Escrito por Mikael Gustavo Rodrigues Cunha, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023
A Reforma Protestante foi um movimento religioso e social que teve um impacto profundo na história do Ocidente. Ao mesmo tempo que trouxe mudanças significativas para a Igreja e a sociedade, também tem sido frequentemente criticada por seu suposto papel na secularização da modernidade no Ocidente. Neste ensaio, discutirei a relação entre a Reforma Protestante e a secularização, explorando diferentes perspectivas filosóficas e teológicas sobre o assunto.
Charles Taylor e Brad Gregory são dois dos críticos proeminentes que atribuem à Reforma Protestante a responsabilidade pelo processo de secularização. Taylor, em Uma era secular1, argumenta que a Reforma abriu caminho para a desvinculação da religião do centro da vida social e para a emergência de uma esfera secular autônoma. Gregory, por sua vez, destaca como ela teria contribuído para a fragmentação religiosa e a perda de uma autoridade unificadora2.
No entanto, é importante considerar perspectivas alternativas como as apresentadas por Henrique Claudio de Lima Vaz em As Raízes da Modernidade, onde ele aponta, ao longo de toda a obra, que não houve um abandono completo dos temas que surgiram na Idade Média, na transição para a modernidade, contrariando, assim, alegações iluministas de um rompimento abrupto. Em vez disso, Lima Vaz argumenta que esses temas se desdobraram e evoluíram ao longo da Baixa Idade Média, influenciando e moldando o que conhecemos como modernidade. Isso significa que o nascimento da modernidade não acontece no nada, mas tem suas raízes na Baixa Idade Média do século XIII.
Kevin Vanhoozer, em Autoridade bíblica Pós-Reforma, também aponta que “alguns críticos dizem que a secularização acontece no momento em que os reformadores decidiram rejeitar a autoridade do magistério da igreja e negar a imagem sacramental e hierárquica do mundo que o acompanhava” (VANHOOZER, 2017, p. 73). Tais críticas são feitas mesmo sabendo dos precedentes medievais de tal condição, ou seja, do rompimento do monopólio de poder concentrado na igreja e centralizado em outro lugar. Tal lugar é, para os reformadores, as Sagradas Escrituras3.
Ainda para reforçar o argumento de que o processo de secularização tem raízes anteriores à Reforma, Kevin Vanhoozer se vale do que o teólogo Henri de Lubac, envolvido com o movimento católico conhecido como nouvelle théologie, reconhece, ou seja, que a secularização teve suas raízes em fontes neotomistas que, inadvertidamente, contribuíram para a confusão dos ensinamentos de Tomás de Aquino ao produzirem o conceito de natura pura.
O termo natura pura se refere a uma visão que surgia das interpretações neotomistas que separavam a natureza humana da graça divina, enfatizando a autonomia e capacidade do ser humano em alcançar a perfeição moral e a salvação através de suas próprias obras e esforços. Lubac sugere que essa ideia foi uma tentativa equivocada de isolar a natureza humana de sua relação com Deus, contribuindo indiretamente para a secularização posterior, contrariando os argumentos de Bray Gregory citado acima4.
Desse modo, para compreender adequadamente o impacto da Reforma Protestante, é necessário considerar seu objetivo central: uma renovação espiritual na vida da igreja e dos indivíduos. Martinho Lutero e outros reformadores buscavam uma reforma teológica e moral que os levasse de volta às raízes da fé cristã. Suas críticas à Igreja Católica Romana da época não eram um desejo de secularização, mas uma busca por uma experiência religiosa mais autêntica e uma compreensão bíblica da salvação.
Nesse sentido, a Reforma Protestante trouxe importantes contribuições para o pensamento teológico e filosófico. Os princípios da autoridade das Escrituras, da justificação pela fé e do sacerdócio de todos os crentes abriram espaço para uma maior autonomia individual e para a democratização da fé. Essa ênfase na responsabilidade pessoal perante Deus não necessariamente conduziu à secularização, mas, sim, a uma reconfiguração da religião e da espiritualidade.
A Reforma Protestante, por sua vez, representou uma resposta a essa situação. Ao reafirmar a importância da graça divina na salvação e ao enfatizar a centralidade da fé e da experiência pessoal, os reformadores buscaram restaurar uma compreensão mais equilibrada da relação entre Deus e a humanidade. Portanto, a Reforma não pode ser vista como a origem da secularização, mas como um movimento que buscou corrigir desvios e trazer uma renovação espiritual à Igreja, num contexto de mudanças sociais, políticas e intelectuais. Assim, embora críticos tenham atribuído à Reforma Protestante a responsabilidade pelo processo de secularização, é essencial considerar diferentes perspectivas e argumentos sobre o assunto.
Ademais, é fundamental reconhecer que a Reforma teve um impacto profundo no desenvolvimento da teologia, da filosofia e da espiritualidade no Ocidente. Seus princípios fundamentais e a busca por uma experiência religiosa mais autêntica contribuíram para uma reconfiguração da religião, mas não necessariamente para sua secularização. A Reforma Protestante foi um movimento complexo e multifacetado que deve ser compreendido em seu contexto histórico e teológico para uma análise completa e justa de seu legado.
À luz das discussões apresentadas neste ensaio, é importante reconhecer que o processo de secularização e modernidade é um fenômeno complexo, influenciado por uma miríade de fatores sociais, políticos, intelectuais e religiosos. Embora tenham sido feitas algumas conexões entre a Reforma Protestante e a secularização, é essencial evitar simplificações excessivas e atribuir todo o peso desse processo à Reforma.
A Reforma Protestante, como movimento religioso e social, certamente teve implicações significativas na história do Ocidente. Suas críticas à Igreja Católica Romana da época, sua ênfase na autoridade das Escrituras, na justificação pela fé e no sacerdócio de todos os crentes abriram caminho para mudanças teológicas e sociais profundas. No entanto, é preciso ter cautela ao relacionar diretamente a Reforma com o processo de secularização.
As perspectivas apresentadas por estudiosos como Henrique Cláudio de Lima Vaz, Kevin Vanhoozer e Henri de Lubac nos mostram que o processo de secularização já estava em andamento antes da Reforma Protestante. Influências intelectuais, movimentos filosóficos e mudanças sociais anteriores contribuíram para a emergência de uma esfera secular autônoma. Portanto, seria simplista e injusto atribuir à Reforma a responsabilidade exclusiva pelo processo de secularização.
1 Concordamos aqui com Taylor sobre suas definições de secularização, compreendendo a secularização como a “dessacralização do mundo”, porém discordamos que sua origem é oriunda da Reforma.
2 Citamos aqui o argumento do autor, que foi extraído do livro de Kevin Vanhoozer Autoridade bíblica Pós-Reforma, p. 30.
3 Outros problemas levantados em oposição aos protestantes são acerca da compreensão das Escrituras e quem detém a autoridade para interpretá-las. Para saber mais sobre isso, veja o capítulo 4 de Autoridade bíblica Pós-Reforma.
4 Idem, p. 76.
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Referências
TAYLOR, Charles. Uma era secular. Tradução: Nélio Schneider e Luzia Araújo. São Leopoldo, RS. Ed. Unisinos, 2010. 930 p.
VANHOOZER, Kevin J. Autoridade bíblica Pós-Reforma: resgatando os solas segundo a essência do cristianismo protestante puro e simples. Tradução: A. G. Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2017. 336 p.
VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia VII: Raízes da modernidade. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002. 296 p.