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A pluralidade e o testemunho do Reino

Escrito por Gabriel Maia Peter do Nascimento, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2021

Pense em uma empresa do ramo industrial. Sabemos que ali técnicos e engenheiros possuem modos de agir e dizer restritos àquele contexto. Somente os participantes desse cenário conseguem transitar nos caminhos de significados, se fazendo entender, com naturalidade. Existe uma forma, uma prática, na maneira de ser e de agir vinculada ao ambiente da empresa. O mesmo gesto lá, para os que são de fora, pode ter outro significado. Assim também somos todos nós: no decorrer de nossas vidas transitamos por contextos com características próprias e específicas. Se não nos habituarmos ao modo de vida de cada cenário, dificilmente entendemos e nos comunicamos com alguém de forma inteligível. 

Se a mesma ação comunicativa pode ter significados diferentes, em cada contexto, como o cristão, então, pode testemunhar a pessoa de Cristo? Como, em uma diversidade de significados e ações, um seguidor de Cristo é capaz de se fazer entender e comunicar o modo de vida do Reino – ou seja, transitar por vários contextos e continuar revelando a maneira de viver do Reino de Deus? Neste ensaio gostaríamos, partindo do pensamento de Ludwig Wittgenstein (1889-1951) – da sua segunda fase –, de refletir sobre o problema circunscrito pelas questões supracitadas.

1. O segundo Wittgenstein e o significado como uso

Ludwig Wittgenstein (1889-1951), na segunda fase de seu pensamento, traz contribuições valiosas sobre a relação da linguagem e significado. Para Wittgenstein, o significado de uma fala, de uma palavra, está sempre sujeito às regras de uso vinculadas a determinado contexto. Cada ambiente constitutivo da vida, seja uma igreja, uma construção, um círculo de engenheiros, possui modos de vida (uma práxis) que normatizam a maneira correta (com sentido) de se comunicar. Ou seja, para se fazer entender em cada um desses contextos, é preciso seguir as regras de uso entranhadas ali. Para Wittgenstein, esses cenários diversos operam como jogos de linguagem (assim como cada jogo de tabuleiro, por exemplo, possui regras de funcionamento que o caracterizam como tal). Desta forma, há duas opções de predicar uma ação comunicativa (seja linguística ou não) de acordo com o contexto: normal ou anormal (em concordância à regra ou em transgressão a ela). O significado, portanto, é sempre relativo ao “sistema referencial” de determinada circunstância; e seu assentimento positivo (isto é, inteligível) acontece apenas quando sujeito às regras.

As regras de uso, seguindo Wittgenstein, emergem de ações continuadas (regulares) dos seres humanos. É a forma de vida, conceito Wittgensteiniano, das pessoas, a práxis comum ali instaurada, que avaliza as normas de uso de um contexto. Os caminhos de significados inteligíveis são formados a partir da própria atividade humana. A partir do pensamento de Wittgenstein, podemos dizer, seguindo Gerson Arruda, que:

[As] regras não só definem e guiam os nossos comportamentos (linguísticos e não-linguísticos), como também determinam aquilo que faz sentido dizer no interior dos variados jogos que compõem a nossa linguagem. Ou seja, são as regras linguísticas que determinam os jogos e, por isso, são elas que, de certa forma, geram o âmbito de sentido dos mesmos. (2014, p. 20)

Diante disso, Gerson Arruda, mais uma vez nos esclarece, para pensarmos o que significa “seguir a regra”, dizendo:

O “seguir” uma dada regra é exibido nas atividades que são chamadas “seguir regra” e “transgredi-la”. É precisamente por isso que as práticas efetuadas quando uma regra é seguida são necessariamente práticas públicas, práticas exteriorizadas, isto é, atividades que podem ser (ainda que, talvez, não sejam) conhecidas e testemunháveis (2017, p. 66)

Aqui chegamos no ponto importante de nossa reflexão. Seguir a regra é agir de forma visível (testemunhando) a sujeição às normas de determinado jogo. O critério de avaliação posto por Wittgenstein é objetivo e não subjetivo. Uma pessoa segue a regra quando suas ações testemunham o fato e não se o sujeito sente (subjetivo) ter apreendido qual é a regra. Seguir a regra, portanto, é testemunhar por meio de atos concretos; sendo a regra fundamentada pela forma de vida vinculada a cada contexto, agir de acordo com ela é comunicar um modo de vida (uma práxis).

2. O paradigma de Corinto: o mesmo ato e significados distintos

Vimos, a partir do pensamento do segundo Wittgenstein, que o significado de uma ação é sempre dependente do seu uso em certo contexto. Uma ação sempre está transgredindo ou se conformando a uma regra. Um ato é testemunha da sujeição (ou não) de uma pessoa. Ou seja, um mesmo gesto, de acordo com certo cenário, pode significar (e testemunhar) coisas diferentes. Como, então, cidadãos do Reino de Deus (com uma forma de vida, regras de uso e jogos distintos) devem proceder diante da pluralidade de contextos que se apresentam na temporalidade? Como testemunhar, independente do contexto (da diversidade de jogos e regras de uso), o mesmo modo de vida do Reino?

