Escrito por Marlon Girardello, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020
Pois Dele, por Ele e para Ele são todas as coisas. A Ele seja a glória para sempre! Amém.
Romanos 11:36
INTRODUÇÃO
As perguntas últimas das pessoas demonstram como há um interesse que aponta para o transcendente. Com isso surge a busca do sentido e do significado. O anseio dos cristãos em trazer sentido à sua fé por meio da busca de evidências da existência de Deus não é de hoje e remonta desde os “pais da Igreja”, assim como o dos ateus em tentar desqualificar a plausibilidade de Sua existência também não o é. Porém, tivemos um problema no que tange os cristãos. Ao decorrer da história utilizou-se de lacunas de entendimento para colocar Deus nelas e explicar que Deus era a resposta para aquelas lacunas. O que se mostrou ineficaz, haja vista, que ao decorrer da evolução da ciência, novas descobertas foram feitas e essas lacunas que estavam sendo preenchidas por Deus foram então preenchidas de maneira mais plausível com as descobertas científicas. O que era para ser uma abordagem que gerava glória para Deus e o engrandecia, se tornou um esvaziamento, pois Deus foi sendo diminuído, relegado, pela maneira que a apologética, na abordagem clássica da teologia natural, foi conduzida. Pela fé ter avançado sobre a esfera da ciência, no seu devido tempo a ciência recobrou esse território. As cosmovisões “cristãs” que tentaram fundir, ser independente ou até renegar a ciência se demonstraram frágeis em suas bases, pois viram na ciência um avanço que não pode ser encaixado em suas perspectivas. Deus se tornou cada vez menor, pois cada vez menos lacunas podiam ser preenchidas por Ele nestas visões.
O presente artigo busca elucidar uma via que relaciona fé e ciência, e que pode nos dar uma cosmovisão mais completa e robusta para uma abordagem apologética que parte de uma teologia natural distintamente cristã. Onde todo processo natural é mergulhado em uma compreensão sobrenatural de todas as coisas reveladas na Palavra de Deus e paradigmaticamente na pessoa de Cristo e sua obra.
AS TEOLOGIAS NATURAIS
Ao longo da história várias abordagens de teologia natural foram sugeridas, mas as que ainda ecoam em nossos dias foram formadas por pressão dos movimentos iluministas. A teologia cristã, na época onde o Iluminismo se tornou proeminente, foi pressionada a desenvolver uma abordagem que demonstrasse suas crenças centrais baseadas em critérios publicamente aceitos e universalmente acessíveis. Ou seja, uma abordagem que apelasse a natureza e a razão[1]. Neste período da história, a tendência era uma concepção que o significado e a interpretação da natureza eram autoevidentes. Os autores iluministas consideravam a natureza uma fonte potencialmente pura e imaculada de sabedoria natural.
Entretanto, encontramos problemas básicos nessas abordagens que foram desconsiderados ao sugeri-las. McGrath aponta que “o Iluminismo tratou a percepção como um mero ato de interpretar o único significado da natureza com base em uma visão objetiva alcançada por meios racionais, a fim de produzir uma representação ‘alocêntrica’ da realidade e isenta de dogmas”[2]. Esta visão iluminista deixa de considerar que a racionalidade é algo que se desenvolve, que se forma. Ler a natureza é como ler um livro, a interpretação do texto é algo adquirido, exige uma habilidade adquirida. Um leitor ingênuo, sem um conhecimento prévio ou pressupostos necessários pode ler uma ficção como sendo uma narrativa histórica, assim é com a natureza também.
As tentativas de interpretar a natureza são influenciadas pelos pressupostos daqueles que a enxergam, não há um conceito fixo do que é natureza. Há uma vasta variedade de interpretações e uma flexibilidade conceitual. Isso é de fácil observação se questionarmos um ateu, um cristão e um panteísta sobre o que eles entendem por natureza. Seus pressupostos e suas culturas gerarão conceitos profundamente divergentes, sendo influenciados por ideologias conscientes ou inconscientes. McGrath comenta que “a ideia de uma interpretação da natureza livre de pressupostos é tão problemática quanto a de uma interpretação da Bíblia livre de pressupostos”[3]. Portanto, a teologia natural clássica, que visa ao olhar para natureza e pela razão encontrar evidências irrefutáveis de Deus, é filha do Iluminismo. Suas características e pressupostos são influenciados profundamente pelas circunstâncias culturais e intelectuais. Ou seja, são fruto do zeitgeist e não encontram ressonância bíblica, pois não partem do Deus triúno, mas da razão pura humana. É uma tentativa autônoma de explicar a natureza sem a revelação de Deus e que ignora os efeitos noéticos da queda que tiraram do homem essa possibilidade de uma teologia natural pela razão pura.
