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A moda e a manifestação da sabedoria em Israel

Escrito por Ana Karolina Ortega, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2022

Introdução

Ao longo da história do cristianismo no ocidente, percebemos uma grande divisão invisível, mas muito bem delimitada em nossas mentes, sobre assuntos que pertencem “ao andar de cima” e assuntos que pertencem ao “andar debaixo” (SCHAEFFER, 2014, p. 3).  

O presente ensaio tem como objetivo desadormecer a igreja para a visão equivocada que existe no meio evangélico brasileiro em relação à moda e a indústria fashion, onde a moda, assim como as artes e o entretenimento, não tem espaço para um diálogo multidisciplinar com o cristianismo devido à falsa compreensão que se carrega da mesma. Dessa forma, torna-se impossível conciliar a moda com a verdadeira fé cristã e, consequentemente, nota-se o abandono dessa esfera, denominada como “andar debaixo”, à mercê deste século (2 Co 4:4).

Por meio da sabedoria hebraica, é possível enxergar como a indumentária tinha o seu lugar de importância no contexto do antigo Israel e vemos como as Escrituras se interessam em contar essa história, assunto para o Deus dos hebreus desde o início da sua narrativa. 

O ato de se vestir

Quando o homem e a mulher comeram do fruto do conhecimento do bem e do mal (Gn 3), a Bíblia é bem enfática em mostrar que seus olhos se abriram e “perceberam que estavam nus” (Gn 3.7). Nota-se que essa colocação é de extrema importância, pois o autor narrou aquele momento pontuando a percepção deles na diferença da sua natureza; ele se dedicou a fazê-lo mostrando que se deram conta da sua nudez e “juntaram folhas de figueira para cobrir-se” (Gn 3.7b).

A Bíblia não deixa totalmente claro o porquê o pecado introduziu a consciência da nudez, o porquê antes não havia necessidade do uso de vestimentas e agora há. Contudo, ela demonstra que no exato momento em que o pecado entrou na história da humanidade, eles perceberam uma carência e, imediatamente, quiseram cobri-la.

O fato se torna mais interessante ao reparar que no mesmo capítulo onde toda a narrativa da atitude pecaminosa do homem e da mulher acontece, Deus, ao inferir sua sentença de juízo, veste Adão e Eva antes de expulsá-los do jardim. A Bíblia nos conta que “o Senhor Deus fez roupas de pele e com elas vestiu Adão e sua mulher.” (Gn 3:21). Por que Deus os vestiu? O que Ele estava comunicando quando trocou as roupas feitas por eles mesmos de folhas de figueira por roupas de pele?

John Piper, em seu artigo intitulado A Rebelião da Nudez e o Significado das Roupas, de uma maneira muito interessante, aponta um motivo pelo qual Adão e Eva sentiram a necessidade de se cobrir:

Eles tentaram se esconder de Deus (Gênesis 3:8). A sua nudez fazia com que se sentissem descobertos e vulneráveis. Portanto, tentaram desfazer a separação entre o que eram e o que deveriam ser, ao cobrirem o que eram, e apresentando um novo exterior.1

Essa afirmativa de natureza teológica contém uma grande verdade acerca da história da indumentária expressa nas Escrituras que filósofos da moda concordariam em admitir: o ato de se vestir comunica o nosso ser. Ao vestir folhas de figueira, eles estavam dizendo que não eram mais as mesmas pessoas, algo havia mudado, e de fato mudou. O ato de se vestir não só marcou a separação do homem com Deus, mas sua nova natureza, agora subjugada pelo pecado. 

Glória e beleza na sabedoria de Israel

Em sua obra Moda: uma filosofia, Svendsen descreve o fenômeno da moda como um ponto central para a compreensão de nós mesmos em nossa situação histórica (SVENDSEN, 2010, p. 5,6). O conceito da moda abrange uma vasta gama de significados que vão de reduzi-la apenas ao uso de roupas até o consentimento de que ela não diz respeito somente às vestimentas. Como é possível notar, são extremos. Deixando de lado as divergências, partiremos do ponto de interseção em que a moda expressa e representa a identidade e a cultura dos indivíduos tanto em indumentária quanto em sua forma de representação, por meio do uso e dos sinais identitários que ela carrega. Porém, examinando as Escrituras, entende-se que a moda foi feita para exprimir muito mais. 

Quando Deus chama Moisés para construir a Tenda sagrada, é possível explorar um capítulo inteiro a respeito das vestes sacerdotais:

Traga para junto de você, do meio dos filhos de Israel, o seu irmão Arão e os filhos dele, para que me sirvam como sacerdotes, a saber, Arão e seus filhos Nadabe, Abiú, Eleazar e Itamar. Faça vestes sagradas para o seu irmão Arão, para que lhe deem glória e beleza. Diga também a todos os homens hábeis, a quem enchi do espírito de sabedoria, que façam vestes para Arão para consagrá-lo, para que me sirva no ofício sacerdotal. As vestes que farão são estas: um peitoral, uma estola sacerdotal, uma sobrepeliz, uma túnica bordada, mitra e cinto. Farão vestes sagradas para o seu irmão Arão e para os filhos dele, para que me sirvam como sacerdotes.2

“[…] lhe deem glória e beleza” é o primeiro reconhecimento vindo do próprio Deus que havia possibilidade de a vestimenta dos sacerdotes manifestar glória e beleza. Essa afirmativa nos revela que era importante para os sacerdotes ter uma estética que fosse agradável aos olhos de quem os visse e, mais, fosse agradável aos olhos do Deus de Israel. Por que o Senhor dos Exércitos se importaria com isso? 

