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Julgamento estético: norma e ambiguidade

Escrito por Mayumi Adati Guimarães, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2021

Introdução

Quando pensamos em estética, um conceito comum do termo que é aplicado nos dias de hoje serve para indicar tudo o que é simples, belo, harmônico e proporcional. O movimento minimalista, o estilo de decoração japandi e as harmonizações faciais são exemplos de como invocamos o termo no senso comum.

Já em termos filosóficos, a estética é o campo da filosofia que se ocupa com as expressões artísticas, ou o pensamento sobre arte. O que é arte, o que é belo, o que é aceitável ou não, os tipos de expressões artísticas, o próprio artista, técnicas, entre tantos outros temas são explorados na filosofia estética.

Por meio dessa breve introdução, podemos perceber que estética é um campo difícil e capcioso. A maioria de seus conceitos, definições, ou aversões a definições se dão porque quando envolvemos o gosto ou preferência humana entramos no buraco negro de sua subjetividade. Sendo cada indivíduo dono de sua própria opinião e paladar artístico, considerando a subjetividade do artista e até o momento histórico-cultural, como julgar a arte?

O julgamento

Primeiramente, façamos algumas diferenciações. O que devemos entender por julgar a arte? Em meio à economia dos influencers, cancelamentos e até recomendação bíblica (“Não julgueis, para que não sejais julgados.”, Mateus 7:1), parece inadequado tentar oferecer qualquer julgamento de valor atualmente. Contudo, o julgamento aqui em contexto significa formar uma opinião sobre algo. O julgamento serve para tomadas de decisão, formação de conceitos, crenças, princípios, refinamento de preferências, entre tantas outras habilidades que precedem o conhecimento e formação do indivíduo. Por outro lado, o julgamento jamais deve servir para disseminação de ódio, preconceitos, discriminações e outras atitudes que depreciam o ser humano e suas expressões; pelo contrário, o julgamento deve se propor justamente a esclarecer e prevenir tais atitudes vazias de moral e compaixão.

Para encerrar a repetição da palavra julgamento, julgar ou formar opinião é diferente de justificar. Hans Rookmaaker, filósofo e professor holandês que se ocupou com os estudos da filosofia estética, preocupou-se em defender que a arte não precisa de justificativa. Em sua concepção, sendo a arte uma expressão estética que nos ajuda a entender a realidade de forma mais profunda, o artista não precisa de justificativa para suas expressões artísticas. 

Para exemplificar esse ponto, Rookmaaker usaou a seguinte ilustração em uma de suas aulas1: iImagine uma árvore,. oO que é uma árvore? Se olharmos para uma árvore podemos começar a defini-la: seu tronco, seus ramos, folhas, flores e talvez frutos. Olhando para a sua estrutura lembramos que a árvore é essencial para a produção de oxigênio, para a construção, para as comunidades indígenas, para os animais… As funções e estética da árvore são muito importantes. Mas suas funções não a definem; existem árvores que não dão frutos, que não são usadas para construção,. eEntão, essas não seriam também árvores? Ou seja, definir a árvore pelas suas funções é utilitarismo. Não há justificativa para o significado da árvore. A árvore é uma árvore. 

Da mesma maneira, a arte não precisa de justificativa para ser arte. Caso ganhe uma justificativa externa, provavelmente está servindo a outra esfera (econômica ou política são as mais usuais), além da estética. A arte não pode e não deve ser justificada por motivações externas, sob pena de se tornar propaganda, por exemplo, como nos tempos do Reich nazista e seus filmes promocionais do regime.
Resumido pelo próprio autor:

O estético ou artístico tem seu lugar e sentido próprios que não podem ser cumpridos de outra forma senão pela arte. Música, escultura, literatura, não requerem nenhuma outra justificativa a não ser o fato de serem arte; são significativas como tais, e como tais têm sua própria tarefa e seu lugar na vida humana. Uma pintura ou um romance não servem a outro fim que não seja uma pintura ou um romance. Definitivamente, não se exige que sejam proféticos, didáticos, moralistas ou o que quer que seja, a fim de serem significativos. Têm seu próprio sentido e também podem conter ou revelar valores morais ou outros, mas a verdadeira tarefa da arte em geral não é descrita por isso.2

Esse conceito é extremamente importante para nosso juízo sobre a arte, não para eliminarmos qualquer forma de arte que seja politizada ou simplesmente econômica, mas para nos munir de consciência sobre o significado da arte que optamos por consumir.

