Escrito por Amanda Diniz Vallada, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2023
O cenário contemporâneo da pesquisa acadêmica realizada em universidades e institutos de pesquisa apresenta algumas características desafiadoras para qualquer pesquisador. Grupos de pesquisa muito fechados e segregados uns dos outros, exigências de produtividade, originalidade e ineditismo, o sistema de avaliação das revistas especializadas, a dificuldade em ingressar em programas de pós-graduação e a adequação a exigências sociais e mercadológicas para conseguir fomento à pesquisa são apenas alguns desses aspectos que desafiam a todos os acadêmicos, irrestritamente.
O pesquisador e estudante cristão, contudo, enfrenta, além desses, outros obstáculos, como o anti-intelectualismo de parte considerável da população evangélica brasileira e a inclinação pessoal de separar a vida cristã e sagrada da vida intelectual e secular (DULCI, 2019, n.p.). Por isso, para enfrentar todos esses revezes com fidelidade a Deus, pesquisadores cristãos das mais diversas áreas do conhecimento devem sempre buscar alinhar os compromissos de seu coração em obediência à verdade revelada nas Escrituras.
Com o intento de promover reflexões que auxiliem nessa diligência, este artigo trata de dois pontos fundamentais a serem considerados por acadêmicos cristãos. A partir da literatura sobre cosmovisão cristã condensada em Goheen e Bartholomew (2016), da reflexão filosófica da ciência promovida por Khun (2017 [1962]) e das ponderações sobre a vida intelectual cristã feitas por Dulci (2019), discutiremos a atividade intelectual e o cultivo do conhecimento pensando no pilar criação, queda e redenção. Ainda, refletiremos sobre o reducionismo idólatra que perfaz grande parte do empreendimento científico corrente.
Michael Goheen e Craig Bartholomew (2016) defendem que todos os aspectos da realidade podem ser encarados sobre a base da narrativa bíblica, a crença fundamental que molda todo o nosso pensamento. Desse modo, os cristãos olham para aspectos do mundo e da realidade visando encaixá-los coerentemente na estrutura dessa narrativa, a qual se organiza na tríade criação, queda e redenção. Considerando essa prerrogativa, o exercício intelectual tem propriedades presentes na ação criadora de Deus e com Ele mesmo se relaciona. Afinal, “este mundo foi criado por ele, é sustentado por ele, governado por ele e permeado de sua presença, glória e revelação” (GOHEEN; BARTHOLOMEW, 2016, p. 63). No primeiro capítulo de Gênesis (v. 28), ao olhar para toda a sua boa criação, o Senhor instrui o homem e a mulher a guardar e cultivar o mundo criado. O cuidado com a criação, por sua vez, se desdobra em desenvolver habilidades, conhecimentos e instrumento que deem conta do cumprimento dessa ordem.
Além disso, por sermos seres criados conforme à imagem e semelhança de Deus, compartilhamos, ainda que imperfeitamente, de alguns dos seus atributos. Amor, justiça e sabedoria são características que o Senhor viu por bem compartilhar conosco e podemos empregá-las no cultivo e guarda de sua criação. O pecado e a queda, todavia, rompem o pacto estabelecido entre Deus e a humanidade de tal maneira que cada aspecto e área da nossa vida se torna afetado pelos efeitos dessa disrupção. Isso acontece porque os compromissos do nosso coração foram desalinhados — ao invés de vivermos nossos dias diante de Deus, substituímos o objeto da nossa inclinação religiosa e passamos a adorar elementos e seres da criação (GOHEEN; BARTHOLOMEW, 2016).
A queda, nesse sentido, afeta todas as relações do homem —- a relação com as demais pessoas, a relação com Deus e a relação com a realidade. É por isso que empregamos os nossos dons e talentos (intelectuais e outros) de modo corrompido. Sem ter o poder de agir fora da criação de Deus, o pecado necessita dela para ter alguma eficácia, de maneira que ele “contamina e desfigura cada milímetro da criação”, sem, contudo, destruir (GOHEEN; BARTHOLOMEW, 2016, p. 85). Nessa configuração, a intelectualidade e a ciência frequentemente são ora desprezadas, ora idolatradas.
Antes de prosseguir para o último ponto da tríade criação, queda e redenção, é necessário dedicar algumas linhas para tratar de uma idolatria bastante comum no ambiente acadêmico. Trata-se do reducionismo, que perfaz muitas pesquisas e trabalhos acadêmicos e ocasiona a simplificação excessiva de determinados fenômenos (objetos de estudo) para conformá-los a uma teoria, método ou disciplina. Uma prática científica reducionista menospreza e até mesmo ignora a complexidade da realidade, limitando o aprofundamento do conhecimento sobre um objeto em prol da manutenção do status de uma teoria ou escola de pensamento.