Na primeira carta aos coríntios, encontramos uma situação paradigmática (1Co 10:23-33) para pensarmos o problema levantado pela pergunta acima. Os participantes da igreja de Corinto se encontravam em um dilema quanto a comer ou não carne sacrificada a deuses pagãos, pois era comum naquela cidade a prática de vender carnes sacrificadas em rituais. Ao serem convidados por não cristãos para uma refeição, qual deveria ser a atitude cristã? E se alguém se escandalizasse com o ato de comer a carne? São contextos distintos em que o mesmo ato ganha significados diferentes. Para o primeiro, o apóstolo Paulo diz que comer não seria errado, mas recomendado (v. 27); entretanto, para o segundo caso, deve-se evitar o ato de comer não por causa de si, mas pela consciência do outro (v. 28-29). A partir disso, temos a conclusão de Paulo, que diz:

Não vos torneis causa de tropeço nem para judeus, nem para gentios, nem tampouco para igreja de Deus, assim como também eu procuro, em tudo, ser agradável a todos, não buscando o meu próprio interesse, mas o de muitos, para que sejam salvos. Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo. (1Co. 10:32-33, 11:1)

Como testemunhas do Reino, Paulo adverte os coríntios a discernirem a atitude a ser tomada a partir da forma de vida do Reino – o próprio Cristo. O critério para agir não emergia da subjetividade (o que eu acho ou sinto), mas da vida de Cristo (a testemunha perfeita da práxis do Reino)[1]. É o forte (que entende não haver ídolos verdadeiros) servindo o fraco (que ainda não tem clareza sobre a realidade de outras divindades). A regra de uso (amor sacrificial), por assim dizer, dos habitantes do reino de Deus, deve sempre se expressar, ainda que numa única regra, na pluralidade de cenários que se apresentam. Deve-se agir visando não a si, mas a Deus, para que outros reconheçam a glória Dele. 

Respondendo, então, a pergunta levantada, podemos dizer que enquanto testemunhas de um contexto (uma práxis) específico (aquele do Reino), devemos agir de acordo com a regra de uso que comunica a forma de vida de Cristo. Diante da pluralidade de cenários que se apresentam, isso pode significar transgredir ou se sujeitar às regras de uso de cada um deles. Nos sujeitando, estamos ratificando o que já referencia a práxis correta; transgredindo, explicitamos o que está em desacordo com a vontade de Deus. Se o mundo é um grande jogo em que as regras foram transgredidas, o testemunho do Reino é a anunciação do que foi perdido. É a retomada da forma de vida que traz sentido ao mundo novamente.

Considerações finais: os dois testemunhos em meio à diversidade

Falamos dos vários contextos, da diversidade de usos, jogos e forma de vida específica que pode existir de cada um deles. Mas, da perspectiva tomada da pergunta central da seção anterior, a realidade está sob duas práxis, dos que seguem ou não a Cristo. Dos que obedecem ou se rebelam a Deus. As especificidades de cada cenário da realidade (escola, casa, rede social, etc.) devem ser vistas dentro do enredo de disputa entre dois testemunhos: da forma de vida do Reino de Deus ou do Reino da rebelião. São duas culturas, dois “sistemas” diferentes que comunicam e tem como referência objetos distintos. Se um ambiente é marcado por práticas dissonantes do modo de viver do Reino de Deus, é dever do cristão subvertê-las. Mas a regra que rege a subversão é o amor que doa. O amor que se entrega. 

Diante disso, partindo do pensamento de Wittgenstein (sobretudo da sua segunda fase), podemos ver que o significado de um ato comunicativo é sempre dependente das regras de uso constitutivas do jogo vinculado a cada contexto. A mesma ação, em cenários distintos, ganha significados diversos. Portanto, enquanto cidadãos do Reino, nosso dever não é estratificar o significado das ações em si mesmas, mas, tendo a norma do Reino dos Céus como norteadora de nossas ações, sujeitar cada ato (e seu significado) à forma de vida de Cristo. O testemunho cristão é caminhar em obediência (subvertendo às normas desse mundo) a Deus e ser um sinal visível de Sua glória e amor.

[1] Diferentemente de Wittgenstein, o seguir a regra nesse caso, não se dá cegamente, apenas efetivando-se em atos concretos. Estes são sinais visíveis de uma habilitação interna do Espírito no coração do ser humano – permitindo-o  agir corretamente e em sujeição à norma de Deus. Sobre seguir a regra cegamente, veja em:  JÚNIOR, Gerson Francisco de Arruda. 10 lições sobre Wittgenstein. Petrópolis, RJ. Editora Vozes, 2017, p. 62.


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Referências bibliográficas

JÚNIOR, Gerson Francisco de Arruda. Linguagem e jogo: aspectos fundamentais do conceito wittgensteiniano de «Sprachspiele». Perspectiva Filosófica, vol. 41, n.1, 2014.

JÚNIOR, Gerson Francisco de Arruda. 10 lições sobre Wittgenstein. Petrópolis, RJ. Editora Vozes, 2017.

BÍBLIA SAGRADA. Tradução: Almeida Revista e atualizada.