Escrito por Fernando Lemos da Silva, estudante do Programa de Tutoria – Turma Essencial 2021
A disciplina que rege os princípios da interpretação bíblica é conhecida como Hermenêutica Bíblica. Ela é ensinada em seminários cristãos e cursos livres de teologia, que atraem um número relativamente pequeno de cristãos. O artigo a seguir expõe a importância da Hermenêutica para a leitura bíblica, e tem por tese que ela pode trazer variados benefícios ao ser ensinada também dentro das igrejas, tanto para líderes e obreiros, quanto para os crentes que não possuem cargo formal.
1. A IMPORTÂNCIA DA HERMENÊUTICA
Moisés Silva argumenta que a hermenêutica é necessária, não porque a Bíblia é um livro divino, mas porque também é um livro humano (KAISER, 2002, p. 16). Dóris Lemos cita que há, pelo menos, cinco desafios para uma correta interpretação da Bíblia: (1) a distância temporal; (2) a distância geográfica; (3) a distância cultural; (4) a distância linguística; e, por fim, (5) a diferença literária, referindo-se aos diferentes modos de escrita entre o ocidental do nosso tempo e dos tempos bíblicos. (2010, p. 20-25). Em nossas próprias conversas cotidianas, nas quais normalmente não há qualquer impacto dos desafios citados acima, percebemos, hora ou outra, problemas de comunicação ou interpretação de o que foi dito. Apesar de proporcionalmente serem poucas ocorrências no nosso dia a dia, Moisés Silva ressalta que “o potencial para uma má interpretação está sempre presente” (KAISER, 2002, p. 16). [1]
Como cristãos trinitários devemos reconhecer, obviamente, o papel indispensável do Espírito de Deus para iluminação do conteúdo das Escrituras (1Co 2.11) [2] e para a capacitação para viver as verdades do evangelho. No entanto, isto não nos furta da nossa tarefa interpretativa, como ressalta KLEIN, et. al (2017, 48):
“com exceção de circunstâncias bem raras e incomuns, o Espírito Santo não informa aos leitores o sentido da Escritura. Isto é, a ajuda do Espírito não substitui a necessidade de interpretar as passagens bíblicas de acordo com os princípios da comunicação da linguagem.”
Dada a natureza equívoca da comunicação humana, bem como a tendência de seu coração – seja o leitor leigo ou o acadêmico – em utilizar as Escrituras a seu favor e pensar que “nosso entendimento é a mesma coisa que intenção do Espírito Santo ou do autor humano” [3] (FEE, 2011, p. 25), a tarefa hermenêutica se mostra de suma importância, pois “fornece os meios de entender as Escrituras e aplicar esse sentido de forma responsável” (KLEIN, 2017, p. 49).
Demonstrada a importância da hermenêutica bíblica, a questão que fica é: a Hermenêutica, como disciplina formal, deveria se restringir a cursos acadêmicos, ou ser ativamente ensinada nas nossas igrejas?
2. HERMENÊUTICA PARA OS LÍDERES E OBREIROS
Começando pelos líderes e obreiros, pessoas que têm responsabilidade tanto de pregar a Palavra, quanto de orientar a comunidade com aulas de Escolas Bíblicas, discipulado ou atividades em grupo, há alguma necessidade de que se dediquem aos fundamentos da interpretação bíblica?
Para os pastores, pregadores ou professores de Escola Bíblica, a hermenêutica deve auxiliá-los a clarear o texto bíblico para seus ouvintes. Não há sentido em se haver uma exposição da Palavra sem preparação com os melhores fundamentos que estiverem a seu alcance: negligenciar esta atividade de estudo minucioso das Escrituras é incorrer num maior risco de levar a congregação ao erro. Por se tratar de um texto sagrado, o temor em expô-lo fielmente nunca deve ser deixado de lado, já que as consequências espirituais de ensinos erráticos podem ser desastrosas.
Kevin Vanhoozer nos fala desta importância ao se utilizar de uma metáfora para descrever que o pastor-teólogo é como um médico que diagnostica febres, heresias no corpo de Cristo, antes de causarem estragos (2015, p. 110). Ele também tem a incumbência de prescrever a doutrina correta, o remédio, orientando os discípulos de Cristo a serem conforme Ele, para o bem de sua salvação e saúde espiritual (2015, p. 114).
Quanto aos líderes de grupos, discipuladores e obreiros em geral, a tarefa do exercício da interpretação também se mostra muito importante pois, muitas vezes, estão na linha-de-frente dos problemas e dúvidas espirituais da igreja. Dependendo da configuração da congregação, nem sempre os pastores são os primeiros procurados pelos membros quando surgem dúvidas relacionadas ao texto bíblico. Líderes de pequenos grupos, por exemplo, deveriam ser capacitados em hermenêutica para corrigir e instruir os demais participantes em seus problemas e questões que, invariavelmente, irão surgir. Por serem vistos por muitos como imbuídos de autoridade formal, a firmeza espiritual e doutrinária pode ser determinante para uma boa união do corpo de Cristo, com obreiros que estão alinhados com as verdades das Escrituras, e sabem explicá-las e aplicá-las com sobriedade, destreza e humildade.
3. HERMENÊUTICA PARA OS BANCOS DA IGREJA
Para os membros da igreja local, a utilização de uma hermenêutica correta serve tanto para a garantia de sua própria saúde, quanto para um testemunho fiel para a comunidade.
