Escrito por Polyane Nery dos Santos Roque, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2022
Introdução
A política é o trabalho pelo bem comum e a ação política não está circunscrita apenas à praça pública, como era na antiga sociedade grega. Antes, trata-se de algo ligado à forma de vida do homem, sua esperança e sua fé. A política é feita em casa, na escola, na igreja ou em outras esferas sociais em que se perpetua o trabalho do agente público. Nas palavras de James K. A. Smith,
Nossas vidas “políticas” não estão sequestradas a uma esfera particular. O político não é uma praça com os portões discerníveis. Embora, muitas vezes falemos de “praça” pública, a metáfora é antiquada e inútil. Não há praça ali. E certamente, não é o caso de que “o político” está restrito às nossas capitais, legislaturas e cabines de votação. O político não é sinônimo ou redutível ao domínio do “governo”, mesmo que haja sobreposição significativa. O político é menos um espaço e mais um modo de vida; o político é menos um reino e mais um projeto. Quando reduzimos a política através desta dupla especialização e racionalização, o que é perdido e esquecido é uma apreciação da forma como a pólis é uma comunidade formadora de solidariedade e o fato de que a participação política exige e assume exatamente tal formação — uma cidadania com hábitos e práticas para viver em comum e para um determinado fim, orientada para um telos (SMITH apud DULCI, 2018, p. 29)
Assim, a esperança do indivíduo, a finalidade para qual o dirige, molda os hábitos culturais e ritos de formação, não apenas pessoais, mas também coletivos. Agostinho de Hipona, em sua obra A cidade de Deus, descreve duas Cidades — A Cidade de Deus e a Cidade dos Homens. Ele diz que a fé operante nos corações determina a qual cidade o homem pertence, e, dessa maneira, mostra ao Ocidente o que está no núcleo da ação humana (incluindo a política): os comprometimentos últimos do coração. Ou o indivíduo servirá ao Pai do nosso Senhor Jesus Cristo, ou servirá a falsos deuses, e, se essa última hipótese acontecer, incorrerá em idolatrias.
As idolatrias são absolutizações de algum aspecto da realidade em detrimento do outro, fazendo o ser humano se agarrar com força religiosa a algum movimento, ou alguma pessoa, ou algum âmbito da realidade. Isso passa a funcionar como seu deus, dirigindo as suas escolhas, avaliando aquilo que é bom e o que é mal, fazendo e ditando as prioridades da sua agenda pública, funcionando como sua própria divindade, reivindicando para si devoção, adoração e fidelidade.
O reducionismo político está irremediavelmente atrelado à idolatrização de apenas um aspecto da realidade, gerando, assim, as ideologias. O nacionalismo, o conservadorismo, o liberalismo, o socialismo, o democratismo são claras expressões da incapacidade que várias propostas políticas e filosóficas têm de compreender o que está acontecendo na atualidade — a permanência de posturas religiosas na determinação da esfera pública (DULCI, 2018, p. 83).
A polarização política alienante que uma ideologia é capaz de produzir na mente do indivíduo é um dos maiores inimigos da vida em comunidade, do bem público. O desafio da igreja cristã é ter uma atitude fundamental de gerar discípulos de Cristo fiéis na esfera pública, restituindo ao uso comum dos seres humanos aquilo que foi idolatrado e transformado em uma ideologia totalitária (DULCI, 2018, p. 86, 89).
O presente artigo acadêmico pretende, portanto, demonstrar como a teologia bíblica cristã é uma alternativa para ultrapassar as ideologias políticas, juntamente aos reducionismos, as polarizações e os totalitarismos decorrentes das mesmas.
Desenvolvimento
As ideologias são um fenômeno moderno da idolatria, tendo em sua estrutura suas próprias teorias sobre pecado e redenção, com o pressuposto dos seus ídolos terem a capacidade de salvar o mundo de um mal real ou imaginário. Em decorrência disso, os discípulos das ideologias desejam imprimir ao complexo conjunto da realidade uma alternativa simplista de uma ordem social monolítica.
Isto posto, o filósofo Slavoj Zizek defende a ideia de ideologia como uma “consciência ingênua” e afirma não ser possível abrir mão das lentes distorcidas presentes em quaisquer óculos filosóficos, pressupondo que todas as pessoas têm uma imagem distorcida (ideológica) para entender e visualizar a realidade:
Para nós, cristãos, essa convicção é muito forte – e faz muito sentido. Uma vez que os seres humanos estão fora da aliança com Deus e que, por isso, não tem seu ponto de partida no motivo básico da revelação de Deus, a consequência inevitável é que: todo e qualquer projeto pessoal ou coletivo está fadado a uma distorção da realidade. Em outras palavras, aqueles que não têm as lentes da revelação divina para enxergar toda a realidade vão produzir, necessariamente, visões de mundo distorcidas (ideológicas e idólatras). Nada mais condizente com a Palavra de Deus. A diferença de um cristão sustentar isso e Zizek argumentar o mesmo é que nós sabemos que os indivíduos podem encontrar a saída dessa condição alienada, enquanto Zizek, e tantos outros, acreditam que essa é uma condição (ideológica) inescapável do ser humano (DULCI, 2018, p. 79).
Ao contrário do que muitos pensadores acreditam sobre existir uma secularização na contemporaneidade, de a religião ter se tornado um desencantamento ou apenas algo de foro íntimo, o que há de fato é uma sacralização. Existe na política, o foco deste artigo, uma permanência de práticas, posturas e concepções evidentemente religiosas.
Todas as vezes que uma esfera social assume dimensões totais, o resultado são totalitarismos, devido à absolutização de um aspecto em detrimento do outro, causando um reducionismo. Como resultado, ocorre uma briga entre deuses, pois, já que uma parte da vida foi divinizada, as outras se levantarão querendo seu domínio também para o controle da cultura.
