Resenha escrita por João Vítor Oliveira da Silva, estudante do Programa de Tutoria 2020 – Turma Essencial
KAISER, W. C.; SILVA, M. Introdução à Hermenêutica Bíblica: como ouvir a Palavra de Deus apesar dos ruídos da nossa época. 3. ed. Trad. Paulo C. N. dos Santos; Tarcízio J. F. de Carvalho; Suzana Klassen. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.
O livro Introdução à Hermenêutica Bíblica, escrito pelos professores Walter C. Kaiser, Jr, e Moisés Silva, tem por objetivo prover tanto os leitores leigos quanto os teólogos com as ferramentas mais básicas para a interpretação dos textos bíblicos. Tendo sido publicada em 1994, a obra contém reflexões pertinentes relacionadas aos principais desenvolvimentos no campo da hermenêutica bíblica da segunda metade do século XX, a saber, a exacerbação do individualismo e da valorização da liberdade e da iniciativa pessoal. Nesse contexto, não apenas a questão do significado, mas a questão da relevância da mensagem bíblica assume novas conotações (p. 10). Ao longo de quinze capítulos, divididos em quatro partes, os autores buscarão não apenas descrever os princípios básicos da ciência e da arte da interpretação bíblica, mas o farão de modo a dialogar com o novo estado de coisas e a responder os desafios por ele levantados
Na primeira parte, intitulada “A busca por significado: orientações iniciais”, Kaiser e Silva tratarão daquilo que o intérprete precisa saber antes de se debruçar sobre a Bíblia propriamente dita. No capítulo um, Silva explica que a hermenêutica é necessária devido à dupla autoria das Escrituras, propondo o método exegético gramático-histórico como um facilitador para lidar com as complexidades advindas da autoria humana, por um lado (p. 19), e alguns princípios especiais que lidam com as dificuldade provenientes da autoria divina, por outro (p. 24-25). No capítulo dois, Kaiser introduz o tema da busca por significado de uma perspectiva histórica (p. 28-30) e lista uma série de definições e conceitos que auxiliarão a leitura do restante do livro (p. 31-42). Por fim, no capítulo três, Silva adverte quanto às principais falácias identificáveis em diversos trabalhos de interpretação, principalmente no que toca os usos equivocados da linguagem.
Já na segunda parte, denominada “Compreendendo o texto: o sentido nos gêneros literários”, os autores adentram o campo da interpretação bíblica em si. Especificamente, Kaiser e Silva abordam os principais gêneros literários encontrados nas Escrituras, quais sejam a narrativa (cap. 4), a poesia e a literatura de sabedoria (cap. 5), os evangelhos (cap. 6), as epístolas (cap. 7) e a profecia (cap. 8). Em cada um dos capítulos, seu autor mostra a natureza daquele tipo de literatura, destaca suas características distintivas em relação a outros gêneros literários, e fornece princípios práticos para a interpretação das passagens que se valem daquele gênero particular. Ao dedicarem uma parte inteira para a análise dos gêneros literários, os autores estão de acordo com uma das asas do método exegético favorecido por eles, o gramático-histórico.
Na terceira parte, chamada “Respondendo ao texto: significado e aplicação”, inteiramente escrita por Kaiser, o autor dirige os holofotes para as diferentes maneiras pelas quais podemos utilizar a Bíblia. O capítulo nove trata do uso devocional da Bíblia, através do qual nos entregamos, mediante o Espírito Santo, ao que Deus quer nos falar através de sua Palavra (p. 158). No capítulo dez, Kaiser discorre sobre a leitura cultural das Escrituras, isto é, de que forma podemos nos afastar da cultura que nos cerca hoje e nos aproximarmos da cultura original em que certa passagem foi escrita, de modo a entender e aplica a mensagem bíblica para nossas vidas. O último capítulo deste bloco, o onze, fala do uso teológico da Bíblia, aquele que fazemos quando queremos entender o que a Bíblia fala sobre quem Deus é o que Ele faz, estabelecendo doutrinas para tanto. Novamente, é interessante notar que Kaiser não adota uma abordagem excessivamente prática, mas contribui com discussões teóricas e contemporâneas muito importantes para cada um dos assuntos sobre os quais ele escreve.