Tendo isto em vista, é necessário uma nova abordagem que parta justamente da ideia cristã de um “Deus que se revela”. É a revelação de Deus que dá sentido à natureza. Ou como C. S. Lewis afirma “eu acredito no cristianismo como acredito que o sol nasceu, não apenas porque o vejo, mas porque por meio dele eu vejo todas as coisas”[4]. A fé cristã possibilita uma maneira particular de enxergar a natureza e que permite a ela ser percebida como um reflexo da sabedoria e glória divinas. Uma teologia natural genuinamente cristã parte de uma cosmovisão cristã, onde o Deus que se revela é o “óculos” pelo qual enxergamos e não a razão humana. Ou seja, embora a natureza possa ser observada por todos, a solução para que seja devidamente interpretada não é oferecida pela ordem natural das coisas. Conforme McGrath “o acesso para o ‘mistério’ do verdadeiro significado da natureza é mediada pela tradição cristã. Aqueles que estão ‘de fora’ […] nunca ‘verão’ o verdadeiro significado do segredo revelado da natureza”[5]. Temos então nesta nova abordagem, um contraste com a abordagem iluminista que sustentava que a natureza poderia ser entendida de forma clara, distinta e objetiva por todos, por intermédio do uso criterioso da razão humana não assistida.
O ENRIQUECIMENTO DA COSMOVISÃO CRISTÃ
A abordagem da Teologia Natural que parte do “Deus que se revela” não quer fundir, renegar ou ser independente, mas busca ressonância e relação entre as esferas de atuação. A razão continua tendo o seu papel no desenvolvimento de uma cosmovisão mais robusta. A fé e a ciência não estão em conflito. McGrath exemplifica da seguinte forma:
“Imagine um bolo submetido à análise científica, levando a uma discussão completa sobre sua composição química e as forças físicas que a mantêm unido. Essa discussão nos informa que o bolo foi feito para celebrar um aniversário? Será que isso é inconsistente com a análise científica? É claro que não. A ciência e a teologia fazem perguntas distintas.”[6]
Temos esferas soberanas e cada qual gera perguntas distintas. A biologia pode explicar a formação da vida no ventre materno, porém não está em posição de argumentar sobre o sentido da vida. Assim como a cosmovisão cristã pode se ocupar em argumentar sobre o sentido da vida, mas não pode colaborar com a explicação física sobre partículas subatômicas. A ciência só procura descrever as formas e processos do mundo e se recusa a comentar sobre questões de significado e valor. Ela busca tornar o mundo em pedaços para que possamos ver como as coisas funcionam. Conforme afirma McGrath, “Se há um significado no mundo, a ciência simplesmente não será capaz de revelá-lo”[7], as teorias científicas não explicam o mundo, só explicam seus fenômenos.
A cosmovisão cristã, nesta nova abordagem de teologia natural sugerida por Alister McGrath, é enriquecida, pois se relaciona com a ciência naquilo que cabe a sua esfera de soberania. Passando a enxergar Deus não após verificar algo, como se algo fosse a prova de Deus, mas vendo tudo por meio Dele. Ele como fundamento da racionalidade do mundo e como Aquele que nos capacita a compreender essa racionalidade. A cosmovisão cristã e a ciência nos ajudam a enxergar com mais clareza o quadro geral do universo e de nós mesmos. Elas juntas se permitem uma enriquecer a outra. O fato é que a crença em Deus faz sentido em si mesma e dá sentido a tudo mais. Uma teologia natural que parte da revelação de Deus fornece uma estrutura de sentido que ilumina as sombras da realidade, não porque naturalmente achamos sentido por meio da razão, mas porque foi nos revelado. McGrath citando Paul Murray afirma que “Deus é o buraco da agulha através do qual todos os fios do universo são puxados”[8].
A TEOLOGIA NATURAL COMO RECURSO APOLOGÉTICO
A nova proposta de abordagem de teologia natural de McGrath encontra bastante ressonância nos pensamentos de C. S. Lewis. McGrath afirma que “o tratamento apologético de Lewis geralmente assume a forma de identificar uma observação ou experiência humana comum e, em seguida mostra como ela se encaixa, natural e plausivelmente, dentro da maneira cristã de ver as coisas”[9]. Lewis em seu relato de conversão justamente atribui sua conversão do ateísmo para o cristianismo a essa abordagem de encaixe empírico. Para Lewis o “casaco” da cosmovisão cristã veste melhor do que a ateísta. Ou seja, a cosmovisão cristã responde melhor e se adapta melhor a realidade na qual vivemos. Longe de ser uma prova, o encaixe empírico é um indício satisfatório, que aplicado cumulativa e contextualmente demonstrará que por ser satisfatoriamente acomodado torna plausível essa visão. McGrath afirma que “o intuito, portanto não é ‘provar’ as crenças cristãs fundamentais, mas demonstrar a consonância ou afinidade entre a teoria e a observação, resultando em um compromisso maior com a teoria que é capaz de explicar e esclarecer boa parte do que se observa”[10]. É encontrar na realidade ressonância com aquilo que a narrativa bíblica afirma. Encontrar validação da realidade na cosmovisão bíblica. A proposta não é através das ciências empíricas encontrar validação para a cosmovisão bíblica e sim através da cosmovisão bíblica demonstrar que há ressonância com a realidade (acomodação).
