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Um mundo polarizado e a alternativa do amor na filosofia política de Agostinho

Escrito por Gabriel Pereira de Carvalho, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2021

INTRODUÇÃO

O presente ensaio tem como objetivo demonstrar uma resposta às polarizações da contemporaneidade a partir de pontos presentes na filosofia política de Agostinho de Hipona. Para tal fim, primeiro se analisa a impossibilidade de ser neutro em tempos de polarização, demonstrando, a partir dos pressupostos de Herman Dooyeweerd, que inexiste neutralidade (crítica à autonomia da razão). Então, ao demonstrar-se que não é possível ser inerte perante as polarizações, é necessária uma resposta urgente, e satisfatória, para se portar, falar e posicionar perante esse espírito do tempo polarizador. A partir de tal conclusão, se analisa os pressupostos da filosofia política presente nos escritos de Agostinho de Hipona, traçando um ideal de política a partir da noção de amor fraternal ao próximo. Tais pressupostos, junto a um sincretismo aos escritos de Hannah Arendt sobre Aurélio Agostinho, constrói-se uma noção de impossibilidade de aniquilacionismo na política, mas, sim, de uma obrigatoriedade social e moral de tolerância para o outro, por meio do amor ao próximo, sendo Deus a figura central desse amor.

A IMPOSSÍVEL NEUTRALIDADE FRENTE ÀS POLARIZAÇÕES

No Brasil, vivemos em tempos de cólera. A polarização nas esferas da política, igreja e até mesmo familiar tem se tornado a evidência do que corresponde ao zeitgeist de nossa época. Os conflitos se pautam, cotidianamente, na defesa de ideologias ou narrativas, porém não através de um diálogo, mas, sim, da eliminação e invalidação da pessoa que está “do outro lado”.

Contudo, há uma razão para essa polarização, bem como uma esperança de superá-la. De forma geral, a percepção da realidade não é neutra, nem jamais poderia ser. Primeiramente, porque a “realidade” e as “convicções” de cada indivíduo é são o resultado de uma trama simbólica-imaginária, a qual é influenciada através dos estímulos recebidos por meio de sua formação (ou seja, como a família cria essa pessoa, qual educação teve, entre outros fatores).

Além disso, outro fator que demonstra a impossibilidade de ser “neutro” é a crítica à autonomia da razão, elaborada por Herman Dooyeweerd. Resumidamente, o jusfilósofo holandês trabalha em sua obra a noção de que inexiste a dita autonomia da razão, explicitando que todos possuem compreensões pretéritas que justificam, influenciam ou embasam certos pensamentos, sejam esses o Cristianismo, Humanismo, Ateísmo e diversos fatores (DOOYEWEERD, 2018).

Para o autor, não há problema em se ter fatores de influência, mas sim em dizer que existe uma autonomia da razão, advinda de um pensamento “neutro”. Então, a partir de tais pressupostos, é possível observar a impossibilidade da neutralidade em meio as polarizações que nos circundam. Contudo, ainda sim é necessária uma resposta de pacificação/resolução a tal dilema que tem gerado rachaduras profundas no mundo ocidental, nas mais diversas esferas.

A partir de tais pressupostos, é necessário se atentar a à filosofia política presente em Agostinho, e mais especificamente, em seus contornos cristãos. Em Confissões, sua “autobiografia” filosófica, observa-se a construção de um ideal de indivíduo que se faz necessário demonstrar.

A FILOSOFIA POLÍTICA EM AGOSTINHO DE HIPONA

Na obra, por diversas vezes, Agostinho relata que antes de conhecer a Deus, não amava a sua alma com o amor pleno, que traria a felicidade, mas, pelo contrário, o seu amor era dedicado a coisas terrenas, passageiras e voláteis. As vontades antes de sua conversão eram pecaminosas e desordenadas, como o próprio filósofo apontava, “Gostando de amar, procurava um objeto para esse amor: odiava a minha vida estável e o caminho isento de riscos, porque sentia dentro de mim uma fonte de alimento interior” (AGOSTINHO. 2017, p. 52)

Assim, vemos que o amor às coisas terrenas traz o pecado, as paixões levianas, e com uma liberdade poética autoral, a volatilidade dos gostos e ferocidade do ser em atacar tudo aquilo que se opõe ou discorda de tais paixões terrenas. Inclusive, tais paixões, que podemos chamar de ideologias, independente de seu aspecto político, condicionam a percepção da realidade e fatores externos, resultando em uma cegueira. Não composta pela escuridão de não se ver nada, mas uma “cegueira branca”, nos moldes de Saramago, onde a única coisa visível é a própria ideologia, a própria paixão terrena, não sendo mais possível ver o outro.

