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Uma voz silenciada: a função profética da Igreja em meio as polarizações políticas

Escrito por Marlon Girardello, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020

“…‘Você é por nós, ou por nossos inimigos?’
‘Nem uma coisa nem outra’, respondeu ele.
 ‘Venho na qualidade de comandante do 
Exército do Senhor’…” 
Josué 5:13-14

INTRODUÇÃO

O coração humano é uma “fábrica de ídolos”, e quando se entra no aspecto político isso se torna mais evidente, devido a passionalidade e devoção das pessoas às ideologias. Nesse caso, inclusive, esses ídolos têm nomes: Capitalismo, Socialismo, Liberalismo, Conservadorismo, Democracia, Nacionalismo, entre outros.

Tendo isso em mente, vemos que o contexto eclesiológico pouco se difere do contexto secular, os ânimos se acirram de igual forma, algo que para aqueles que vivem diante da face de Deus é um contrassenso. Se a Igreja tem um Senhor e um Salvador, por que pessoas buscam remissão em ideologias idólatras? Onde está o corpo de Cristo, a Igreja Militante, como profeta, apontando a Lei do Senhor e chamando seu povo à obediência ao único Deus?

A SOBERANIA DAS ESFERAS

O ponto de partida para uma análise mais rica das ideologias que disputam o coração humano no que tange o aspecto político, parte de um tema que ficou mais conhecido pelos escritos de Abraham Kuyper (1837-1920), mas que remontam a Johannes Althusius (1563-1638) e até João Calvino (1509-1564)[1]. Koyzis pontua que a soberania das esferas, ou como alguns seguidores de Kuyper preferiam, a responsabilidade diferenciada, possuem três pilares vitais: “(1) a soberania derradeira pertence somente a Deus; (2) toda soberania terrena é subsidiária da soberania de Deus e (3) não há nenhum foco último (ou penúltimo) de soberania de Deus do qual toda as demais soberanias derivam”[2]. Ou seja, as esferas do Estado, família, igreja, empresas, sindicatos, clubes entre outros estão todas no mesmo patamar, nenhuma se destaca frente a outra e possuem a sua soberania dada por Deus, não há esferas intermediárias entre a família e Deus ou a Igreja e Deus. Deus é o Senhor de todas as esferas, estando todas elas postas no mesmo nível, não tendo nenhuma hierarquia entre as esferas, apenas há uma hierarquia entre a esfera e Deus, que é o Absoluto.

Quando uma esfera sobrepõe à soberania da outra, principalmente no que se refere à esfera da igreja e a esfera do Estado, temos casos com A igreja primitiva e o Império Romano (64-313 AD), Igreja e estado na Idade Média (590-1517) e mais recentemente os protestantes conhecidos como “cristãos alemães” que apoiaram firmemente o hitlerismo (1939-45). Nos contextos onde o governo e igreja se uniram, não respeitando a soberania de suas esferas de atuação, sempre houve tirania e corrupção de um povo. Jesus, em Mateus 22:21, já demonstrava a necessidade dessa separação: “Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” Na prática, quando o Igreja se alia cegamente ao Estado, ela abre mão da sua função profética, tornando-se serva do Estado, seus imperativos e suas vontades.

Como a igreja vai enfrentar um governo corrupto, ou que não visa o bem comum se ela está em conluio com o Estado? Aqui o ponto não é um “cristianismo contra a política”, ou um “cristianismo sem política”, mas é a presença fiel do cristão na política, tendo arraigado seus pressupostos cristãos, mas que fomenta a liberdade e a pluralidade das esferas de soberania. Não tolhendo e nem buscando uma uniformização da sociedade. O joio e o trigo crescem juntos, cuida-se da plantação, mas não se pode arrancar o joio sem afetar as raízes do trigo enquanto eles crescem. A colheita não é papel dos cristãos, esses tem o papel de salgar e iluminar[3]. De crescer e produzir como um trigo. Há uma falta de entendimento que a igreja e Estado são esferas separadas e exigem uma postura e uma leitura diferente na atuação. A igreja, em sua função profética, não pode estar disposta a se dobrar diante dos altares do Estado e suas ideologias.

