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Sob o controle do amor: a relação entre cosmovisão e as afeições

Escrito por Daniel Simões, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2021

INTRODUÇÃO

“Acima de tudo, guarde o seu coração, pois dele depende toda a sua vida” (Provérbios 4:23), é o ultimato trazido pelo sábio. Não de maneira inadvertida, essa verdade é por vezes esquecida e o compromisso do coração torna-se elemento a que se presta pouca atenção na condução da vida, de modo que entregas, concordâncias e sujeições são construídas sem o devido senso de intencionalidade.

O coração tem sido chamado de centro de controle da pessoa, motivo pelo qual a importância de guardá-lo é destacada na citação. Essa verdade bíblica deu norte a Sire ao revisitar a definição de cosmovisão e identificar a necessidade de inserir justamente o aspecto afetivo, mais que o cognitivo, para construir a maneira pela qual concebemos e interpretamos todas as coisas. Ele disse que “cosmovisão não é só um conjunto de conceitos básico, mas uma orientação fundamental do coração”[1], motivo pelo qual este artigo pretende afirmar o caráter afetivo da cosmovisão[2] e, desta maneira, apontar o amor a Deus, resultado do novo nascimento, como início inequívoco do caminho para uma cosmovisão coerente à fé cristã.

O AMOR É PRÉ E SUPRA TEÓRICO

Smith, sintetizando o pensamento de Dooyeweerd, reconhece o aspecto religioso por trás do que se acredita, pois religião “representa o compromisso suprateórico do coração”[3]. Essa conceituação visava demonstrar uma filosofia radicalmente cristã, que não tivesse por base uma teologia particular, antes, fosse alicerçada numa filosofia nutrida por um comprometimento do coração para com Deus.

Ao se lançar a esse desafio, a postura de Dooyeweerd não é inovadora; é, antes, honesta, pois reconhece o caráter afetivo na edificação das aprovações e reprovações, concordâncias e discordâncias, obediências e rebeldias, gestos comumente omitidos pelos apóstatas, que advogam uma espécie de neutralidade na construção do saber.

Plantinga corrobora com a ideia na afirmação de que “uma pessoa tem amores e ódios, aspirações e desejos; aprova algumas coisas e desaprova outras; quer que as coisas sejam de certo modo. Poderíamos exprimir essa ideia dizendo que as pessoas têm afeições”[4].

A ideia de Plantinga é eco da sabedoria proverbial quando diz que “o coração reflete quem somos nós” (Provérbios 27:19), e, assim, afirma a natureza espiritual daquilo que se ama.

AMORES E DIREÇÕES

O conceito foi ainda mais profundamente explorado por Agostinho ao dizer que “dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial”[5]. Pearcey opina que a metáfora falava sobre dois sistemas de pensamento e lealdade.

“Ajudamos a construir a Cidade de Deus quando nossas ações são inspiradas e dirigidas pelo amor de Deus, sendo oferecidas ao seu serviço. Construímos a Cidade do Homem sempre que nossas ações são incentivadas por amor-próprio e servem a propósitos pecaminosos”[6].

Não é estranho, então, reconhecer a ausência de neutralidade diante de qualquer realidade exposta e afirmar uma motivação espiritual influenciando aquilo que será aceito por verdadeiro.

Longe de ser uma realidade dissociada de resultados práticos, Koyzis sugere que as pessoas estruturam sua sociedade à sua própria imagem e, também lidando com a ideia das cidades apresentada por Agostinho, assevera que uma comunidade se une em torno dos objetos comuns do seu amor.

“Se, por um lado, os membros de uma comunidade amam a Deus e procuram fazer a sua vontade, as estruturas que ordenam sua vida comunitária serão reflexos disso. Por outro lado, se seus membros amam coisas como a riqueza material, os direitos individuais e o Estado todo-poderoso, é esse amor comum que permeará e afetará o bem-estar da comunidade. Se seus corações buscarem descanso nas coisas que não trazem descanso de fato, a contínua falta de sossego refletir-se-á nas instituições políticas e sociais. Em suma, o culto aos ídolos tem consequências práticas na vida comum dos membros de uma comunidade”[7].

É NECESSÁRIO NASCER DE NOVO

Apesar de a incoerência ser uma possibilidade aos filhos de Deus, o novo nascimento se apresenta como um inequívoco início de caminho, pois aos que usufruem dessa experiência, há garantias de um novo coração em cujo centro estará a inclinação para amar a Deus. Essa possibilidade não está aberta a todos, é o que Jesus deixa claro na repreensão registrada em João 8.42: “Se Deus fosse o Pai de vocês, vocês me amariam”. Piper sintetiza a ideia declarando que “Jesus veio ao mundo como Filho unigênito e divino de Deus para que pecadores como nós se tornassem filhos não divinos de Deus, com coração e maneiras semelhantes às dele”[8]. É ao nascer de novo que Jesus nos dá privilégios e tendências de filhos e no âmago dessas tendências está o amor por Jesus[9], capaz de ordenar os demais amores e balizar tudo a ser assimilado.

