Escrito por Lethícia Dutra Leal Ferreira Fernandes, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2023
Apologética bíblica, sem neutralidade
A apologética bíblica se distingue do conceito tradicional de apologética. Enquanto a apologética clássica1 começa pela razão e propõe a execução de um discurso teórico e racional para convencer o outro a pensar a partir de argumentos envoltos em aparato racionalista, a apologética bíblica, descrita em 1 Pedro 3.15-16, começa pela santificação de Cristo no coração, ou seja, não parte de uma base racionalista ou neutra, mas de uma base comprometida com a Palavra de Deus2.
Apologética bíblica também não é defender a Deus, que não precisa de nossa defesa. Não é um ringue de luta no qual se disputa o melhor argumento, pois a luta não é contra carne ou sangue (Ef 6.12). Tampouco é um pedido de desculpas, apesar da palavra inglesa apologize poder surgir na memória. Antes, ela é a vindicação da verdade revelada nas Escrituras diante do pensamento apóstata e de raciocínios falaciosos (2 Co 10.4-5); o fortalecimento da fé dos crentes que estão em dúvida (Jd 1.22); é dar razão aos que questionam a fé (1 Pe 3.15); e é uma forma de evangelização sólida.
Nesse sentido, Frame (2010) sintetiza a missão do apologeta, tal como um narrador da realidade, em pregar a Palavra, expô-la e aplicá-la aos ouvintes, mostrando sua beleza, verdade e racionalidade. Para o autor, a apologética verdadeiramente bíblica é a reformada, de abordagem pressuposicionalista, desenvolvida por Van Til (2010), pois trabalha a partir dos pressupostos bíblicos de que Deus existe e que a revelação bíblica é a base fundamental para o conhecimento humano. Deste modo, as evidências repousam sob a base dos pressupostos bíblicos, e não o contrário3.
Os cegos do castelo
A apologética reformada diz que a luta não ocorre no campo das evidências devido aos efeitos noéticos da Queda, que comprometem a interpretação da realidade. Desta forma, a cosmovisão desempenha um papel fundamental na apologética. O incrédulo não pode reconhecer a verdade pelo raciocínio, pois sua cosmovisão, ou seja, sua forma de ver, interpretar e interagir com a realidade está comprometida com seus pressupostos para a vida. Ele está enclausurado pelas idolatrias do seu coração.
Vasconcelos4 diz que, apesar da definição clássica de que cosmovisão são lentes ou óculos que usamos para interpretar a realidade, há uma limitação nessa metáfora. A primeira é que quem usa óculos tem ciência de que sua visão da realidade é afetada por eles, e a segunda é que o usuário poderia simplesmente remover ou colocar os óculos sempre que lhe fosse conveniente. Ele propõe, então, a metáfora dos olhos como mais precisa. Cosmovisão são como nossos olhos: enxergamos a realidade por eles e muitas vezes nem percebemos esse processo. Não podemos facilmente trocar nossa visão por um momento para ver como o outro enxerga a realidade, como uma troca de lentes entre indivíduos. Assim, só há um meio de se obter a visão correta da realidade: por meio da regeneração dos olhos. Esse processo de regeneração é feito pelo Espírito Santo, pois os efeitos noéticos da Queda não nos permitem ver que as idolatrias do nosso coração afetam nossa interpretação da realidade. Quando a cegueira é removida, podemos finalmente ver nosso estado de queda, ver a Verdade e clamar por redenção.
A única real possibilidade de conhecimento é santificando a Cristo no coração. Somos intérpretes deste mundo criado por Deus, porém, os fatos são pré-interpretados por Deus. Só há “conhecer” após Deus, pois dele é a fonte de todo o conhecimento e de toda a realidade (Ef 1.17). Nisto se baseia a proposta da apologética reformada, pressuposicionalista, de que o debate não se assente nas evidências, mas no que fundamenta a sua interpretação (VAN TIL, 2010). Dessa forma, o objetivo da apologética é apresentar a interpretação correta (bíblica) do mundo de Deus pela Palavra de Deus aos cegos que estão encastelados em suas cosmovisões pagãs, crendo que a Palavra é poderosa para, por intermédio do Espírito Santo, trazer discernimento (Hb 4.12).
O papel do apologeta
Diante disso, a questão elementar que se coloca é: Como apresentar a interpretação bíblica ao descrente? Qual é o papel do apologeta? Van Til (2010) diz que o apologeta deve inicialmente apresentar o fato da existência absoluta de Deus e em seguida a criação geral e a criação do homem à imagem de Deus. Depois, a abrangência de Deus, sua imanência e transcendência, seguido da queda do homem e os efeitos do pecado. Esse raciocínio não deixa espaço para a autonomia humana, que insiste em construir “visões para a realidade” segundo o sujeito, também eliminando a ideia do acaso.
Definido o conteúdo da mensagem, a questão importante é o método, a abordagem do apologeta. Primeiro, devemos entender que a sondagem de qual idolatria é embasada a cosmovisão incorreta do ouvinte é importante para saber como introduzir a narrativa bíblica como a alternativa real. Não se pode administrar o remédio sem analisar os sintomas. Ouvir mais do que falar, portanto, é fundamental.
