Escrito por Gabriel Maia Peter, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2021
INTRODUÇÃO
Kevin J. Vanhoozer, em seu ensaio Missão, martírio e epistemologia da cruz, preocupado com a missão do teólogo de proclamar a Verdade em um contexto pós- moderno (que suspeita da verdade), argumenta que, mais do que proclamar a Verdade de forma propositiva, o teólogo deve testemunhar (se condicionar ao martírio) a Verdade. Isto é, o teólogo deve proclamar a Verdade propositivamente, mas a partir de uma forma de vida que, também, atesta (proclame) a Verdade. Em suas palavras:
[…] o martírio [testemunho], em última instância, é o que é exigido na defesa da declaração de verdade teológica, pois é todo o ato de fala de testemunho, não só a proposição, que finalmente transmite as declarações de verdade sobre o caminho da sabedoria. (VANHOOZER, 2016)
Ora, o que Vanhoozer propõe é uma virada de chave no labor teológico a partir do mero exercício racional (propositivo) para uma sabedoria prática. Proclamar a Verdade se faz com a própria vida, e não só com o discurso propositivo. O ser humano não é um repositório de proposições, ele é integral, com volição, desejo e razão entrelaçados. Logo, a comunicação da Verdade, também, deve ser integral – ou seja, o exercício intelectual não pode ser desvinculado da forma de vida de quem o produz. Na carta de 1Pedro, onde ele diz a igreja para estar pronta a dar razão de sua fé ao serem questionadas a este respeito, também os exorta, em vários momentos, sobre a forma de vida que eles deveriam apresentar àqueles que os perseguiam[1]. Ou seja, o esforço apologético tem seu valor quando atrelado (emergindo) de uma forma de vida coerente com a própria vocação da igreja – de uma vida sacrificial.
1. A VIRTUDE DA RELIGIÃO E UMA VIDA SACRAMENTAL
Como dissemos acima, o que Vanhoozer propõe é uma virada de uma proclamação intelectualista (reducionista) da Verdade para uma holística – ou seja, uma vida que testemunha, sendo uma “carta viva” que apresenta a Verdade enquanto forma de vida. Desta forma, ainda que partam de alguns pressupostos diferentes, lançaremos mão da noção de virtude da religião em São Tomás de Aquino para corroborar com a proposta de Vanhoozer.
Em São Tomás, temos o que é chamado de virtude da religião[2]. Esta virtude está vinculada à noção de virtude de justiça – que é aquela em que se deve prestar contas a quem é devido. Virtude de justiça pertence ao âmbito das virtudes morais – isto é, virtudes que ordenam (moderam) os apetites humanos. Como religião, em São Tomás, é o movimento do ser humano de voltar-se a Deus. Virtude da religião, então, é, a partir deste movimento do ser humano, prestar as devidas honras a Deus – ou seja, prestar culto a Deus. Como o ser humano é incapaz de dar toda honra devida a Deus – não podendo ser justo enquanto a esta exigência –, o que temos é uma relação desigual, onde ser justo não diz respeito a igualdade na relação – temos o homem como permanente devedor de Deus. O que é exigido, então, é o ato sacrificial, derramamento de sangue para cobrir a falta no homem. Desta forma, como diz Rafael Cerqueira,“ ‘O sacrifício é o lugar do reconhecimento do homem enquanto se descobre em dívida diante de Deus, tanto de seu ser, quanto do que possui’. O sacrifício se torna então o ato por excelência de justiça e de religião.”[3]
Da explicação acima, podemos apreender que, se o movimento do homem a Deus envolve culto (serviço), este último envolve sacrifício. Como podemos atestar por toda a narrativa do Antigo Testamento, sacrifícios eram feitos periodicamente. Sempre se mostrava necessário fazê-lo. Este fato atesta a incapacidade do homem de se fazer justo diante de Deus por seu esforço. A obra última, o sacrifício definitivo, foi aquele feito por Cristo (a ovelha levada ao matadouro). Somente Deus poderia apagar o saldo devedor do ser humano. Os atos sacrificiais do Antigo Testamento, ainda que continham seu valor para a expiação naquele período, também, serviam para prefigurar o próprio Cristo – o cordeiro de Deus. Ou seja, os cultos (o serviço) a Deus no templo não só cumpriam sua função enquanto expiação, mas eram uma encenação (não no sentido de enganação) que educava a imaginação, afeições do povo para a necessidade de um salvador – mais do que isso, a encenação cúltica comunicava a própria condição humana, situando-os na realidade: devedores de Deus e incapazes de quitar a dívida entre eles e Deus. Tomás de Aquino concorda com a afirmação acima pois, “ele afirma não somente que todos os sacrifícios da Antiga Lei eram ofertados em figura do sacrifício de Cristo, mas que aqueles sacrifícios não têm explicação senão a partir da realidade que representam, isto é, o verdadeiro sacrifício que é aquele de Cristo.”[4]