CONCLUSÃO

É, portanto, quando se ama genuinamente a Deus que se pode desenvolver as lentes apropriadas para interpretar a realidade bem como construir opiniões e conceitos. Contudo, para tal empreendimento, faz sentido reproduzir uma oração de Agostinho em que, seguida da afirmação do seu amor por Deus, implora por cura, capacidade de compreensão e proximidade com o Mestre.

“Amo somente a ti, sigo somente a ti, busco somente a ti, estou disposto a servir somente a ti e desejo estar sob tua jurisdição, porque somente tu governas com justiça. Manda e ordena o que quiseres, mas sana e abre meus ouvidos para ouvir tuas palavras; sana e abre meus olhos para enxergar os teus acenos. Afasta de mim a ignorância para que te reconheça. Dize-me para onde devo voltar-me para ver-te e espero fazer tudo o que mandares. Suplico-te recebe teu fugitivo, Senhor e Pai clementíssimo; já sofri muito; já servi demais aos teus inimigos, os quais sujeitas sob teus pés; por muito tempo fui ludibriado por falácias. Recebe-me, que sou teu escravo fugindo deles, que me receberam, estranho a eles, quando eu fugia de ti. Sinto em mim que devo voltar a ti. Abra-se tua porta para mim, que estou batendo. Ensina-me como chegar a ti. Nada mais tenho que a vontade. Nada mais sei senão que se deve desprezar as coisas passageiras e transitórias e procurar o que é certo e eterno. Faço-o, Pai, porque é a única coisa que sei; porém, ignoro como chegar a ti. Ensina-me, mostra-me, oferece-me as provisões para a viagem. Se é com fé que te encontram os que se refugiam em ti, dá-me fé; se é com a força, dá-me força; se é com ciência, dá-me ciência. Aumenta em mim a fé, aumenta a esperança, aumenta o amor. Ó admirável e singular bondade tua!”[10].


[1] SIRE, J. Dando Nome ao Elefante. Tradução de Paulo Zacharias e Marcelo Herberts. Brasília: Monergismo, 2019. p. 20.

[2] Outra forma de dizer seria: “demonstrar que nossas percepções e interpretações da realidade são fruto daquilo a que amamos”.

[3] DOOYEWEERD, H. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução de Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. Brasília: Monergismo, 2018. p. 30.

[4] PLANTINGA. A & TOOLEY M. Conhecimento de Deus. Tradução de Desidério Murcho. São Paulo: Vida Nova, 2014. p. 12.

[5]  AGOSTINHO. A Cidade de Deus Contra os Pagãos. 4ª ed. Tradução de Oscar Paes Lemes. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. XIV, XXVIII, 2. p. 169.

[6] PEARCEY, N. Verdade absoluta: libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural. Tradução de Luis Aron. Rio de Janeiro: CPAD, 2020. p. 43.

[7] KOYZIS, D T. Visões e ilusões políticas. Uma análise & crítica cristã das ideologias contemporâneas. Tradução de Lucas Freire. São Paulo: Vida Nova, 2014. p. 34.

[8] PIPER, J. O que Jesus espera de seus seguidores: mandamentos de Jesus ao mundo. Tradução de Maria Emília de Oliveira. São Paulo: Editora Vida, 2008. p. 57.

[9] idem ibid.

[10] AGOSTINHO. Solilóquios: a vida feliz. Tradução de Adaury Fiorotti. São Paulo: Paulus, 2016. pp. 19-20.


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REFERÊNCIAS

AGOSTINHO. A Cidade de Deus Contra os Pagãos. 4ª ed. Tradução de Oscar Paes Lemes. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2001. Parte II.

________ Solilóquios: a vida feliz. Tradução de Adaury Fiorotti. São Paulo: Paulus, 2016. 157 p.

DOOYEWEERD, H. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução de Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. Brasília: Monergismo, 2018. 276 p.

KOYZIS, D T. Visões e ilusões políticas. Uma análise & crítica cristã das ideologias contemporâneas. Tradução de Lucas Freire. São Paulo: Vida Nova, 2014. 352 p.

PEARCEY, N. Verdade absoluta: libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural. Tradução de Luis Aron. Rio de Janeiro: CPAD, 2020. 524 p.

PIPER, J. O que Jesus espera de seus seguidores: mandamentos de Jesus ao mundo. Tradução de Maria Emília de Oliveira. São Paulo: Editora Vida, 2008. 429 p.

PLANTINGA. A & TOOLEY M. Conhecimento de Deus. Tradução de Desidério Murcho. São Paulo: Vida Nova, 2014. 334 p.

SIRE, J. Dando Nome ao Elefante. Tradução de Paulo Zacharias e Marcelo Herberts. Brasília: Monergismo, 2019. 246 p.