Para um primeiro ponto, um episódio muito conhecido do ministério do apóstolo Paulo pode ser utilizado como exemplo. Ao chegar juntamente com Silas à cidade grega de Bereia, somos informados de que “os judeus que moravam em Bereia tinham a mente mais aberta que os de Tessalônica e ouviram a mensagem de Paulo com grande interesse. Todos os dias, examinavam as Escrituras para ver se Paulo e Silas ensinavam a verdade. Como resultado, muitos judeus creram, assim como vários gregos de alta posição, tanto homens como mulheres.” (Atos 17:11,12, NVT).
Os bereanos costumam ser retratados como estudantes atenciosos, mas o texto deixa claro que, mais do que isso, eles eram vigilantes ativos das Escrituras. Uma igreja que domina bem a Palavra de Deus serve como um batalhão em guarda contra doutrinas e ensinamentos erráticos, seja de novos líderes, pregadores convidados ou erros doutrinários que podem se infiltrar por diversas fontes nas reuniões da comunidade. Um exemplo conhecido no meio protestante é do pastor holandês Abraham Kuyper que, ao ser designado ainda jovem para pastorear sua primeira igreja, encontrou na comunidade de Beesd cristãos preparados para reconhecerem que ele não tinha suas pregações e doutrinas alinhadas com as Sagradas Escrituras. Kuyper se comprometia com os dogmas do Liberalismo, distantes das verdades bíblicas e, pelo que ele próprio relata, não havia ainda nem se convertido a Cristo Jesus. A pequena igreja rural de Beesd insistiu em reafirmar a fé cristã verdadeira, e desafiar o jovem pastor até que ele reconhecesse os verdadeiros ensinamentos vindos das Escrituras (KUYPER, 2020, pos. 520). [4]
Em segundo lugar, deve-se ter consciência que os membros da igreja são a testemunha de Cristo na sociedade, tanto quanto seus líderes. Os sermões pregados nos cultos possuem um alcance limitado em comparação ao alcance do testemunho conjunto dos fiéis, seja em seus trabalhos, seio familiar ou redes sociais.
Para que os cristãos estejam preparados a manejarem bem a Palavra, interpretarem bem as notícias e informação recebida de segunda a sábado, um bom entendimento das Escrituras e capacidade de discernimento do que falam e ouvem é fundamental.
Os exemplos seriam inúmeros, mas as principais situações em que uma boa interpretação bíblica pode nos ajudar seriam: filtro de testemunhos e declarações de cristãos influentes, defesa da fé (apologética) no cotidiano, evangelização, estudos individuais, cultos caseiros e avaliação de sermões de outras congregações.
Maus testemunhos dados por cristãos no cotidiano e redes sociais, por exemplo, podem, muitas vezes, não ser sintomas de uma vida fora dos mandamentos de Cristo, sem piedade ou zelo pela vida espiritual; mas, simplesmente, a falta de discernimento da Palavra para julgar corretamente as questões do dia a dia.
4. CONCLUSÃO
Uma das marcas da Reforma Protestante foi a preocupação de disponibilizar o texto bíblico para as massas de fiéis em suas próprias línguas sendo que, até o momento, tinham acesso limitado ao texto em latim, ou traduções mal feitas advindas da Vulgata (LINDBERG, 2017, pos. 2424). Popularizar o acesso à Bíblia está na corrente sanguínea dos protestantes, porém, é preciso também popularizar a instrução correta quanto à interpretação dos textos que se mostram à nossa frente. Este artigo mostrou os benefícios do ensino da disciplina hermenêutica dentro das nossas igrejas, não deixando-o restrito somente a seminários e cursos livres. A centralidade da igreja em tomar as rédeas deste ensino pode trazer mais alinhamento doutrinário em todos os níveis, unidade à igreja local e testemunho fiel nesta nossa sociedade constantemente atacada por ensinamentos pseudo bíblicos e humanistas.
Acreditamos que o estudo teológico é fundamental para todo cristão, e não apenas para pastores ou líderes. Afinal, a teologia nos ajuda a seguir a Cristo em todos os aspectos da nossa vida!
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[1] Grifo do autor.
[2] “Pois quem conhece os pensamentos de uma pessoa, senão o próprio espírito dela? Da mesma forma, ninguém conhece os pensamentos de Deus, senão o Espírito de Deus”. Tradução NVT.
[3] Grifo do autor.
[4] Da Introdução por Pedro Dulci.
BIBLIOGRAFIA
FEE, Gordon; STUART, Douglas. Entendes o que lês? Trad. Gordon Chown e Jonas Madureira. São Paulo: Vida Nova, 2011.
KAISER, Walter C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica. 3ª ed. Trad. Paulo C. S. dos Santos. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.
KLEIN, W. W., et. al. Introdução à Interpretação Bíblica. 1ª ed. Trad. Maurício Bezerra Santos Silva. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.
KUYPER, Abraham. O problema da pobreza: a questão social e a religião cristã. 1ª ed. Trad. Minka Lopes. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. Formato Kindle.
LEMOS, Doris. Hermenêutica: Interpretando as Escrituras Sagradas. Pindamonhangaba: IBAD, 2010.
LINDBERG, Carter. História da Reforma. 1ª ed. Trad. Elissamai Bauleo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017. Formato Kindle.
3 comments
Lucas Ferreira Rodrigues
Excelente! 👏🏼
Williams Duarte
Muito bacana! A organização com que o texto foi escrito deixou a argumentação bem mais clara. Faltou o Vanhoozer na bibliografia
Guilherme Costa
Que leitura agradável e importante! Todos os cristãos precisam ter acesso à interpretação correta da palavra. Obrigado, Fernando.