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A falsa separação entre fé e ciência no início da Idade Moderna

Escrito por Lucas Tomazi Durand, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023


O século XVI foi marcado por muitas mudanças no mundo europeu, tanto no âmbito religioso quanto científico. A publicação da Disputa sobre o poder e eficácia das Indulgências (as 95 Teses de Lutero), em 1517, gerou uma revolução no cristianismo católico romano, ocasionando o surgimento de novos movimentos cristãos com diferentes interpretações do papel da Bíblia, do governo e da igreja. Ao mesmo tempo, a publicação de Revolução dos Corpos Celestes, em 1532, por Copérnico, foi responsável por revolucionar a ciência, abrindo espaço para todas as pesquisas posteriores que compõem a Física Clássica.

Na maioria dos livros de história, esses dois movimentos simultâneos são contrastados entre si. J. M. Roberts considera a Reforma um movimento de caráter majoritariamente religioso, enquanto caracteriza a revolução científica como um movimento “da razão pura” (ROBERTS, 2003, p. 463, 488). Já Antiseri e Reale enfatizam a Reforma (especialmente a luterana) como um movimento negativo quanto à filosofia (e, assim, à razão), enquanto a revolução científica foi uma mudança na relação entre saber científico e fé religiosa, perigosa tanto para protestantes quanto católicos (ANTISERI e REALE, 2018, p. 69, 144, 199).

Entretanto, a leitura da revolução científica como um desligamento entre fé e ciência não é correta. De fato, a relação entre saber científico e saber religioso foi mudada nesse período. Porém, o que motivou essa mudança não foi a separação entre fé e razão, mas, sim, o correto uso da fé para buscar o conhecimento a respeito do mundo. O historiador da ciência Reijer Hooykaas defende essa tese, afirmando que “à época em que surgiu a ciência moderna, a religião constituía um dos fatores mais poderosos da vida cultural. O que as pessoas pensavam de Deus influenciava a sua concepção de natureza, o que, por sua vez, influenciava os seus processos de investigação da natureza, ou seja, a sua ciência” (HOOYKAAS, 2021, p. 18).

Assim, é possível considerar que, no período analisado, a religião cristã era o fator mais importante da vida da maioria das pessoas. Enquanto a Reforma de Lutero se espalhava pela Alemanha e países próximos, novos movimentos reformistas surgiam por toda a Europa, com Zuínglio, Calvino, Thomas Cranmer e muitos outros. Além disso, a Igreja Católica lançou um forte movimento de contrarreforma, reafirmando seus princípios e validando práticas relevantes para o movimento. A fé era tão discutida no período que a alegação de que alguma área da vida e do conhecimento humano estava separada dela é claramente um erro.

Para exemplificar a forte relação entre a fé e a prática científica no início da era moderna, pode-se analisar a vida e a obra de um dos mais importantes nomes desse período: Galileu Galilei. Italiano de Pisa, Galilei foi um defensor da teoria copernicana da revolução da Terra em torno do Sol. Já em 1610 publicou um folheto com suas descobertas usando o telescópio, o Sidereus Nuncius, em que apresentava uma primeira defesa do heliocentrismo. Sua obra mais famosa, Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo, de 1632, foi a responsável por sua condenação junto ao Tribunal do Santo Ofício, por veemente suspeita de heresia.

Entretanto, diferente daquilo que é ensinado em muitas escolas, Galileu não era um “bastião da ciência, lutando contra as forças ignorantes da religião”. Pelo contrário, Galilei era um católico fervoroso, que se dedicou a estudar tanto a natureza quanto a Bíblia, visando melhor compreender o mundo em que vivia. E, como um bom cristão, defendia a inexistência de erros na Bíblia, segundo os teólogos protestantes e católicos de sua época. Em uma carta enviada ao monge beneditino Benedetto Castelli, matemático e amigo de Galilei, escreveu que

A Sagrada Escritura não pode nunca mentir ou errar, mas serem os seus decretos de absoluta e inviolável verdade. Só teria acrescentado que, se bem a Escritura não pode errar, não menos poderia às vezes errar algum dos intérpretes e expositores, de vários modos. Entre estes, um seria muitíssimo grave e frequente; quando quisesse deter-se sempre no puro significado das palavras; porque, assim, apareceriam aí não apenas diversas contradições, mas graves heresias e mesmo blasfêmias. Posto que seria necessário dar a Deus pés, mãos e olhos e não menos afecções corporais e humanas como de ira, de arrependimento, de ódio e mesmo, às vezes, de esquecimento das coisas passadas e de ignorância das futuras (GALILEI, 2009, p. 18, 19).