A partir do que foi discutido acima, podemos retomar a noção de virtude da religião para fundamentar os desdobramentos de seus atos e como isto se relaciona com o aspecto cúltico e sacrificial aqui apresentado. Segundo Tomás de Aquino, a virtude da religião se desdobra em dois tipos de atos: os interiores e os exteriores. No primeiro, tem-se a devoção e a oração, enquanto o segundo são os atos que expressam esse movimento interior do homem de sujeição e serviço a Deus – ou seja, os atos exteriores são expressões visíveis, atos concretos no mundo, que comunicam um coração sujeito, entregue, a Deus. Ora, para Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento, seguindo o pensamento de Aquino:
[…] a mente humana, para que se una a Deus, precisa ser conduzida pela mão do que é sensível, pois “o que é invisível é divisado pelo entendimento do que foi criado” (Rm 1:20). É por isso que, no culto divino é necessário utilizar algo corporal, de tal modo que, por este, como por um signo, a mente humana seja despertada para os atos espirituais, pelos quais se une a Deus. Por isso, a religião tem atos interiores, que são seus atos principais e próprios e atos exteriores, como que secundários e ordenados aos atos interiores. (NASCIMENTO, p. 7, 2008)
Ora, se expandirmos a noção de culto a Deus, não só ao ritual do templo, mas a uma vida que serve e glorifica o Seu nome, temos, então, que: uma vida que expressa, por meio de atos concretos na realidade, um coração contrito e submisso a Deus, é, também, um símbolo, um sacramento, que aponta, testemunha, comunica, a respeito de Cristo (a Verdade encarnada). Assim como o culto no Antigo Testamento prefigurava a Cristo, sacrificando um animal, o cristão também, como testemunha da Verdade, deve viver sua vida como um sacrifício – como um símbolo, comunicando a Verdade! Se o culto comunica aquilo que nos une a Deus – que é o próprio sacrifício de Cristo –, então, a vida como culto, deve fazer o mesmo: nossa forma de vida deve testemunhar, comunicar, a realidade da obra salvadora de Jesus.
2. O SABER PRÁTICO E O MARTÍRIO
A proposta de Vanhoozer, retomando sua citação, dada no início do presente ensaio, de uma proclamação que testemunha, está fundamentada no saber prático – isto é, sabedoria. Nas suas palavras, “articular a significância da ideia de verdade envolve demonstrar como as declarações de verdade estão implícitas na maneira como vivemos, em nossa prática comuns – o que pode ser denominado nossa ´competência metafísica’ (sabedoria)” (VANHOOZER, 2016, p. 430). Ou seja, a partir do que discorremos até aqui, uma vida que comunica a Cristo, que testemunha a respeito do sacrifício definitivo, é uma vida de sabedoria – que tem o saber prático discernindo, a partir da Palavra de Deus, a cada situação, o processo correto de agir (um processo que não só visa a Verdade, mas a comunique a partir de seu próprio modo de ser). Conectando o que dissemos sobre a vida que sinaliza a Cristo, a partir da noção de virtude de religião e sacrifício em Tomás de Aquino, com o saber prático, citamos Moacir Ferreira Filho que diz: “… a virtude da religião, acompanhada da caridade, da justiça legal e da prudência é uma virtude geral por comandar qualquer ação humana orientando-a para a honra e culto divino, tornando-a assim, um ato religioso” (FILHO, 2019, p. 95). Ora, a despeito das outras virtudes citadas (na qual não discorreremos por questão de espaço), podemos ver que a prudência (o saber prático, frônese), em uma via tomasiana, atrelada a virtude da religião, expande a noção de culto para todo centímetro quadrado da existência humana – tornando, assim, toda realidade um espaço sagrado [5].