A posição do profeta, não é de “direita” ou “esquerda”, ele é porta-voz e defensor de um governo que não é terreno, mas celestial. Em sua jornada em direção a pátria celestial colabora determinantemente com o aqui e o agora. Conforme C. Lewis afirma: “Desde que os cristãos deixaram de pensar amplamente no mundo vindouro, tornaram-se ineficazes neste mundo. Aspire ao Céu e terás a terra de “lambuja”; aspire à Terra e não terá nenhum dos dois.”[4]

A FUNÇÃO PROFÉTICA DA IGREJA

A figura do profeta não apenas deriva, mas transcende a narrativa bíblica. A Igreja em sua “encenação da doutrina”, tirando algumas exceções, ao decorrer da história se utilizou da sua presença e de sua voz para combater os abusos da sociedade e do Estado. Porém ao se dobrar às exigências de Baal, perde a autoridade de derrubar seus altares e postes.[5]

O papel do profeta era apontar os desvios do povo e os lembrar da Lei do Senhor. Quando o profeta se dobra a outro deus, quando ele já está preso ao Zeitgeist, não pode mais lembrar à todos o que Êxodo 20:3 afirma: “Não terás outros deuses além de mim”. Os profetas do Antigo Testamento denunciavam o rei, o príncipe, o sacerdote, o rico, o pobre, o opressor, o oprimido, o aparentemente justo e o flagrantemente pecador. Todos igualmente. Diagnosticavam o presente para denunciar os pecados individuais e/ou coletivos. Eles não eram uma figura que se poderia comprar ou subverter. A igreja como profeta deve entender o que Paulo escreve em Romanos 3:23: “Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus”. É impossível ao profeta abraçar uma ideologia, ou estar completamente alinhado e unido à um governo. Os profetas, por mais que os reis fossem bons e justos, não tinham eles como autoridades máximas, não tinham como função a defesa do rei, pelo contrário, sempre que necessário o confrontavam, mesmo que isso os custasse a vida, pois estavam a serviço de Deus, em busca de serem arautos de Deus sobre a terra. O profeta não buscava se adequar, se conformar, se fazer aceitável à sociedade e ao governo, ele era a voz destoante, era a voz que “clamava no deserto”[6]. Não importava se o profeta estava sendo escutado ou não, se as pessoas estavam reagindo ou não à sua profecia. Importava ao profeta agradar à Deus e não aos homens.

Assim como os profetas, a Igreja de Cristo, os cristãos, participam de uma espécie de martírio, que segundo Kevin Vanhoozer, “podemos chamar de martírio da vida – quando sofremos a dor do ostracismo social ou da zombaria por causa de nossa vida cruciforme vista como culturalmente fora de moda.”.[7]

A PRESENÇA FIEL DA IGREJA NA SOCIEDADE CONTRA AS POLARIZAÇÕES

A presença fiel da igreja então se assemelha muito ao papel do profeta, no contexto bíblico, com o objetivo não de impor ou forçar, mas de apontar os pressupostos dos corações idólatras, relembrar a Lei do Senhor e resistir ao espírito da sua época. A ideologias, em seu cerne, apresentam pontos positivos e que encontram ressonância nas Escrituras, por isso atraem corações de forma até natural, mas ao absolutizar um aspecto da realidade humana, seja ele econômico, social, lógico, histórico, entre outros, acabam se tornando um deus deste século.

Assim como qualquer pensamento teórico, o pensamento político não é neutro, nunca há total liberdade, há sempre um Senhor por trás de toda teorização[8], há motivos não falsificáveis, de caráter religioso pré-teórico influenciando as tomadas de decisão. Ao trazer Dooyeweerd para a discussão, Koyzis desmascara toda a tentativa ingênua de se fazer política sem desvelar os motivos-bases do coração. Toda discussão sobre ideologias necessita começar com algo que é central, a queda do homem. Se isso não acontece, o debate torna-se superficial e não atinge o cerne da questão, se configurando como falseado e reducionista.