Uma interpretação correta da natureza não é autoevidente. A natureza é um “mistério”, algo que precisa ser revelado. Jesus em suas parábolas demonstra isso. Apesar da utilização de figuras conhecidas como de ovelhas, sementes e fermento, nem todos entendiam o que Ele falava (Mc 4:12). A pregação de Jesus sobre o reino de Deus demonstra a capacidade da natureza, quando interpretada corretamente, de revelar as coisas de Deus. As parábolas deixam claro que o mundo empírico pode funcionar como meio pelo qual as boas novas do reino de Deus são pregadas, isso se devidamente interpretadas. As percepções sobre Deus estão tanto no por intermédio como na natureza. McGrath afirma que as declarações ‘Eu sou’ podem ser vistas expressando a ideia de que Deus é conhecido na natureza […]. Se as declarações ‘Eu sou’ devem de fato estar relacionadas à doutrina da encarnação, podemos falar da natureza sendo ornada […] com a natureza e a marca de Deus.
Há portanto um caráter apologético nesta abordagem de teologia natural, haja vista, que ao mesmo tempo que demonstra seu caráter cumulativo, ou seja, de ocorrências onde há um encaixe empírico na realidade, apela também para uma beleza que gera uma atração intrínseca capaz de se antepor ao intelecto humano.
Quando olhamos o mundo por meio do Deus triúno, há uma clareza e um colorido que só podem ser contemplados por aqueles que receberam uma revelação especial. Nesse sentido não colocamos as pessoas diante de evidências, mas as chamamos a refletir quanto à plausibilidade e o encaixe proposto pela cosmovisão cristã que parte do “Deus que se revela”. A defesa dessa abordagem repousa justamente sobre esse ponto. McGrath comenta que para Lewis o cristianismo ajudou a entender complexidades do mundo ou da experiência humana que no ateísmo ele não encontrava respostas. Para lidar com as complexidades da vida e da realidade precisamos mais do que ciências empíricas e de razão humana.
CONCLUSÃO
Ao olhar ao nosso redor, contemplamos algo que excede a racionalidade pura. Cristo é a lente que torna o que observamos inteligível, é por meio dEle que uma teologia natural cristã se torna genuína e prática. Uma teologia natural só pode ser verdadeiramente cristã quando rompe o dualismo de natureza/graça e enxerga a realidade do todo por meio do Deus que se revela. O Logos se fez carne! Jesus intencionalmente se utilizou, em suas parábolas, das coisas criadas (videira, semente, fermento, etc) para demonstrar que mais do que ilustrações, Ele está afirmando que essas coisas são partes do Seu reino, não de maneira abstrata ou alegórica, mas integral.
Os cristãos podem descansar cognitivamente em uma fé que encontra ressonância com a realidade e que demonstra um encaixe, até mesmo estatístico, notável. Mesmo nos momentos mais triviais estaremos cercados de lembretes significativos de quem Deus é e de quanto Ele merece o nosso louvor. Porque Dele, por Ele e para Ele são todas as coisas. A Ele seja dada a Glória para sempre!
[1] McGrath, 2019, p. 18.
[2] McGrath, 2019, p. 164.
[3] McGrath, 2019, p. 169.
[4] LEWIS, C. S.; WALMSLEY, Lesley, ed. Essay collection; faith, christianity and church. Londres: Collins, 2000. p. 21.
[5] McGrath, 2019, p. 140.
[6] McGrath, 2015, p. 71.
[7] McGrath, 2015, n.p.
[8] McGrath, 2015, p. 15.
[9] McGrath, 2020, p. 29.
[10] McGrath, 2019, p. 226.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MCGRATH, Alister. Teologia natural: uma nova abordagem. Tradução de Marisa K. A. Siqueira Lopes – São Paulo: Vida Nova, 2019.
MCGRATH, Alister. Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e sentido das coisas. Tradução de Onofre Muniz – São Paulo: Hagnos, 2015.
MCGRATH, Alister. C. S. Lewis, Richard Dawkins e o sentido da vida. Tradução de Francisco Nunes – Viçosa: Ultimato, 2020.