Uma vida que cultua a Deus, que serve e glorifica-o, como tratamos até aqui, é uma vida que se dá como um ato de sacrifício a Deus. Essa vida sacrificial não é, em si mesma, cumpridora de justiça, capaz de prestar a honra devida a Deus – ela apenas sinaliza, aponta, manifesta a Verdade do Senhor. A vida sacrificial só é possível, porque ela está fundamentada no sacrifício primeiro, definitivo, de Cristo – este é o sacrifício que quita a dívida humana diante de Deus e torna acessível a relação divino-humana. Dito isto, retomando a discussão acima, sobre o saber prático que expande a noção de culto para toda a realidade, a noção de sacrifício deve, então, ser expandida em toda e qualquer ação humana. Nas palavras de Vanhoozer, “Essa também é uma questão de frônese: saber como, em cada situação, viver de maneira que testifica não só a sabedoria de Cristo, mas também da esperança da ressureição.” (VANHOOZER, 2016, p. 471). Ou seja, o labor filosófico de um filósofo cristão, a sua forma de escrever, metodologia, sua forma de vida, e não só o seu conteúdo propositivo, deve de alguma forma, comunicar a Verdade de Cristo. Falo de filósofos, ainda que Vanhoozer direcione suas palavras aos teólogos, porque, ainda que não profissionais, todos aqueles que seguem a Cristo, fazem teologia, inclusive o filósofo. Não escapamos dessa realidade e nosso esforço até aqui é para relembrar a noção de sacrifício cristão que muito tem se perdido na vida pública da igreja. Como Vanhoozer atesta: “… temos de reconhecer que talvez o maior motivo para resistir à declaração da verdade evangélica sejam os próprios cristãos, por causa da maneira como eles defendem essa declaração[…] As ações refutam mais alto que as palavras.” (VANHOOZER, 2016, p. 448).
Ainda sobre a importância da noção de mártir, Kevin Vanhoozer diz que:
Na tradição cristã, o testemunho é um modo de conhecer, e o termo grego para quem testifica – mártir – capta tanto o aspecto de “dar testemunho” quanto de “dar a vida” pela verdade […] o martírio, em última instância, é o que é exigido na defesa da declaração de verdade teológica, pois é todo o ato da fala de testemunho, não só a proposição, que finalmente transmite as declarações de verdade sobre o caminho de sabedoria (VANHOOZER, 2016, p. 443)
Mais uma vez: a forma de vida cristã, como um todo, é um discurso comunicativo da Verdade – e não só o discurso propositivo. A noção de vida sacrificial, alinhada à noção de sabedoria, deve nortear todo esforço de presença pública da igreja (seja em qual âmbito for, político, acadêmico etc.). Não existe apologética genuína sem que se leve em consideração o que é uma vida de culto a Deus – fundamentada no sacrifício de Cristo – e sinalizando sua Obra salvadora e reconciliadora; o mesmo pode ser dito sobre combater heresias. Vanhoozer nos diz que, “A teologia genuína não é apenas sobre a arte de raciocinar bem (racionalidade), mas sobre viver bem (sabedoria) e morrer bem (martírio)” (VANHOOZER, 2016, p. 472). Podemos estender essa verdade para todas as instâncias da vida, na medida em que todo cristão é chamado a expressar os atos internos do Espírito em seu coração de forma visível, em atos concretos na realidade, não é só a teologia que deve ser genuína, mas toda atividade humana, que emerge de uma nova vida em Cristo, exige boa racionalidade, sabedoria e martírio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: JESUS, MAIS QUE UM PARADIGMA
Com tudo o que dissemos até aqui, fica claro, então, que o chamado cristão, a sua missão, é proclamar o evangelho com toda sua vida. Uma vida sacrificial é o modo de vida que devemos viver. Nos sujeitamos uns aos outros, porque Cristo o fez por nós primeiro. Mas isso não é dizer que Cristo deixou o exemplo. É ir além. O chamado para o martírio é, na verdade, condição de existência do Cristão. Nós somos parte do corpo de Cristo, uma nova natureza, uma nova forma de pensar, foi instaurada em nós. Devemos conformar nossa vida à dele. Logo, não se trata apenas de seguir o exemplo de Jesus, é imperativo da própria ordem que se encontra nós – somos chamados a morrer pela Verdade, não atacando quem a ataca, mas testemunhando, resistindo e, se preciso for, morrendo – mártir – por Ela. A realidade, o mundo em que vivemos, é sagrada e somos chamados a viver uma vida de serviço ao Senhor – expandindo seu lugar de habitação por toda terra, manifestando sua Verdade por meio do nosso testemunho.
