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O aspecto esquecido: estética, comunidade cristã e a redescoberta da arte cristã

Escrito por Marlon Girardello, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020

A muralha era feita de jaspe e a cidade de ouro puro, semelhante ao vidro puro. Os fundamentos dos muros da cidade eram ornamentados com toda sorte de pedras preciosas.

Apocalipse 21:18,19

INTRODUÇÃO

O homem olha ao seu redor e procura a arte que outrora enchia os olhos dos seus antepassados. Olha para a natureza, o livro da criação, e ainda encontra algum tipo de descanso. Em seu coração está impresso a lei de Deus, mesmo que, por vezes, suprimida. A criação perfeitamente obedece às leis do Criador. O homem, por ser imagem e semelhança de Deus, resguarda, a despeito do seu estado de rebelião, as normas estéticas, porém, em suas criações, pode ou não transgredi-las. Isso é constatado quando olhamos um pôr do sol e vemos beleza.  Independente de nossos pressupostos, há algo ressonante em todos os corações humanos, há uma beleza que é inegável. E se há beleza, há normas que tornam aquilo belo ou feio, ainda que elas não possam ser, em algum sentido, expressas em teorias. Ao ver o que atualmente está sendo produzido, surge a pergunta: O que aconteceu com a arte produzida pelos homens? Por que parece que o melhor da arte ficou no passado?

Os estilos atuais nos parecem menos belos, abstratos e minimalistas. Tendemos a pensar que a arte foi impulsionada por uma “mão invisível” que a trouxe até aqui, que foi fruto apenas de um desenvolvimento ao decorrer da história que não foi guiado e culminou no que temos hoje. Entretanto, não se pode ser tão ingênuo nesse sentido, pois as artes são produzidas por homens e seus pressupostos são essenciais para as produções artísticas e a criação de estilos. Toda a discussão que não parte da análise dos pressupostos se torna falseada, superficial e não desvela a real motivação do autor. Há sempre uma fé, há sempre um senhor onde essa fé é depositada. Não se pode atribuir uma produção apenas ao fator cognitivo. A mística de que o autor depende somente da criatividade acaba reduzindo a produção artística a uma pura inspiração momentânea, sendo que a arte é muito mais que isso e sofre influências de vários aspectos da realidade humana.

Ao olharmos a criação de Deus e as normas por Ele estabelecidas na realidade temporal, podemos então ter um vislumbre do que é uma arte que reflete o caráter de Deus, uma arte cristã, e como a igreja pode ser uma mola propulsora para a abertura da sociedade no sentido de direcionar artistas a propor novos estilos que refletem essencialmente pressupostos genuinamente cristãos.

DEUS E A BELEZA

A Bíblia inegavelmente influenciou a sociedade ocidental como um todo. Muitos dos valores e da maneira que a sociedade se desenvolveu foram pautados por pressupostos cristãos. Entretanto, à medida que o homem se afastou da verticalização do contato com Deus e da sua soberania sobre todas as esferas da vida, criou então dualismos entre o sagrado e o profano, entre o corpo e a alma. A arte, então, devido a beleza que era atribuída à carne, foi subjugada e colocada como sendo de menor importância. Abraham Kuyper afirma que “Na sociedade em geral, as pessoas tendem a empregar o contraste entre carne e espírito, atribuindo o belo aos desejos da carne — o que resulta numa menor apreciação do belo e numa maior inclinação em condená-lo”[1]. Temos, nesse sentido, uma visão que se descolou da Bíblia. Por todas as Escrituras Deus demonstrou seu poder criativo e a busca do belo. Ele teve o cuidado estético em incontáveis relatos, não apenas na criação, mas em tudo que ordenou que fosse feito. Podemos pegar o exemplo do tabernáculo e da arca da aliança que Deus ordenou a Moisés que fossem construídos (Êxodo 25). Deus mesmo arquitetou os detalhes, tanto em questão de formas (querubins, romãs, argolas) como na questão de materiais (ouro, prata, madeira).

Se podemos chamar algo de belo ou feio, temos então alguma norma que baliza essa afirmação. Por mais que a arte pós-modernista tente solapar e dissolver essas normas, elas são inatas. O gnosticismo e o elitismo da arte pós-moderna, ao propor uma arte que só pode ser absorvida pelos estudiosos, sendo só eles os detentores daquele conhecimento, não pode apagar aquilo que está escrito no coração humano. Kuyper traz uma reflexão pontual a este respeito: “É possível que algo que pertence à nossa natureza humana seja algo além de uma capacidade inata? Caso tenha sido criado em nós, quem mais poderia ter depositado no nosso interior a não ser Aquele que nos criou? No entanto, se, por um lado, encontramos no interior do próprio Deus o decreto que rege a beleza, então Ele estampou tal decreto sobre Sua criação como se fosse um sinete divino”[2].