Como a arte é o elemento estético da realidade, é seguro dizer que ela forma o nosso olhar sobre a realidade. A arte tem o poder de nos fazer sentir, relembrar, viver lembranças de outros, de evocar sensações e, portanto, modelar nossos olhos em relação ao mundo. Se você se preocupa com a estética ao se olhar no espelho antes de sair de casa, por exemplo, você pode compreender como esta tem o poder de modelar a sua realidade. 

Sendo relevante formar opinião sobre a arte, como formar tal opinião?

A sentença

Herman Dooyeweerd, em sua filosofia cosmonômica, nos ajuda a entender os aspectos normativos da vida humana. Sua filosofia nos mostra a insuficiência de buscar respostas para questões humanas no próprio homem, o que aumenta seu individualismo e egocentrismo. Logo, quanto mais real e transcendental forem nossas respostas para as questões humanas, mais diversa e plural se torna nossa experiência. Aponta, ainda, a fonte externa transcendente à experiência humana, a criação e toda a revelação divina sobre o homem, como norma heteronômica que rege todas as coisas.

A música é uma expressão artística que contém sua própria normatividade, por exemplo. Intencionalmente, um músico pode fugir de um campo harmônico para criar dissonância e um sentimento de tensão ou melancolia, manipulando as notas e o ritmo proposto. Mas justamente por fugir da norma com técnica, isso nos indica que existe norma e existe técnica.

Pensando em arte de forma geral, cada modalidade possui sua técnica e parâmetros. Manipular os objetos, técnicas e essas normas conforme a criatividade do artista é enriquecer a própria arte e não eliminar seu ponto de partida. Ainda assim, existe muita dificuldade em se comunicar normas em relação à arte, pois não é uma ciência exata. Elementos subjetivos, históricos, culturais, entre outros, fazem da arte uma objetificação simbólica de certos aspectos do sentido humano. Esse símbolo, por vezes é sugerido, proposto com sutileza, e, portanto, ambíguo. 

E ser ambíguo não elimina o fator normativo do campo estético. Se não houvesse normas, não saberíamos diferenciar uma expressão artística da sinalização das faixas de trânsito. Então a estética seria confundida com outras esferas e perderia seu núcleo de significado: a arte, o belo, a realidade humana. 

Outro ponto de normatividade que chama atenção na estética é quanto aà comunicação. Arte é um tipo de comunicação. O artista, ao manipular os meios, o faz para comunicar, expressar sua mensagem. Toda comunicação tem seus parâmetros. Cada idioma tem sua forma, sua gramática e sua fonética. O visual tem o poder de comunicar além da palavra, da gramática por si, mas não foge de certos parâmetros de comunicação, sob pena de ser incompreendido. Rookmaaker esclarece: “Somente aqueles que se conformam às leis da linguagem podem comunicar-se verbalmente com os outros. Da mesma forma, artistas só podem criar arte que outros possam experimentar como arte se criam arte, ou seja, se se conformam às regras das estruturas artísticas e às normas estéticas”3.

Aqui pode-se vislumbrar que não é possível afirmar a autonomia total da arte, como sendo uma lei em si mesma. Se a arte fosse uma lei para si mesma, então somente artistas profissionais seriam capazes de compreendê-la. A arte não precisa de justificativa e possui significado em si mesma, “mas somente quando está propensa a assumir sua própria posição na vida humana e não rompe as milhares de conexões que ligam-na à realidade. De outra forma, torna-se estéril e sem sentido”4. A arte pela arte é um ídolo em si mesma e perde a oportunidade de ser uma representação, entendimento da diversificação da realidade.

Não me proponho a elencar todos os parâmetros para a formação de um juízo sobre a arte, sendo provavelmente impossível tal feito no campo estético. Contudo, refletindo sobre os pontos esclarecidos até aqui, e a partir da obra de Hans Rookmaaker, é possível dar alguns direcionamentos e jogar luz sobre o tema. 