O reducionismo científico frequentemente atravessa aquilo que o filósofo da ciência Thomas Khun denominou de paradigma — “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de alguma ciência” (KHUN, 2017, p. 53). Com o intuito de manter um paradigma em funcionamento coerente, os cientistas afiliados a grupos que compartilham do mesmo paradigma se enraizam em pressupostos teóricos e objetos que podem ser explicados pelos mecanismos e padrões paradigmáticos.
Nesse sentido, se reconhecemos que o nosso coração sempre terá inclinação religiosa, isto é, sempre buscará algo em que depositar devoção, reconhecemos que muitos pesquisadores e acadêmicos têm idolatrado suas teorias e escolas. A convicção é tão vigorosa que muitas vezes esses homens e mulheres comprometem a própria qualidade e o desenvolvimento do conhecimento sobre a realidade no afã de manterem em voga as ferramentas, teorias e técnicas consideradas válidas num paradigma.
No entendimento de Nancey Murphy (2020), uma das maiores contribuições de Khun é a percepção de que as motivações para que um cientista se mantenha em determinado paradigma nem sempre são empíricas ou factuais; muitas delas, na verdade, surgem de seu contexto e experiências prévias fora da pesquisa propriamente dita. Esse fator evidencia que até mesmo uma atividade repetidamente chamada neutra e objetiva está sujeita aos compromissos do coração, o núcleo central do ser humano e a base onde se alicerçam afeição, volição e cognição (DULCI, 2019).
O terceiro ponto do pilar que estamos discutindo diz respeito à redenção de todas as coisas realizada pela obra salvífica de Cristo na cruz. A redenção não alcança somente a salvação da nossa alma, mas contempla, também, a restauração de toda a criação e de todos os aspectos da vida humana a ser definitivamente consumada na segunda vinda de Cristo Jesus. Até chegar esse momento, a regeneração daqueles que são salvos permite cotidianamente que o nosso coração seja redirecionado “rumo aos propósitos para os quais fomos criados” (DULCI, 2019, p. 67), isto é, a glória de Deus, como lemos em 1Co 10.31.
Portanto, quando nosso coração é território do senhorio de Cristo, temos condições de reorientar todas as nossas ações e vivências, incluindo a nossa atividade intelectual, de acordo com a Palavra e as verdades que ela nos revela. Além da mensagem revelada nas Escrituras, o agir do Espírito Santo em nosso coração é fundamental para colocarmos nosso projeto intelectual e acadêmico no intuito de glorificar a Deus. A esse respeito, Dulci diz:
O que o Espírito Santo faz não é depositar em nós novos conteúdos teológicos, mas sim renovar a qualidade de nossa existência, tornando-nos capazes de experimentar toda a diversidade de aspectos da realidade tendo como filtro unificador a revelação da Palavra de Deus (DULCI, 2019, p. 98).
Nesse exercício de ajustar a rota dos nossos compromissos, também evitamos os reducionismos que assolam a ciência. Quanto a isso, Goheen e Bartholomew dizem que “os acadêmicos cristãos devem trabalhar para arrancar as teorias de seu solo idólatra e replantá-las no solo do evangelho, onde podem se desenvolver de forma mais frutífera” (GOHEEN; BARTHOLOMEW, 2016, p. 239).
Muito embora permeada de desafios, o cultivo da vida intelectual (particularmente aquela exercida em ambientes acadêmicos institucionais) é uma oportunidade para que o cristão vocacionado a esse trabalho sirva e glorifique a Deus com os talentos e dons que Ele mesmo confia a cada um de nós. O testemunho fiel, a integridade acadêmica, o cuidado ético e o empenho no avanço do conhecimento nos levam a constantemente fazer um autoexame em busca de realinhar o nosso coração para que nunca percamos de vista a glória de Deus, o motivo da nossa vida e trabalho. Como habilmente colocam Goheen e Bartholomew: “viver coram Deo é viver na presença de Deus e ter consciência dessa presença, reagindo positivamente à sua Palavra, estando pronto para servi-lo” (GOHEEN; BARTHOLOMEW, 2016, p. 65).
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Referências
DULCI, Pedro. Inteligência pra quê?: como usar seu cérebro para a glória de Deus. São Paulo: Mundo Cristão, 2019. 170 p.
GOHEEN, Michael; BARTHOLOMEW, Craig. Introdução à cosmovisão cristã: vivendo na intersecção entre a visão bíblica e a contemporânea. Tradução de Marcio Loureiro Redondo. São Paulo: Vida Nova, 2016. 272 p.
KHUN, Thomas. A estrutura das revelações científicas. Tradução de Beatriz Boeira e Nelson Boeira. 13. ed. São Paulo: Perspectivas, 2017.
MURPHY, Nancey. Teologia em tempos de raciocínio científico. São Paulo: Reflexão. 272 p.