a sua fé no ambiente digital. As pessoas passam a encontrar uma oferta do sagrado não apenas nas igrejas de pedra, nos padres de carne e osso e nos rituais palpáveis, mas também na religiosidade existente e disponibilizada, midiaticamente, na internet. Uma categoria de sites que reúne grande parte desses serviços religiosos são as chamadas “capelas virtuais”, ambientes online que reúnem grande parte dos rituais aqui analisados, mediante uma transmutação de rituais tradicionais da Igreja Católica (como as velas, o terço, a leitura orante etc.) para a ambiência digital. 

[…]

Isso se dá por meio de instrumentos e aparatos físicos (tela, teclado, mouse) e símbolos presentes na linguagem computacional e online (navegadores, menus, ambientes). Com eles, o fiel “manipula” o sagrado ofertado e organizado pelo sistema e navega pelos seus meandros. Interface, portanto, é o código simbólico que possibilita a interação fiel-sistema e também a superfície de contato simbólico entre fiel-sistema. Em um sentido mais restrito, referimo-nos aqui à interface gráfico-computacional dos sites, os elementos não textuais presentes no sistema – como o layout e a organização interna das informações nele disponíveis – e a dimensão material das mídias, que orientam a leitura, a construção de sentido e a experiência religiosa do fiel. Por isso, é por meio da interface que o fiel interage com o sistema: este informa ao usuário seus limites e possibilidades, e aquele comunica ao sistema suas intenções: assim, o sistema não apenas indica ao fiel uma forma de ler o sagrado, mas também uma forma de lidar com o sagrado (SBARDELOTTO, 2002, p. 371/ 372 e 375/376).

Obviamente, a tecnologia não deve ser vista como uma vilã, nem mesmo aqui se defende a necessidade de um “êxodo” digital das igrejas a fim de se protegerem dos problemas de hipertrofia das funções tecnológicas.

Nada obstante, faz-se inevitável a tomada de consciência em face dos usos ilegítimos do aparato tecnológico, em direções que não são aquelas apontadas pelas leis modais pertinentes à tecnologia.

CONCLUSÃO

Como vimos, por trás do mito da neutralidade dos artefatos tecnológicos, esconde-se a confiança religiosa na capacidade da tecnologia de trazer salvação. A natureza religiosa dos usos contemporâneos da tecnologia não passou de todo despercebida, como demonstrado em obras de arte pop.

O problema da antecipação (momento de sentido) da tecnologia, cujo uso cada vez mais se desloca em direção à esfera pística da escala modal, precisa ser encarado pela sociedade, mas, especialmente pela comunidade cristã, iluminada pela revelação bíblica e conhecedora da realidade da fábrica de ídolos cardíaca humana.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental. Tradução de Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. Brasília: Monergismo, 2018. 

SBARDELOTTO, Moisés. Deus em bits e pixels: rituais online e a experiência religiosa em tempos de internet. Anais do Congresso Internacional das Faculdades EST. Vol. 1. São Leopoldo/RS, 2012. Disponível em < http://anais.est.edu.br/index.php/congresso/issue/view/1>. Acesso em 22/12/2020.

SCHUURMAN, Egbert. Fé, esperança e tecnologia: ciência e fé cristã em uma cultura tecnológica. Tradução: Thaís Semionato. Viçosa/MG: Ultimato, 2016.