As instituições sociais são como incubadoras de virtudes, elucidando o poder político da família, da igreja, da escola, das associações, das empresas. O que muitas vezes está enuviado aos olhos é a ação política não ser realizada apenas na tomada de decisão das assembléias parlamentares ou de partidos políticos. Isso é importante, sim, no entanto, tem um caráter pontual. O que realmente constitui a ideia de bem comum e florescimento humano, e ainda, de finalidade última a qual se caminha, são os hábitos formativos do dia a dia (DULCI, 2018, p. 32).
Quando os reformadores protestaram contra o monopólio da esfera eclesiástica sobre os demais aspectos da vida, eles se recusaram a uma visão de mundo dualista, e, ao invés disso, demonstraram que tudo era vivido Coram Deo, ou seja, diante de Deus. Essa maneira de enxergar a vida foi a contribuição para as democracias pluralistas do Ocidente.
Uma abordagem cristã histórica de cunho reformado que traz uma alternativa não ideológica é o princípio da soberania das esferas, demonstrando que nem a vontade dos indivíduos e nem a vontade do Estado onicompetente são supremas. A soberania das esferas retrata a sociedade de uma forma não hierárquica, tendo as autoridades de cada esfera sido delegadas por Deus. Esse princípio mostra como a sociedade é pluriforme, ou seja, é formada por uma variedade de agentes responsáveis, tanto comunais, quanto individuais, em que a legitimidade de suas atividades se fundamentam na soberania de Deus e operam nos limites normativos colocados pelo próprio Deus. Assim, é possível perceber como a teologia cristã tem uma contribuição fundamental na constituição da vida pública, indo muito além de assuntos, lugares e estereótipos entendidos como “políticos”.
Cada ideologia política pressupõe uma história básica vendo os seres humanos na busca de efetuar a própria salvação e estendê-las para ao resto do mundo. Segundo Bob Goudzwaard, a natureza religiosa dos seres humanos pode ser compreendida a partir de 3 regras bíblicas básicas: todos os homens servem a algum deus; todos são transformados na imagem desse deus; as pessoas estruturam sua sociedade à sua própria imagem. Com isso, se percebe que a adoração a ídolos traz consequências práticas para a vida em comunidade (KOYZIS, 2021, p. 35).
Considerações finais
Existe um aspecto de fé, anterior e muito mais basilar que as estruturas econômicas, racionais e sociais das políticas públicas, ocorrendo, na atualidade, discussões sobre sociedades civis politizadas ao extremo e com pouco ou nenhuma moralização. Assim, segundo Pedro Dulci,
Gastamos a maior parte de nossos esforços intelectuais e práticos acreditando que os problemas públicos são de ordem política (que uma gestão pública conseguiria trazer melhoras), entretanto, não percebemos que a maioria dos desafios a que somos submetidos é de ordem pré-política (das virtudes que movem os agentes políticos na esfera pública). Enquanto ignorarmos os desafios religiosos da esfera pública, permaneceremos superficiais em nossas análises e ações. A militância genuinamente cristã precisa ter esse ponto de partida primordial (DULCI, 2018, p. 80).
As ideologias assumem um caráter idólatra no cenário político atual, e isso significa serem a maior expressão de antipolítica, por tentarem eliminar os diferentes interesses e moldar as pessoas conforme uma ideia única. A ideologia transtorna a vivência ordinária na esfera pública e emparelha o indivíduo pela idolatria política, além de trazer uma alienante polarização, sendo um dos maiores inimigos da vida em comunidade, do bem público.
O modelo bíblico criação, queda e redenção é revelado nas idolatrias. O cristianismo tem Jesus como salvador; as ideologias, por sua vez, enxergam a salvação vinda pelo homem, e dependendo do seu viés, por meio do aumento da liberdade, da posse comum, da riqueza, da libertação de um povo por outra nação dominante, da vontade geral do povo, e assim por diante.
A política é a forma de vida que edifica e desfruta de todas as esferas da vida sem tornar nenhuma delas divina. A teologia bíblica cristã contribui para isso, apresentando a necessidade de uma presença fiel na esfera pública, com uma atitude diária de trazer de volta ao uso comum dos seres humanos aquilo que foi idolatrado. Assim, é preciso que ocorra um pluralismo político cristão, capaz de defender a fé cristã em um Deus soberano sobre todas as esferas sociais e sobre todos os indivíduos, princípio esse que trará o bem comum e o florescimento humano.
A pluralidade é um pressuposto para a política, sendo esta, justamente, a ação de fazer com que coexistam, no mesmo espaço, uma diversidade de visões de mundo, fazendo com que a atividade política seja conciliatória e forneça a condição de possibilidade para as pessoas exercerem suas crenças, mesmo, as não cristãs. Isso é um ponto do pluralismo cristão favorecendo outras religiões, mostrando que elas devem crescer (ética do joio e do trigo —- para deixar florescer crenças diferentes, porque no último dia, Deus vai julgar as pessoas com as suas crenças).
Dessa maneira, a compreensão bíblica de criação, queda e redenção da política e do lugar desta ocupada no mundo de Deus é a alternativa que levará a sociedade e os indivíduos para além dos reducionismos e das idolatrias envolvidas nas ideologias.
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Referências Bibliográficas
DULCI, Pedro. Fé cristã e ação política: a relevância pública da espiritualidade cristã. Viçosa, MG. Editora Ultimato. 2018. 204 p.
KOYZIS, David T. Visões e ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias contemporâneas. Tradução: Lucas G. Freire, Leandro Bachega. São Paulo, SP. Editora Vida Nova. 2021. 400 p.