O que Galileu está afirmando é que tudo o que está escrito na Bíblia é verdadeiro, embora aqueles que a interpretem possam cometer erros. Para ele, muitos intérpretes evitavam erros quando reconheciam que Deus não tem mãos, pés e olhos, pois é espírito, mas os cometiam quando tomavam por literal outras passagens. Isso era o que ele pensava sobre a interpretação majoritária do Sol parando durante a batalha de Josué em defesa dos gibeonitas (Josué 10). O que a Bíblia faz nesse trecho é “acomodar-se à incapacidade do vulgo” (GALILEI, 2009, p. 19), ou seja, contar o relato de uma forma que o leitor compreenda.

O conceito de acomodação, defendido por Galileu na carta a seu discípulo, não foi desenvolvido por ele, mas apropriado. Essa teoria foi antes exposta por João Calvino, em seus comentários do livro de Gênesis, que entendia que muitas das afirmações bíblicas eram feitas do ponto de vista do leitor (PORTE JR, 2013). Tomando a passagem de Josué como exemplo (algo que Calvino não fez), entende-se que a Bíblia dizer que o Sol parou não significa que ele gira em torno da Terra; significa, antes, que um observador vê o Sol se movendo em torno da Terra e Deus usa esta perspectiva para comunicar o evento.

Vê-se que Galileu não somente defendia a ausência de erros na Bíblia, como estava a par de argumentos teológicos desenvolvidos contemporaneamente a ele. No entanto, essa não é a única expressão da fé do cientista em sua obra. Em uma carta enviada à Grã-duquesa Cristina de Lorena, Galilei expõe suas motivações para fazer ciência: compreender a obra das mãos de Deus. Para ele, “a Sagrada Escritura e a natureza [procedem] igualmente do Verbo divino, aquela como ditado do Espírito Santo e esta como executante mui obediente das ordens de Deus” (GALILEI, 2009, p. 59). 

Se a natureza é uma obra divina, estudá-la é uma forma de conhecer o Criador. Para tal, Deus deu aos homens as ferramentas apropriadas para esse estudo: não as Escrituras, mas “experiências sensíveis e demonstrações necessárias” (GALILEI, 2009, p. 59). O que Galileu está defendendo aqui é que a Bíblia não deve ser utilizada para julgar ou validar descobertas científicas, pois foi entregue pelo Verbo divino com outro propósito. O que deve, sim, validar as descobertas científicas, é a experimentação e o senso crítico.

Desta afirmação de Galileu, muitos filósofos e cientistas concluem que ele estabeleceu uma oposição entre fé e ciências, ou entre fé e razão. Entretanto, é extremamente necessário ressaltar que Galileu não tinha esse objetivo. Seu desejo não era contrapor fé e atividade científica, até porque sua fé em Deus o levava às experimentações. O que Galilei objetivava era demonstrar que as interpretações majoritárias da Bíblia não poderiam ser usadas como crivo para aprovar ou cancelar uma descoberta, pesquisa ou inovação científica.

Galileu é apenas um dos diversos nomes da revolução científica que poderiam ser mencionados como exemplo. Junto dele encontram-se os devotos e fiéis Johannes Kepler, Evangelista Torricelli e Blaise Pascal, homens que, movidos pela fé, tentaram compreender o mundo em que viviam, obra das mãos de Deus. Analisando as suas vidas e trabalhos, conclui-se que a revolução científica não contrapôs fé e ciência. Pelo contrário, os físicos e matemáticos dessa época eram motivados pela confiança em um Deus que não mente, que criou boas e verdadeiras leis que podem ser estudadas. 


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Referências Bibliográficas

ANTISERI, Dario e REALE, Giovanni. Filosofia: Idade Moderna. Vol. II. Tradução de José Bortolini. São Paulo: Editora Paulus, 2017, 1028 p.

GALILEI, Galileu. Ciência e Fé. 2 ed. Tradução de Carlos Arthur R. do Nascimento.  2 ed. São Paulo: Editora UNESP, 2009, 143 p.

HOOYKAAS, R. A Religião e desenvolvimento da Ciência Moderna. Tradução de Fernando Didimo Vieira. Brasília: Academia Monergista, 2021, 196 p.

PORTE JR., Wilson. A relação entre João Calvino e o desenvolvimento das ciências modernas. Teologia Brasileira, São Paulo, n. 21, 2013.

ROBERTS, J.M. O Livro de Ouro da História do Mundo: da Pré-História à Idade Contemporânea. Tradução de Laura Alves e Aurélio Rebello. 12 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, 818 p.