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A falácia do intelectualismo redentivo

Escrito por Aimeê Eduarda Vieira Borges, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2022

Segundo o dicionário on-line de língua portuguesa (2020), a filosofia é definida como o “conjunto das reflexões particulares que buscam entender a realidade, a partir da razão”, sendo isso o que se constata durante toda a história da filosofia antiga. Dos primeiros pensadores, situados em Mileto, aos sucessores de Sócrates, busca-se na racionalidade humana a compreensão da existência (PLATÃO, 2016, n.p.). Assim, ao adentrar este mundo, percebe-se uma promessa comum a quase todos os percursores deste saber, a de encontrar a verdadeira felicidade, dignidade e virtude no logos, na racionalidade e no intelectualismo (PLATÃO, 2017, p. 27). Porém, se isso é verdade, como podem eventos históricos contraporem essa promessa, deparando-se com outros resultados? 

No momento em que a ciência e a razoabilidade passaram a ser o princípio norteador da existência, elas se tornaram o motivo básico religioso do coração humano (DOOYEWEERD, 2015, p. 23), pois, de um estado questionador da realidade, elas assumiram um caráter dogmático, em que apenas aquilo que é submetido aos métodos positivistas ganha credibilidade. No entanto, ao assumir este lugar, pertencente a Deus, detentor de toda a verdade, elas foram incapazes de dar sentido à vivência humana. Parafraseando C. S. Lewis (LEWIS apud, MELO, 2016), na intenção de serem deuses salvadores da ignorância, tornaram-se demônios totalitaristas, fazendo dos seus conterrâneos meros mortais, desvalorizados, e desumanizados. Dessa forma, viabilizaram o surgimento de futuras ideologias pessimistas como o niilismo, levando a sociedade a encontrar-se em um vazio (DOOYEWEERD, 2015, p. 76). Portanto, fica claro que os filósofos não podem, pelo poder racional, redimir o homem do poço de uma vida sem sentido, confirmar e dar firmeza aos seus passos. Apenas Deus o pode fazer, como declara  o salmo de número 40.

Do mito ao logos

Diante de uma sociedade profundamente mística, os filósofos gregos dão o primeiro passo para sair do sistema homérico de pensamento e ir em busca de explicações razoáveis para a realidade. Estes estudiosos não eram ateus (DOOYEWEERD, 2015, p. 30), apenas não conseguiam enxergar as explicações dos deuses olímpicos como condizentes com sua experiência cotidiana e decidem procurar primordialmente na natureza (FRAME, 2017, p. 52) a origem de todas as coisas e, posteriormente, o ser, ou seja, a essência de tudo. Neste modo distinto de fazer perguntas, alguns dos pensadores ganham destaques, por afirmarem que quem se aproximasse do amor pela sabedoria alcançaria uma vida bem vivida (HADOT, 1999, p. 124).

Primeiramente, podemos falar de Heráclito, que concebeu a ideia de que a origem do cosmos seria o devir, o fogo, que iluminava e aquecia a vida do filósofo. Esse princípio de inteligibilidade não poderia ser entendido pelos populares, pois a opinião não era tolerada e submergia do sono daqueles que estavam longe do fogo iluminador da razão. Dessa maneira, se inicia uma segregação. De um lado, há os detentores do saber, e, do outro, aqueles que “não pensam” e assim não possuem espaço para darem suas opiniões (KENNY, 2011, p. 39), diferentemente do ponto de vista cristão de conhecimento, que se baseia na comunidade e na família, abrangendo toda a sociedade, que por meio de uma aliança, recebe um mandato divino, medita na lei sagrada e passa toda a sua experiência às futuras gerações (Deuteronômio 6. 1-2).

Em seguida, pode-se também falar das influências que os sofistas trouxeram para a forma de pensar filosófica. Por uma demanda cultural, o foco de suas investigações saíram da natureza para o ente, nascendo, assim, a subjetividade (VOEGELIN, 2009, p. 347-350) e reafirmando a confiança ilimitada na razão (ANTISERI; REALE, 2017, p. 73). No mesmo sentido, a filosofia de Sócrates cria  a tradição racionalista, em que há a ideia de que a vida que não se questiona não vale a pena ser vivida (PLATÃO, 2017, p. 20) e que a virtude vem do raciocínio, enquanto o vício vem da ignorância (ANTISERI; REALE, 2017, p. 86) Por fim, pode-se destacar o filósofo que estrutura todo o dualismo, Platão, e que propõe o viver filosófico voltado totalmente à vida intelectual e espiritual (HADOT, 1999, p. 102), dando início a uma imagem idealizada do sábio. 