Por mais que haja no ser humano essa percepção inata, a queda do homem em Adão nos legou dois impactos. O primeiro, em que própria natureza nos lembra da queda, Kuyper afirma que “A graça comum atenuou a maldição e, desse modo, nos legou uma poesia genuína no interior da natureza. É o mesmo caule que sustenta tanto o botão da rosa desabrochado quanto o espinho bravio.” O segundo, continua Kuyper, “no tocante ao interior do ser humano pecaminoso, a graça comum evitou a perda total da percepção da beleza presente na natureza”[3]. Ou seja, Deus não apenas é criador e criativo, isto é, Ele reservou para o homem, por meio da graça comum, tanto a possibilidade de apreciar a criação como a de criar. A demonização do belo e do criativo é um erro profundo, a beleza por si só não é o problema, mas sim a estética que é utilizada, pois disso é possível gerar vida ou morte, luz ou trevas na civitas terrena. 

ESTÉTICA E ARTE CRISTÃ

Primeiramente, é importante pontuar que a expressão artística de conteúdos bíblicos e/ou litúrgicos não torna a arte cristã. Segundo, que a arte cristã não está sob o controle da igreja. Por exemplo, a “Última Ceia”, de Leonardo Da Vinci, denota justamente o pensamento renascentista de sua época, onde o motivo base era humanista, algo que por mais que exprimisse um relato cristão, poderíamos categorizar, no máximo, como uma arte parcialmente cristã. Isso porque a base da arte de Da Vinci era impactada por seus pressupostos. É inegável, porém, mesmo que a pessoa não goste do estilo de Da Vinci, que há beleza em sua pintura da “Última Ceia”. Hans Rookmaaker em seu livro Filosofia e Estética, afirma que “a graça comum possibilita corações apóstatas gerarem o que é belo. Corações apóstatas podem gerar apenas artes parcialmente cristãs. Um estilo que parte de um ponto de partida genuinamente cristão. Somente se o coração estiver verdadeiramente em Cristo podemos esperar arte verdadeiramente cristã”[4].

A fé não está restrita apenas ao que popularmente chamamos de religião. Todos, sem exceção, possuem fé em algo ou em alguém, e isso não se aplica a esfera teórica, se enquadra naquilo que Herman Dooyeweerd chama de supra teórico. Há portanto uma diferenciação direcional entre cristãos e não cristãos. Rookmaaker nos mostra o quanto a direção é relevante: “Tudo isso tem tanta importância porque todo o processo de positivação é conduzido pela fé. A direção da fé mostra a direção do processo de positivação. Isso é verdade em cada campo, na positivação das normas jurídicas, econômicas e sociais, e também das normas estéticas”[5]. Não há terreno neutro, a fé é totalmente relevante para a estética, pois é pela cosmovisão dos autores que surgem os estilos e as obras, isso muito motivado pela pensamento da sociedade e do povo na qual o artista está inserido.

No período medieval isso se tornou muito claro. A Europa era permeada por um ideal da igreja onde a maneira de viver era voltada a Deus e compreendia todas as esferas da vida, e, portanto, isso também influenciava a arte. A Catedral de Barcelona é um exemplo: o estilo gótico, com suas linhas verticais, denota um lugar central para Cristo no coração do povo. Nas igrejas protestantes, no período logo após a Reforma, vemos o lugar central que era dado à Palavra de Deus. Isso se via na posição elevada onde o ministro da Palavra se colocava. Não temos, então, desde o início da Renascença, o desenvolvimento de estilos influenciados pela fé cristã, pois a partir desse período os estilos foram influenciados principalmente pelo humanismo e suas vertentes. Rookmaaker vai afirmar que “a arte cristã deve ser uma arte cujas normas são positivadas sob orientação da fé em Deus e em Cristo. Ao mesmo tempo, a atividade criativa do indivíduo deve estar enraizada numa escolha religiosa de posição, pela qual seu coração concentra-se em Deus, volta-se para Deus, tal como nos foi revelado em Cristo”[6].