Desta forma, colocando São Tomás de Aquino e Kevin J. Vanhoozer em diálogo, retomamos a noção de vida sacrificial para o seio da vida cristã. Vimos que comunicar o evangelho se trata menos de um discurso propositivo e mais de uma vida que testemunha com seus atos concretos na realidade visível. Isto é, a mudança interna causada pelo Espírito, necessariamente, reverbera em atos no mundo sensível que comunicam a Verdade – discernindo os procedimentos corretos por meio da Palavra. A virtude da religião vinculada ao saber prático expande a noção de culto para a vida toda e, portanto, assim como os sacrifícios no Antigo Testamento sinalizavam a Cristo, a vida cristã deve fazer o mesmo. A proclamação do Evangelho, desta forma, é feita por uma forma de vida embebida, revestida de Cristo. Somos chamados a viver, comunicando com a própria vida, Aquele que é a perfeita imagem do Pai: Jesus.
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NOTAS
[1] Ver 1Pe 2:11 a 3:7; a palavra anastrophe, que traz a noção de modo de vida, aparece 6 vezes na carta.
[2]Sobre este assunto, ler Suma de Teologia, IIa IIae, q.81. Bem como no ensaio: a religião na suma de teologia de Tomás de Aquino. (NASCIMENTO, Carlos Arthur)
[3] CERQUEIRA, Rafael. Antropologia e teologia na noção de sacrifício de São Tomás de Aquino. p.4.
[4] CERQUEIRA, Rafael. Antropologia e teologia na noção de sacrifício de São Tomás de Aquino. p.4.
[5] Para aprofundar nesse assunto, ler: O templo e a missão da igreja, BEALE, G. K.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
VANHOOZER, Kevin J. Teologia primeira: Deus, Escritura e hermenêutica. Tradução: Regina Aranha e Rogério Portella – São Paulo, SP: Shedd Publicações, 2016.
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica IV. Tradução. Gabriel C. Galache e Fidel Garcia Rodrigues. São Paulo: Loyola, 2005.
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Compêndio de teologia. Tradução: Dom Odilão Moura, O.S.B. – Sertanópolis, PR: Calvariae Editorial, 2020.
FORNASIER, Rafael Cerqueira. Antropologia e teologia na noção de sacrifício em Santo Tomás de Aquino. Teocomunicação, Porto Alegre, v. 43, n. 2, p. 356-374, jul/dez 2013.
FILHO, Moacir Ferreira. Hábitos, virtude e justiça: Religião em São Tomás de Aquino. São Bernardo do Campo, SP: Dissertação de mestrado – Diretoria de pós graduação e pesquisa. Faculdade de Humanidades e Direito, Programa de Pós -graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, 2019.
NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro do. A religião na Suma de Teologia de São Tomás de Aquino. Projeto História, São Paulo, n. 37, p. 85-93, dez. 2008.