Opostamente, o cristianismo apresenta outro motivo básico religioso que traz completude à vida — chamado criação, queda e redenção — em que Deus atua como o Criador de todas as coisas. Dos animais à sabedoria, tudo ele fez e viu ser bom (Gênesis 1.12).  No entanto, mediante a queda, o homem passou a ser inconfiável, pois, quando Adão e Eva comeram do fruto do conhecimento do bem e do mal, o pecado entrou em todas as instâncias da existência, corrompendo o mundo de maneira geral, fazendo com que o coração humano desejasse o mal constantemente (Romanos 3.10), trazendo injustiça sobre suas atitudes e fazendo com que seus olhos enxergassem tudo de maneira deturpada. Então Deus, em seu grande amor e misericórdia, presenteia a humanidade com a redenção por meio de Cristo Jesus, o autor e consumador da fé (Hebreus 12.2) que, ao reconciliá-la com Deus (2 Coríntios 5.18), transforma o coração de seus filhos de modo que vivam não segundo seus desejos, nem buscando a felicidade e a virtude por seus próprios meios e méritos, mas recebendo-as do seu Espírito, que gera o seu fruto (Gálatas 5.22-23) naqueles que experimentam um novo nascimento. Assim, o fim último da humanidade é a glorificação do nome de Deus, sendo essa a vida que vale a pena ser vivida, pois ela transcende a existência temporal e leva o homem a ter esperança de uma vida eterna e perfeita, em que os vícios são perdoados não pelo exercício intelectual, mas por Cristo, ao completar sua obra em seus filhos.

A cultura e a história 

A cultura “pop”, na série “House, M.D.” (2004-2012), descreve a vida de um médico diagnosticador, chamado Gregory House, que brilhantemente consegue resolver os casos mais complexos que chegam ao hospital. Este personagem é construído como uma figura puramente racionalista, que questiona os comportamentos e sentimentos de todos que o cercam, desconfiando de suas pretensões. Irreverente, mal-humorado e imoral, descumpre as ordens e procedimentos médicos tradicionais, trata seus pacientes de forma grotesca e fria, sem a intenção de formar relações interpessoais com nenhum deles. Além disso, ele acredita cegamente em seu intelecto e se frustra muito quando não encontra respostas. Sua genialidade não transformou o seu coração, pelo contrário, a confiança nela moldou seu olhar distante, apático e examinador, fazendo com que não percebesse o adoecimento de um dos membros de sua equipe que acabou suicidando-se repentinamente. Na trama, todas essas atitudes se justificam por ele ser um gênio. Essa é a sua redenção, o hospital, a sua equipe, os pacientes, todos precisam de sua presença irônica, pois seus defeitos e infrações são perdoados pelo simples fato de ele atuar fazendo diagnósticos extraordinários. No entanto, ao fim da quinta temporada (2008), durante uma crise alucinógena, advinda do seu vício em Vicodin e de abalos emocionais sucessivos, ele entra em contato com o seu vazio e percebe que sua única alternativa seria uma internação reabilitadora.

Na história da humanidade,  vários personagens com o mesmo estereótipo de House aparecem. No entanto, enquanto a cultura “pop” desenha um fim alternativo para eles, a realidade vem dissipando toda a ilusão redentiva e revela que o fim deles é serem vítimas de seus próprios sistemas de pensamentos. Um deles foi Maximilien Robespierre, o principal líder dos jacobinos na Revolução Francesa. Um jovem advogado, excelente orador, indignado com a situação miserável que seu país vivia, devido à opressão absolutista do Rei e do Clero. Influenciado pelo iluminismo, queria sair daquilo que ele considerava ser as densas trevas, em direção à luz redentiva da razão pura, que daria a seu país os ideais que tanto almejavam. No entanto, ao colocar o seu plano em ação, ele se torna tão tirano quanto a monarquia, inaugurando a chamada fase do terror na Revolução, em que qualquer pessoa que fosse contra algum aspecto deste movimento iria diretamente para a guilhotina. Sendo assim, neste processo, ao invés dos culpados pelo sofrimento populacional perderem a cabeça, foram os cidadãos que mais morreram. Tangenciando a busca pela liberdade, fraternidade e igualdade, eles acabaram alcançando um rio de sangue pelas ruas da França (BEZERRA, 2020). 

Todo esse modo de julgar tem suas raízes alicerçadas na filosofia grega, pois ao endeusar o intelecto humano, eles o usam como régua determinadora de quais pessoas seriam as boas e quais as más. Deste extremo racionalismo descrito, Robespierre desemboca em uma irracionalidade (FRAME, 2017), querendo inserir na sociedade francesa a deusa da razão e cultuá-la (WIKIPEDIA, 2021). Perante tudo isso e cansada das mortandades, a população coloca fim na fase do terror inaugurada por Robespierre ao condená-lo à guilhotina, instrumento outrora usado indiscriminadamente por ele (BEZERRA, 2020).