Há, portanto, uma necessidade urgente dos cristãos se posicionarem nesse sentido, pois somente aqueles que reconhecem o senhorio de Cristo podem gerar novamente uma abordagem cristã que abarca e cumpre todos os aspectos da realidade humana, que não reduz nenhum aspecto em detrimento de absolutizar um outro. Rookmaaker sugere que “ainda que os artistas sejam cristãos e confessem o cristianismo não apenas na igreja, mas também politicamente etc., na medida em que não reconhecem que a arte deve também postar-se sob o senhorio da fé cristã, jamais chegaremos a uma arte cristã; então a arte permanecerá sempre ‘do mundo’”[7]. O artista cristão precisa entender que a luta entre a “cidade dos homens” e a “cidade de Deus” tem que/deve também ser ativa na arte. Não em um caráter beligerante, mas em sua presença fiel e comprometida diante de Deus, por meio dos seus dons e talentos, servindo à todos e trazendo vida e luz genuínas, por intermédio de Cristo, através da sua arte.

A IGREJA E A ARTE CRISTÃ

Se artistas cristãos, tanto individualmente como coletivamente, continuarem positivando sua arte com base em sua época, não terão sucesso ao propor um estilo ou arte genuinamente cristãos. Ter cognitivamente uma cosmovisão cristã não garante ao artista cristão uma produção artística verdadeiramente cristã, é necessário que ele imprima isso em sua arte. A arte que se rende ao progresso, acaba ficando refém dele, tendo então seu florescimento suprimido devido a uma sociedade fechada. A arte vai se tornando um produto. Não gerando então uma diferenciação, a arte se torna refém de sua época, pois gera só aquilo que o zeitgeist aceita e comporta como arte. Não há uma pluralização. As obras, portanto, precisam antecipar a modalidade jurídica, ética e pística para então ir abrindo mais a modalidade estética, gerando assim uma abertura gradativa da sociedade.

Conforme sugerem Michael Goheen e Craig Bartholomew, em seu livro Introdução à Cosmovisão Cristã, a comunidade cristã como um todo precisa levar “a sério o chamado divino de alguns de nós para ser artistas”[8]. Não adianta apenas colocar uma cadeira mais bonita na igreja pra dizer que há uma preocupação com a estética do templo. É necessário o reconhecimento da vocação dessas pessoas e a recuperação da herança artística cristã para que, então, haja uma remissão das artes. A igreja comumente é um campo que apresenta dificuldades para os artistas, principalmente em períodos em que um dualismo antibíblico relegou a expressão artística. Por fim, de nada vale incentivar se não se está disposto a/se não há disposição para apoiar esses artistas, sendo através da visita às galerias, idas a recitais, audição das músicas ou compra daquilo que é produzido. Toda boa arte é relevante, mas devemos nos empenhar em apoiar os esforços daqueles que produzem uma arte genuinamente cristã.

CONCLUSÃO

É papel da comunidade cristã reforçar e resgatar os fundamentos da arte, que sobretudo partem do Deus Criador, Daquele que escolheu livremente “pintar” os tucanos e as pitayas. Ele se ocupou com o estético, nós como criaturas não podemos ignorar esse aspecto. O que aconteceria se a igreja oferecesse capelania e/ou um espaço de baixo custo para artistas locais? A igreja precisa abrir a sociedade por meio de perguntas e atitudes que estão sendo evitadas. É necessário que haja um florescimento dos artistas cristãos, assim como um apoio coletivo das iniciativas geradas por eles. Não relegando o aspecto e os artistas a um “segundo escalão” ou os exaltando excessivamente, como se fossem uma classe especial. Há um lugar para os artistas junto com/a todos aqueles que glorificam a Deus por meio das suas habilidades, dons e talentos. Se a igreja não abraça, não apoia, não direciona e não discipula esses artistas, eles serão influenciados e apoiados por aqueles que já se submeteram ao espírito de sua época.


[1] Kuyper, 2016, p. 88.

[2] Kuyper, 2016, p. 92.

[3] Kuyper, 2016, p. 97.

[4] Rookmaaker, 2018. p. 128.

[5] Rookmaaker, 2018, p. 130.

[6] Rookmaaker, 2019, p. 137.

[7] Rookmaaker, 2018, p. 139.

[8] Introdução à cosmovisão cristã: vivendo na intersecção entre a visão bíblica e a contemporânea, de Michael W. Goheen e Craig G. Bartholomew, publicado por Vida Nova: São Paulo, 2016, p. 228-235. Traduzido por Marcio Loureiro Redondo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ROOKMAAKER, Hans R. Filosofia e estética. Tradução William Campos da Cruz Cruz. 1ª ed. Brasília – DF: Editora Monergismo. 2018.

KUYPER, Abraham. Sabedoria e prodígios: Graça comum na ciência e na arte, Tradução Fabrício Tavares Moraes. 1ª ed. Brasília – DF: Editora Monergismo. 2016.