Contudo, o amor cristão, de Deus para com o homem, do homem para com Deus, e do Homem para com o próprio Homem, a partir de Deus, altera essa realidade de egoísmo e idolatria das ideologias. Tal análise foi bem percebida pela cientista política judia, Hannah Arendt, em sua tese de doutorado, O conceito de amor em Santo Agostinho (1997).

Em sua obra, a cientista política analisa o amor do homem para com Deus, e sua forma de expressão e devoção, relatando inclusive a necessidade de renúncia ao amor mundano, a paixão pelas coisas terrenas. Mas o ponto principal abordado por Hannah, e consequentemente o ponto que tem a maior importância no presente texto, é o amor ao próximo em seu sentido político, por meio de Deus.

Nesse contexto, o amor ao próximo, segundo Hannah, é o que liga o homem, de fato, a Deus. Pois exprime um amor verdadeiro, de caridade, amando todos os homens sem distinção. O amor que o homem precisa ter pelo outro se dá pelo fato de esse ter sido criado pelo mesmo Deus. Assim, inexiste diferença e critérios para o amor ao outro. Esse amor relacional exige do homem a sua completude, nas palavras da própria autora:

A verdadeira sociedade está fundada sobre o fato da fé comum. […] fundada sobre qualquer coisa que por princípio não é o mundo, é deste modo comunidade com o outro não porque ele esteja aí realmente no mundo, mas devido a uma possibilidade específica; depois, como esta possibilidade é a mais radical do ser do homem, esta comunidade da fé comum que se realiza no amor mútuo, exige o homem por inteiro […] tal como Deus o exige. (ARENDT, 1997, p. 152).

Logo, o amor pelo próximo e a sua necessidade máxima em sociedade traz uma resposta à impossibilidade de neutralidade frente às polarizações, mas, principalmente, uma resposta à polarização em si. Isso porque tal amor fraternal traz uma obrigação contínua, de que o outro não é, e não pode ser, o seu inimigo. Nas palavras de Agostinho, “o próximo é o homem a quem devemos prestar serviço de misericórdia, caso esteja em dificuldade, ou a quem devemos prestar ajuda, caso necessitasse” (AGOSTINHO, 2002, p. 77).

Assim, a filosofia política de Agostinho é assentada no amor cristão e a sua obrigação para com todos. Para o pensamento agostiniano, o amor constitui-se como o motor da ética. E a aplicação dessa em nossos tempos se faz necessário.

Afinal, a filosofia agostiniana, e [as] suas bases na teologia cristã e o amor intrínseco, funciona como um remédio satisfatório ao problema da miserabilidade humana nas esferas de polarização. Isso porque corresponde a uma alternativa à “cegueira branca” ideológica, na qual o indivíduo não enxerga, ou aceita, o que for diferente da “clareza” do seu pensamento ou convicção.

O amor na filosofia de Agostinho confronta o não enxergar, o aniquilacionismo do inimigo. Incide cirurgicamente nas falhas sociais, demonstrando que, mesmo que alguém discorde de duas ideias e visões políticas, não se trata de um inimigo. Com tal pressuposto, a ironia, a sátira, os ataques, na esfera pública se tornam inválidos. Pois a partir do momento em que amar o outro, tolerá-lo, e principalmente, auxiliá-lo, se torna uma obrigação e requisito para com o Amor de Deus, não há espaço para inimigos.

A ordem social se torna uma extensão da ordem moral, pautada na coesão de tolerância. A moralidade cristã de servir ao outro, na concepção agostiniana, é o princípio básico para uma vida em comunidade. O amor proposto na filosofia de Agostinho, dentro da política, é um atentado direto ao zeitgeist e suas consequências na sociedade ocidental.


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REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Aurélio. A doutrina cristã: manual de exegese e formação cristã. Trad. Ir Nair de Assis Oliveira, csa. São Paulo: Paulus, 2002.

_____________ Confissões. Trad. Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2017.

ARENDT, Hannah. O conceito de amor em Santo Agostinho. Trad. Alberto Pereira Diniz. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental. Trad. Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. Brasília. Monergismo, 2018.

PINHEIRO, Luis Antônio. O compromisso ético-político em Santo Agostinho. In: VV.AA. Oração e compromisso em Santo Agostinho. São Paulo: Fabra, 1996.

1 comment

  1. Myzia Michaelle

    Uau, que texto primoroso! Uma reflexão que se faz necessária nos dias de hoje.

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