Fica evidente aqui que a estética é importante. Ela era de extremo valor para os sacerdotes devido à sua posição diante do resto do povo. Eles não eram como os outros israelitas, eram homens separados para representar Israel diante de Deus.  Logo, a maneira de demonstrar essa diferenciação seria feita por meio das vestes, mas não qualquer delas, vestes que tivessem significado por meio da sua confecção. Igualmente fica manifesto que aquele que concede essa habilidade, esse “espírito de sabedoria” para a confecção das vestes sagradas, é Deus (Ex 28:3). Desse modo, essa destreza em construir roupas que “demonstrem glória e beleza” é um tipo de sabedoria vinda do próprio Senhor de Israel.

O artesão, artista ou artífice, que no original a Bíblia chama hakam ou sophós (LÍNDEZ, 1999, p. 39), é alguém cheio do espírito de sabedoria para exercer uma habilidade. A despeito dessa habilidade, Líndez pontua de uma forma precisa: 

O que acabamos de dizer a respeito da habilidade e destreza manual como sabedoria prática segundo a Sagrada Escritura vai ser aplicado concretamente às pessoas dotadas de habilidade e destreza, que, portanto, são e se chamam sábios ou, em termos mais concretos, artífices, artistas, artesãos. […] Assim, pois, o significado mais próximo e de fácil apreensão de sabedoria/sábio é descoberto nas atividades manuais do homem em sua tarefa diária e normal, em sua habilidade no trabalho ou ofício que desempenha.3

Para Deus, a arte de construir roupas vai muito além de simplesmente vestir pessoas, é uma habilidade dada por Ele mesmo, é um tipo de sabedoria manifesta em artistas e artesãos para trazer glória e beleza. O que podemos concluir com essa afirmativa é que se os cristãos chamados para trabalhar com essa área, por não compreenderem a moda corretamente, permanecerem afastados desse universo não aplicando seus dons, vocação e capacidade criativa concedida pelo Senhor, o mundo perde em não receber a manifestação da glória e da beleza de Deus dadas por Ele por meio da igreja (Mt 5,14-16).

No livro do profeta Isaías, vemos referência a um tipo de realidade onde o Messias trará transformação (Is 61). É interessante notar que Isaías deu prioridade em mostrar que o Messias trará mudança, inclusive nas vestimentas:

e a pôr sobre os que em Sião estão de luto uma coroa em vez de cinzas, óleo de alegria, em vez de pranto, veste de louvor, em vez de espírito angustiado; a fim de que se chamem carvalhos de justiça, plantados pelo Senhor para a sua glória.4

O capítulo conclui mais uma vez fazendo referência a essa transformação que se manifesta na forma de vestir:

Regozijar-me-ei muito no Senhor , a minha alma se alegra no meu Deus; porque me cobriu de vestes de salvação e me envolveu com o manto de justiça, como noivo que se adorna de turbante, como noiva que se enfeita com as suas jóias.5

Conclusão

Fica claro que a moda faz parte da nossa manifestação individual, cultural, religiosa e social comunicando por meio das roupas o meu lugar no mundo. Diante disso, vemos um claro equívoco da igreja ao abandonar essa área. Falta o conhecimento e entendimento bíblico de que a moda pode expressar a glória e a beleza do Criador, mas não apenas isso. Falta também uma compreensão correta a respeito da importância da moda no que se refere à sua representação pessoal em cada indivíduo. Assim, também não é possível enxergar sua importância social como indústria fashion, nos impossibilitando de participar com o Criador daquilo que Ele está fazendo nessa esfera.

A moda revela a sabedoria de Deus ao mundo por meio da habilidade manual concedida aos artesãos que confeccionam roupas. Aponta também para a capacidade criativa dada ao homem, mas, principalmente, nos lembra que somos incompletos, vazios e nus; preenchemos hoje com roupas aquilo que no Éden arrancamos com o pecado.

Aqui podemos voltar à pergunta feita no início e responder: o que Deus estava comunicando quando vestiu Adão e Eva com roupas de pele era um testemunho de que o próprio Deus, um dia, iria nos tornar aquilo que deveríamos ser. Elas testemunham o abismo que há entre o que somos e o que deveríamos ser, mas elas também nos apontam o propósito redentor de Deus, por meio das vestes novas que Ele mesmo nos dará por meio da cruz de Cristo.

As roupas que vestimos hoje são só a expressão de um reflexo falho e incompleto de quem somos, ao mesmo tempo que elas nos lembram que é possível manifestar a glória e a beleza de Deus por meio delas, enquanto aguardamos o seu retorno.


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1 PIPER, John. A Rebelião da Nudez e o Significado das Roupas. In: John Piper. Desiring God. Estados Unidos, 24 abr. 2008. Disponível em: A Rebelião da Nudez e o Significado das Roupas | Desiring God. Acesso em 6 fev. 2022.

2 Cf. Êxodo 28.1-4.

3 LÍNDEZ, José Vílchez. Sabedoria e sábios em Israel. Tradução José Benedito Alves. São Paulo: Edições Loyola, 1999, p. 39,40.

4 Cf. Isaías 61.4.

5 Cf. Isaías 61.10.


Referências Bibliográficas

BÍBLIA SAGRADA. Nova Versão Internacional. São Paulo: Thomas Nelson Brasil, 2017. 1120 p.

LÍNDEZ, José Vílchez. Sabedoria e sábios em Israel. Tradução de José Benedito Alves. São Paulo: Edições Loyola, 1999. 268 p.

PIPER, John. A Rebelião da Nudez e o Significado das Roupas. In: John Piper. Desiring God. Estados Unidos, 24 abr. 2008. Disponível em: A Rebelião da Nudez e o Significado das Roupas | Desiring God. Acesso em 6 fev. 2022.

SCHAEFFER, Francis. A morte da razão. Tradução de João Bentes. Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2014. 104 p.

SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2010. 224 p.