O primeiro parâmetro já exposto é a conexão entre arte e realidade. A arte que nos ajuda a compreender, ou ilustra nossa realidade humana consegue um nível diferenciado de comunicação. E aqui não faço alusão ao estilo do realismo, mas, sim, da pluralidade da realidade humana, o que é físico ou imaterial, tocável ou intangível. 

Outro ponto a ser destacado é a beleza. Faz parte da nossa humanidade gostar do que é agradável aos olhos, do que é belo e do que embeleza nosso ambiente. Um ambiente com design equilibrado, cores harmônicas, peças decorativas torna a experiência de um paciente no hospital mais tolerável. E o significado de beleza é mais abrangente do que podemos imaginar; uma pintura de guerra, que retrata o sangue, as faces do ódio e da miséria humana pode representar o feio, mas há espaço para o feio na arte. Até o feio por ser belo, então, por ser bem construído em sua forma e conteúdo, apresentar a verdade, a realidade, a humanidade e suas expressões.

Por fim, a arte que contém um significado atinge seu objetivo de comunicação. Quanto ao significado, Rookmaaker elaborou o seguinte diagrama, ilustrado livremente aqui:

Como pode ser observado na ilustração, as expressões artísticas podem ser mais ou menos complexas em informações visuais, e conter significados mais expressivos, realistas, intensos, dependendo do contexto histórico, da cosmovisão do indivíduo, de sua cultura, religião e tantos outros fatores.

A formação da opinião em relação à obra de arte também é altamente subjetiva. Talvez você classifique a figura da mãe (principalmente se for a da sua mãe) como tendo mais significado do que a Pietà, por exemplo. Mas também, podemos encontrar alguns pontos convergentes no senso comum; para a maioria das pessoas que não são artesãs, olhar para a representação da praia de Icaraí fala mais sobre as suas experiências reais do que admirar um belo trabalho do trançado em uma renda ou mandala. Logo, pensar sobre o significado das expressões artísticas é se educar artisticamente e aprender a discernir a comunicação apresentada.

Conclusão

Formar opinião sobre arte é um exercício educativo de compreensão. Pensar na estética e no que ela representa para a vida humana nos ajuda a apreciar a beleza da realidade, bem como as expressões artísticas que a apresentam. Como o próprio Rookmaaker aconselha5, comece primeiro a enxergar e depois a trocar ideias em comunidade. Gaste tempo realmente observando a arte, seus detalhes, e então o que ela quer comunicar a você, a partir do estilo utilizado, da realidade representada, da presença ou ausência de beleza, e do significado empregado na representação. Assim, poderá ter uma ideia melhor das sugestões perante você e decidir quais sugestões deseja agregar à sua experiência.

1. Hans Rookmaaker: How to explore the meaning of art. Westminster Theological Seminary, Philadelphia, Pennsylvania. January 1976.

2. ROOKMAAKER, Hans. Filosofia e Estética. Tradução de William Campos da Cruz Cruz. 1ª Edição. Brasília, DF. Editora Monergismo, 2018. Loc. 3792 versão Kindle.

3. ROOKMAAKER, 2018, Loc 3774 na versão Kindle.

4. ROOKMAAKER, 2018, Loc 2810 na versão Kindle.

5. Hans Rookmaaker: How to explore the meaning of art. Westminster Theological Seminary, Philadelphia, Pennsylvania. January 1976.


Referências Bibliográficas

CARVALHO, Guilherme Vilela Ribeiro de. Herman Dooyeweerd, reformador da razão. In: DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental. Tradução: Tradução Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. São Paulo: Hagnos, 2010. p. 5-46.

DOOYEWEERD, Herman. No Crepúsculo do Pensamento Ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução de Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza – Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018.

​​Hans Rookmaaker: How to explore the meaning of art. Westminster Theological Seminary, Philadelphia, Pennsylvania. January 1976. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zSdYF__ZWt4 Último acesso em Outubro de 2021.

ROOKMAAKER, Hans. Filosofia e Estética. Tradução de William Campos da Cruz Cruz. 1ª Edição. Brasília, DF. Editora Monergismo, 2018.