Mas então como o cristão pode ter uma presença fiel, não ideologizada, na política? Koyzis vai afirmar que “uma política não ideológica não implica implantar a justiça onde ela não existe, mas sim reequilibrar a missão jural do Estado naquelas áreas onde a justiça foi pervertida, isto é, onde a injustiça se faz presente”[9]. Ou seja, qualquer distorção do exercício do mandato jural do Estado. É nisso que o cristão pode mais colaborar, nesse equilíbrio do Estado em não abraçar uma ideologia específica, mas considerar a pluralidade da sociedade. Dando voz e liberdade à todos, e sobre esta base iniciar um debate constante com as outras cosmovisões e ideologias. Se há confiança que Deus é soberano sobre tudo e que o cristianismo possui uma superioridade moral, se trava então uma batalha espiritual onde o próprio Deus é o comandante dessa jornada, utilizando os cristãos, assim como utilizou Davi, que “serviu sua própria geração” (At 13.36). Seja por meio de associações, instituições, organizações não-governamentais baseado no sacerdócio de todos os santos, buscando o melhoramento da vida comum. Exigindo das autoridades a garantia da justiça pública, principalmente àqueles que vivem à margem da sociedade.

Entretanto, não há outro contexto a não ser o eclesiológico, que possa fazer florescer as virtudes e os valores necessários para esta presença fiel, responsável, generosa e amorosa. O discipulado, a administração dos sacramentos, a pregação do Evangelho por meio dos cultos litúrgicos, é nesse contexto que os cristãos são forjados para cumprir seus papéis de pais, filhos, profissionais e cidadãos. Firmados em uma identidade profundamente cristã, conscientes do mandato de cultural de cultivar e guardar (Gn 2:15) e sendo lembrados que cada um é imagem e semelhança de Deus, tendo um papel individual e coletivo frente a política.

Se hoje temos ambientes muito polarizados, isso denota uma deficiência da Igreja de responder às perguntas do nosso tempo e preparar as pessoas, não mais para consumir igreja, mas para Ser igreja, se posicionando fielmente a Cristo e não nas próprias vontades, desejos ou deuses. Se a igreja abre mão de ser presença fiel, consequentemente abre mão de lançar luz sobre o caos e de ser a voz profética que retumba nos ouvidos idólatras.

CONCLUSÃO

Portanto, toda ideologia que ignora a queda parte de um pressuposto falso. Colocar sobre os ombros vacilantes do homens uma soberania que pertence à Deus é crer que o homem por si só pode resolver, por meio de um aspecto absolutizado, todas as complexidades inerentes às sociedades e suas dinâmicas políticas. A responsabilidade diferenciada das esferas então colabora para que não haja um totalitarismo de uma esfera sobre a outra, o que cria um mecanismo mitigador do efeito da queda. 

A Igreja necessita de discernimento do Espírito para não assumir posturas ideologizadas que a torne refém do espírito do seu tempo. Como profeta, ela lembra os homens da lei do Senhor, e vive fielmente Coram Deo para fiscalizar e combater as injustiças, e apoiar iniciativas que buscam o bem comum dentro do ponto de contato entre ela e o Estado. Não agindo como Estado ou buscando solapar a autoridade do Estado, mas buscando ser presença fiel e voz profética. 


[1] Koyzis, 2014, p. 278.

[2] Koyzis, 2014, p. 278.

[3] Mateus 5:13-14.

[4] Lewis, 2017, n.p.

[5] Juízes 6:25.

[6] Marcos 1:2.

[7] Vanhoozer, 2016, p. 448.

[8] Koyzis, 2014, p. 283.

[9] Koyzis, 2014, p. 293.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KOYZIS, David T. Visões e Ilusões Políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias contemporâneas; tradução de Lucas G. Freire – São Paulo: Vida Nova, 2014.

LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. Traduzido por Gabriele Greggersen. 1a ed. — Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.

VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel de Oliveira – São Paulo: Vida Nova, 2016.