Entretanto, por meio da bondade divina, existem também aqueles que pela graça foram alcançados e puderam passar de uma vida inundada por vanglórias àquela que, em todas as coisas, rende louvores ao Senhor e dessa forma encontram segurança em seu caminhar. Um grande exemplo disso está relatado no livro Confissões, de Agostinho, em que ele, de grande retórico, passou a servir como bispo na cidade de Hipona. Nos relatos que faz, percebe-se  quão vazia era sua vida, centralizada nos prazeres das conquistas pessoais, como este fragmento apresenta:

De que me será útil, ó minha fonte de vida, meu Deus, que minha declamação tenha sido mais aplaudida que tantas outras feitas por colegas de classe da minha idade? Não são todas essas coisas como uma brisa passageira. (…), pois existem mais de uma maneira pelas quais os homens fazem mais sacrifícios aos anjos caídos. (AGOSTINHO, 2019, p. 28)

No final, tudo aquilo era uma corrida atrás do vento. Contudo, quando ele responde ao chamado da salvação, torna-se membro do corpo de Cristo e sua visão sobre conhecimento, intelecto e habilidades é transformada, pois ele passa a construir suas conquistas ao lado de Deus, rendendo-lhe o reconhecimento e oferecendo todos seus dons de volta para o serviço da obra do Senhor.

Que eu te ame a ti inteiramente e agarre a sua mão com todo o meu afeto; que tu me resgate de toda tentação até o fim. E assim, ó Senhor, meu rei e meu Deus, que todo ensinamento útil que obtive em minha infância, o falar, o escrever, o ler e o contar, sejam todos para Teu serviço. (AGOSTINHO, 2019, p. 27)

Conclusão

Portanto, percebe-se na investigação da história da filosofia antiga que ela reverberou suas teorias na cultura ocidental, trazendo seus pressupostos e influenciando a construção do saber em todas as épocas subsequentes de sua origem. Assim, implantou a ideia de que por meio da razão se poderia construir uma boa sociedade, com cidadãos justos e honestos. Porém, quando essa ideia é confrontada com a realidade, o cenário descrito mostra-se diferente. Ao invés dos direitos civis triunfarem e a paz reinar, a regra racional humana falha e o oposto acontece. De possíveis redentores, tornam-se acusadores implacáveis e no lugar de oferecerem sentido à existência, implantam o medo. Sendo assim, pode-se afirmar que apenas o evangelho apregoado pelos cristãos tem o poder, por meio das sagradas Escrituras e da vontade de Deus, de redimir o ser humano de suas pulsões pecadoras e torná-lo um ente melhor, que ama o seu próximo como a si mesmo. 


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Referências 

AGOSTINHO. Confissões. Tradução: Beatriz S.S. Cunha. 1. Ed. Jandira- SP. Editora Principis, 2019. 288 p.

ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, volume I. ed. 1. São Paulo- SP. Paulus Editora, 2017.  704p. 

BEZERRA, Juliana. Robespierre. In: 7 graus Ltda. Toda matéria. Rio de Janeiro- RJ, 2020. Disponível em: Robespierre – Toda Matéria (todamateria.com.br).

BÍBLIA. Língua Portuguesa. Bíblia King James 1611. BV Books. Niterói, RJ: Editora BV Films, 2017. 1120 p. 

CULTO DA RAZÃO. In: WIKIPEDIA: a enciclopédia livre. 2021. Disponível em: Culto da Razão – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org), acessado em 06/03/2022. 

DOOYEWEERD, Herman. Raízes da cultura ocidental: as opções pagã, secular e cristã. Tradução: Afonso Teixeira Filho. São Paulo- SP. Editora Cultura Cristã, 2015. 256 p. 

FILOSOFIA. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2021. Disponível em: Filosofia – Dicio, Dicionário Online de Português Acesso em: 06/03/2022. 

FRAME, John. A History of Western Philosophy and Theology. Estados Unidos. Editora P & R Publishing, 2017. 930 p. 

HADOT, Pierre. O que é a Filosofia antiga? Trad. Dion Davi Macedo. 6 ed. Ipiranga- SP. Edições Loyola, 1999. 424 p. 

HOUSE, M.D. (Temporada 5).  Direção: David Platt, Juan José Campanella, Matt Shakman. Local: Estados Unidos da América, 2008. 

KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ocidental: volume I — filosofia antiga. Tradução: Carlos Alberto Bárbaro. 2 ed. Ipiranga – SP. Edições Loyola, 2011. 395 p.

ELO, Raphael. Amor demônio. In: Raphael Melo. Reconstruindo os muros do Evangelho. Rio de Janeiro- RJ, 01/02/2016. Disponível em: Amor Demônio – Muros do Evangelho (rmevangelho.com.br)  

PLATÃO. Diálogos I — Teeteto (ou do conhecimento), Sofista (ou do ser), Protágoras (ou Sofistas). Tradução: Edson Bini. Cambuci- SP. Editora: Edipro. 2017. 320 p.

PLATÃO. Fedro. Trad. Maria Cecília Gomes dos Reis. 1. ed. Portugal: Penguin Companhia, 2016. 241 p.

VOEGELIN, Eric. Ordem e História Vol. 3 — Platão e Aristóteles. Trad. Cecília Camargo Bartalotti. 3. ed. Ipiranga- SP. Edições Loyola, 2009. 448 p.