Escrito por Mateus Victor Rigolin, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2022
Introdução
Kevin Vanhoozer desenvolve, em sua obra O drama da doutrina, uma abordagem teológica denominada canônico-linguística, que afirma que a Palavra autorizada de Deus se encontra no uso que o próprio Deus faz das Escrituras ao longo do cânon1. Seu objetivo é evitar os reducionismos que outras abordagens caíram — tais como: a propositivo-cognitiva, que reduz a Bíblia aà teoria e meras proposições2; expressivista-experiencial, que encontra nas experiências pessoais a verdade autorizada3; e linguística-cultural, que argumenta que a autoridade da Palavra se dá por meio do uso que determinado grupo faz dela4.
Para apoiar sua abordagem, Vanhoozer toma a metáfora do teatro e a aplica ao trabalho teológico e à vida cristã. Tal metáfora foi desenvolvida por Hans Urs von Balthasar e nomeada Teodrama. Esta colabora para o desenvolvimento da perspectiva segundo a qual a teologia não é apenas teórica, mas deve redundar em ação, em transformação, em encenação fiel. Com esse fim, Vanhoozer trabalha sobre o aspecto da sabedoria e aponta que “(…) a teologia como forma de razão prática canonicamente ordenada é prosaica, fronética e profética”5.
A proposta deste artigo é apresentar o aspecto prosaico da teologia dentro da abordagem canônico-linguística, uma vez que “[a]queles que desejam participar da nova realidade escatológica devem se envolver na desordem da vida real”6. Desconsiderar a vida diária é prejudicial para a teologia, pois pode reduzi-la a uma teoria, algo a ser discutido e entendido, mas não aplicado. Para fundamentar a discussão, será utilizada a obra supracitada de Kevin Vanhoozer.
Do texto para o contexto
Teologia prosaica se relaciona com o ordinário. É enxergar a história de Deus envolvida na integralidade da vida. Nas palavras de Vanhoozer:
Dizer que a teologia é prosaica é chamar a atenção para a necessidade de concretizar a fé da perspectiva do cotidiano. O que é necessário, por assim dizer, é um toque de Midas ao contrário: a habilidade de transformar o ouro do evangelho nas coisas rotineiras do dia a dia.7
Para ser capaz de fazer essa transformação — do evangelho para o cotidiano — é necessário estar consciente da condução desse Teodrama. Todo ato da peça é iniciado por Deus,. Portanto, saber como atuar hoje passa primeiro por entender o que Deus tem feito9. Esse é o objetivo da abordagem canônico-linguística de Vanhoozer, quando afirma que “é a ação comunicadora de Deus nas Escrituras que deve servir de critério último para a verdade, a bondade e a beleza”10.
Além de observar os atos de Deus, Vanhoozer enfatiza a importância de valorizar as formas em que estes atos são apresentados nas Escrituras através de seus diferentes gêneros literários.
Uma teologia ‘bíblica’, portanto, não se limita a resumir o conteúdo propositivo das Escrituras. Envolve adquirir habilidades e sensibilidades cognitivas, e, como consequência, a capacidade de ver, de sentir e de provar o mundo revelado nos diversos textos bíblicos.11
Enxergar a condução do drama e as diferentes formas com as quais os atos podem ser apresentados são parâmetros para aplicar, de maneira mais adequada, o conteúdo teológico à vida cotidiana. Afinal, ver a teologia como prosaica não pode significar banalizá-la ou relativizá-la, do cânon são extraídos os paradigmas12 para a encenação fiel.
É necessário improvisar
Vanhoozer afirma durante sua obra que toda a Trindade está ativa e atuante nesse drama. Entre seus papéis13, podem ser citados: o Pai sendo o dramaturgo; Jesus, o ator principal e o maior exemplo de contextualização — pois, em Cristo, o próprio Deus torna-se histórico em um tempo e local específico —, e o Espírito Santo, aquele que dá vida às práticas canônicas e capacita a igreja a seguir com sua atividade de contextualização. Inclusive, “[o] processo [de contextualização] começa no Pentecoste, quando o Espírito capacita aqueles que ele ungiu a proclamarem o evangelho em sua própria língua (At 2.6-8)”14.
Esse processo envolve também outro elemento do teatro: a improvisação. Para improvisar não basta que o ator faça qualquer coisa. “Improvisar bem é algo que exige estudo (formação) e discernimento (imaginação)”15, é estar atento às “ofertas”16 de outros personagens e saber como aceitá-las seguindo com o fluxo esperado do drama. Muitas vezes improvisar é fazer o óbvio.
Aplicando à teologia, a metáfora do improviso demonstra que para haver uma improvisação fiel é necessário conhecer profundamente o roteiro — as Escrituras — e suas formas, a fim de que o que for encenado não fuja dos padrões estabelecidos pelo Dramaturgo, apesar de conter, também, a espontaneidade do ator.
Considerações finais
Assim, a ideia de teologia prosaica é relembrar que a vida cotidiana tem elevada importância, pois as práticas diárias moldam os hábitos e o caráter de uma pessoa17. Tais práticas, para o cristão, precisam, portanto, estar alinhadas às Escrituras, uma vez que Deus é Senhor sobre toda a vida. Diferente de outras abordagens teológicas, a canônico-linguística reconhece que a teologia vai além da teoria. “Em última análise, o conhecimento da perspectiva teodramática não tem muita relação com tornar-se erudito, mas com tornar-se santo”18.
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1 VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. p. 213.
2 Ibid., p. 101-2.
3 Ibid., p. 107.
4 Ibid., p. 112.
5 Ibid., p. 323.
6 Ibid., p. 323.
7 Ibid., p. 325.
8 Ibid., p. 19.
9 Ibid., p. 326.
10 Ibid., p. 213.
11 Ibid., p. 300
12 Ibid., p. 332.
13 Ibid., 259.
14 Ibid., p. 333.
15 Ibid., p. 352
16 Ibid., p. 354.
17 Ibid., p. 325
18 Ibid., p. 320.
Referências Bibliográficas
VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. 512 p.