Outro ponto quanto ao método está em 1 Pedro 3.16: com mansidão, respeito, e boa consciência. Pedro Dulci (2023) diz que a atuação do apologeta está mais para um cuidador de um indivíduo que sofre de delírios do que para um lutador de boxe. Como já explicado na introdução deste artigo, não é sobre vencer o outro no argumento, não é contra carne ou sangue (Ef 6.12), mas, sim, sobre apresentar a verdade com mansidão, amor e paciência, gentilmente pressionando as razões e os pressupostos do indivíduo contra a realidade, entendendo que ele ainda a vê distorcida, mas com esperança de que ele passe a enxergar a verdade, mediante a obra do Espírito Santo.
Essa atuação de um cuidador lembra a personagem principal do romance de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira (2020). A obra trata de uma epidemia misteriosa de cegueira súbita que instaura o caos no mundo. No enredo, assim como vários outros personagens, um médico é tomado pela cegueira e, não querendo se separar dele, sua esposa finge também estar cega e o acompanha no isolamento. Lá, em quarentena com outras pessoas cegas, ela assume o papel fundamental de cuidar do seu grupo diante de todas as mazelas e perigos que os cercavam, mas que eles não conseguiam ver. O ensaio nos lembra os horrores que a humanidade consegue produzir quando está perdida, vivendo apenas pelos seus instintos, enclausurada em sua cegueira, e da responsabilidade como apologetas de enxergar a realidade e conduzir os outros que não conseguem ver, conforme descrito em Isaías 42.6,7,16.
Os desdobramentos da prática da apologética no apologeta
John Frame trabalha o perspectivismo, ou seja, o entendimento da realidade, baseado na Trindade, com ênfases normativa, situacional e existencial. As três devem ser integradas, conjuntas. O autor aplica o triperspectivismo à função da apologética: a) como prova, apresentando uma base racional de que o Cristianismo é verdadeiro (normativa); b) como defesa, provendo respostas às objeções (situacional); c) como ofensiva, atacando as bases de pensamentos falsos e descrentes (existencial). São diferentes ênfases que se complementam e fortalecem.
Em paralelo às três funções da apologética de Frame (2010), este trabalho propõe a reflexão de três ações envolvidas na vida do cristão ao praticar a apologética bíblica: a) Testemunhar, falar a metanarrativa das Escrituras, apontando o certo e o errado, a beleza e o caos na realidade pelos pressupostos bíblicos (normativa); b) Trabalhar, se inserir na cultura como luz e sal para que suas ações impactem e testemunhem em silêncio pelo seu trabalho (situacional); c) Transformar-se pelo Espírito Santo, sendo santificado à medida em que estuda as Escrituras e em que vê as idolatrias das cosmovisões pagãs dos ouvintes na prática apologética (existencial), sendo um processo contínuo de aperfeiçoamento da própria visão. Esta visão, que já foi regenerada pelo Espírito na conversão do apologeta e que, primeiramente, o capacitou a ser testemunha (At 1.8), agora é cada dia mais apurada durante seu testemunhar, trazendo mais nitidez à visão do Reino (2 Co 3.18).
Conclusão
A apologética reformada pressuposicionalista nos lembra que não é pela força humana ou racional que os perdidos serão alcançados, mas é pelo poder do Espírito Santo. Assim, o que é esperado do apologeta é que ele santifique a Cristo no seu coração, obedeça às orientações das Escrituras no seu proceder, testemunhe tanto por palavras quanto por ações, e seja ele mesmo também transformado pelo Espírito Santo ao longo da jornada. A ação do apologeta não se justifica pelo fato de se os cegos verão ou não a Verdade, pois a Palavra de Deus será testemunhada, cumprirá seu papel e não voltará vazia: servirá para redenção ou condenação (Is 55:11). E mesmo que o cristão sofra por proferir a Verdade, não deve temer quando a diz conforme as Escrituras o orientam (1 Pe 3.14).
1 Tomás de Aquino é o nome mais famoso da apologética cristã clássica. As maiores dificuldades dessa abordagem envolvem a defesa da autonomia de raciocínio do incrédulo, relevando os efeitos da Queda nos compromissos prévios do seu coração; a proposta de um “deus provável” que permite a ocupação de outras deidades que não sejam exclusivamente o Deus absoluto, pessoal, uno e trino das Escrituras; e que não cumpre o “santificar a Cristo no coração”, pois não parte dos pressupostos cristãos, mas da razão.
2 A apologética reformada, que busca nas Escrituras suas bases, não é tão nova quanto parece. Vem desde Tertuliano, passando por Calvino, Bavinck, James Orr, Abraham Kuyper até Van Til, em quem John Frame se apoia na sua obra mencionada neste artigo.
3 Frame (2010) aponta que o sola Scriptura é imprescindível para o apologeta sujeitar qualquer argumento ou evidência extrabíblica primeiramente ao padrão supremo das Escrituras.
4 Informação verbal obtida na palestra Introdução à Apologética, do Rev. Ronaldo Vasconcelos, citada nas Referências Bibliográficas.
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Referências bibliográficas
DULCI, Pedro Lucas. Definindo a apologética e entendendo como ela nos auxilia com os incrédulos. Módulo 5: Enfrentando as tretas. 2023. 1 vídeo (29m45s). In: Tutoria Essencial. Invisible College, 2023.
FRAME, John M. Apologética para a glória de Deus. Trad. de Wadislau Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. 224 p.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 312 p.
VAN TIL, Cornelius. Apologética Cristã. Trad. de Davi Charles Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. 160 p.
VASCONCELOS, Ronaldo. Introdução à Apologética Reformada. 4ª Conferência de Apologética da Fé Reformada do Nordeste. Aldeia, Recife, 2023.