Na quarta e última parte, de nome “A busca por significado: outros desafios”, é um mergulho mais direto na história da hermenêutica, ressaltando seus aportes e principais desafios. O capítulo doze traz um útil resumo da história da interpretação bíblica, em que Kaiser traz à luz seus principais momentos e as mudanças mais importantes às quais cada etapa levou, de modo a chegarmos nas condições atuais do campo. O capítulo treze é inteiramente dedicado a este estado de coisas, deflagrado na primeira metade do século passado. Silva procede a uma comparação entre as principais escolas de interpretação contemporâneas a partir da análise do triângulo de relações fundamentais da hermenêutica: autor, texto e leitor (p. 229). É neste capítulo que a questão do significado aparece de modo mais pronunciado. No capítulo quatorze, Silva escreve sobre a hermenêutica de Calvino, enfatizado de que modo sua teologia informava sua interpretação bíblica e as qualidades mais importantes de seu método. Finalmente, o livro se encerra no capítulo quinze, em que Kaiser dá o toque final na questão do significado, se debruçando sobre a relação entre este e a aplicação. Sua atenção se detém em como podemos encontrar os princípios gerais por trás das passagens bíblicas e como podemos aplicá-los a nós mesmos.
O livro se destaca pela abrangência de temas tratados. Muitos livros que se propõem introdutórios pecam ao optar por uma ênfase excessiva em apenas um aspecto do tema em tela. No caso da hermenêutica, esse aspecto poderia ser, por exemplo, as ferramentas práticas de interpretação, as questões históricas ou os debates mais recentes. Kaiser e Silva escolheram ampliar o escopo de assuntos tratados, de modo que o leigo que nunca leu qualquer coisa sobre hermenêutica bíblica, ou mesmo o estudante de teologia que deseja conhecer um pouco mais da área, é bem suprido com respeito a quais são os assuntos mais importantes que ele poderá encontrar em sua investigação.
No entanto, pode ser que a maior força da obra seja também sua maior fraqueza. Isso porque, no afã de discutir a natureza do assunto, as diferentes perspectivas, os principais desafios e problemas levantados, as soluções possíveis e propor conselhos práticos, o texto final parece não estar bem fechado e resolvido. Um exemplo é a falta de um tratamento mais específico das leis do Pentateuco e da literatura apocalíptica, e de mais detalhes acerca da segunda asa do método gramático-histórico, o contexto histórico dos textos escriturísticos. Mesmo aquilo que foi destacado como sendo a contribuição singular do livro – a questão da relevância e da busca por significado – aparece apenas esparsamente, não se configurando num fio condutor identificável do trabalho.
A bem da verdade, isso pode decorrer da proposta da obra: ser um manual introdutório para a disciplina da hermenêutica. Como tal, seria plausível que a “intenção dos autores” fosse menos a de defender um argumento que a de expor os tópicos. Não obstante, não seria surpreendente ouvir relatos decepcionados por parte daqueles que se aventuraram na leitura do livro, especialmente daqueles que estão pouco acostumados com obras de conteúdo mais técnico. Os leitores não são ajudados pela qualidade mediana da escrita, que parece presumir o conhecimento dos leitores dos meandros das discussões acadêmicas, e da tradução, que se mostra inconsistente em diversos trechos.
Introdução à Hermenêutica Bíblica é um bom livro no que tange à apresentação dos conceitos e debates mais relevantes do ramo da interpretação bíblica, e por denunciar uma série de problemas advindos da dominância iluminista na história do pensamento ocidental e da reação exagerada por parte da intelectualidade contemporânea a essa dominância, que combateu a ilusão de neutralidade e autonomia da razão com um relativismo anárquico que não propõe nada de positivo. Infelizmente, devido às opções de escrita e composição dos autores, usufruir desses insights será muito difícil para o leitor pouco familiarizado com a literatura acadêmica e seus entraves. Recomenda-se grande paciência e cautela na leitura desta boa obra.
2 comments
Lucas Siqueira
Excelente Texto!
Júlio Figueiredo
Impressionado com a precisão da resenha ao expôs a obra, principalmente quanto às partes negativas.
Muito bom!!