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Além das 95 Teses: As reações de Lutero ao contexto teológico-filosófico de sua época e sua contribuição para um retorno à centralidade do Evangelho

Escrito por Marcos Basques Leonel, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023


Quando se fala em Reforma Protestante, logo se pensa em Lutero e suas 95 teses, que teriam sido fixadas na porta do Castelo de Wittenberg. Nelas, Lutero denuncia os equívocos e abusos da igreja da qual fazia parte, propondo que suas posições e práticas fossem revistas e abandonadas à luz das Escrituras. Contudo, muitos desconhecem as 97 teses do monge agostiniano quanto à teologia escolástica de sua época, conhecidas como Disputa contra a Teologia Escolástica. Nesse breve ensaio, pretende-se levantar alguns dados históricos sobre esse fato, observar as principais ênfases de Lutero nessas teses e apresentar uma ponderação sobre as posições de Lutero e a contribuição para nós hoje. 

Talvez, a maioria dos cristãos tenha em mente que a Reforma Protestante aconteceu do dia para a noite quando Lutero, movido pela doutrina da justificação pela fé, se manifestou contra os erros da igreja. Porém, quando se olha para a história e se considera a contribuição de alguns estudiosos desse período, percebe-se que o contexto da Reforma é muito mais complexo do que se julga. Havia muitos acontecimentos teológicos, eclesiásticos, políticos, filosóficos e sociais ocorrendo. Lutero, no caso, estava envolvido em muitas questões que o conduziram ao seu posicionamento final. O grande Reformador era professor de interpretação na Universidade de Wittenberg e admirador da teologia agostiniana, da qual recebeu enorme influência. 

Lutero é conhecido por muitos como alguém que se opôs com veemência à teologia escolástica, especialmente aos ensinos de Tomás de Aquino e de Aristóteles, algo que alguns questionam. Joachim Fischer, pastor Luterano, responsável pela introdução aos textos das 97 teses de Lutero, escreveu que Lutero havia se indignado contra o cativeiro dentro do qual a escolástica havia, segundo sua visão, aprisionado a teologia e minado ensinos fundamentais quanto à justificação pela fé, por exemplo. Ao se ler as palavras de Fischer sobre Lutero, fica claro por qual razão o monge é visto como alguém indisposto a Aristóteles. Para Lutero, a teologia necessitava ser liberta do cativeiro da filosofia aristotélica que comprometia as doutrinas da fé cristã que não podiam ser reduzidas às categorias intelectuais humanas. É nesse contexto que ficou famosa a frase de Lutero sobre Aristóteles, chamando-o de um palhaço grego que enganou a igreja com sua máscara. 

Apesar dessas palavras duras, e outras que aparecem nas 97 teses, é preciso observar que uma das preocupações de Lutero, como professor de interpretação bíblica, era a de fazer com que seus alunos, e consequentemente a igreja, se voltassem para a Palavra de Deus frente ao perigo de se sujeitar o Cristianismo aos espíritos da época. Para Lutero, a fé cristã estava sendo prejudicada por estar condicionada à lógica e aos silogismos filosóficos, “impedindo-a” de fazer afirmações paradoxais. Lutero afirma, por exemplo, na tese 48: “Não obstante, não é por essa razão que a verdade da doutrina da Trindade contradiz formas silogísticas. Isso realmente se opõe aos novos dialéticos e ao cardeal”1.

Como surgiram as 97 teses de Martinho Lutero? Novamente, as afirmações de Lutero nasceram num ambiente de busca por salvaguardar a teologia de estar condicionada às filosofias de uma época, impedindo a compreensão das doutrinas provindas das Escrituras. Lutero escreveu as 97 teses para o debate de seu aluno (discípulo) Francisco Gunther, que pleiteava o título de bacharel em Estudos Bíblicos, debate este ocorrido em 4 de setembro de 1517. Nelas, de modo claro, objetivo e duro, Lutero expressou toda sua posição contrária à escolástica, especialmente acerca das posições de Gabriel Biel. 

As 97 teses de Lutero contemplam assuntos como: a) defesas acerca da teologia agostiniana e sobre os perigos de uma volta ao pelagianismo por meio do ensino da capacidade da vontade humana para realizar o bem; b) afirmação da total incapacidade humana e da justificação pela graça mediante a fé somente; c) posições contra os ensinos de Duns Scotus e Gabriel Biel sobre a capacidade humana para a virtude e o bem; d) críticas fortes às sínteses e silogismos feitos entre teologia e filosofia aristotélica2.

Apesar do pensamento mais comum ser o de que Lutero tenha rejeitado totalmente a tradição escolástica, há quem discorde. Ao falar acerca da opinião de Lutero sobre Aristóteles, o Dr. Victor Andrade3 argumenta que não concorda com essa visão sobre Lutero, citando alguns textos os quais revelam que a opinião de Lutero não era tão radical quanto alguns afirmam. Andrade cita, por exemplo, o texto da Confissão de Augsburgo, aprovada por Lutero, que enaltece a erudição de Aristóteles e utiliza termos aristotélicos.

Outra situação apresentada por Andrade é a da famosa crítica pesada do monge de 1520 acerca dos prejuízos trazidos à igreja por Aristóteles, palavras retratadas por Lutero em 1543 em seu comentário a Isaías. Lutero afirmou a excelência de Aristóteles em seus escritos sobre as virtudes da prudência e da temperança. Por fim, Andrade argumenta que Philip Melanchton, discípulo direto de Lutero, admirava grandemente Aristóteles e sua filosofia, valendo-se grandemente das categorias aristotélicas em seu pensamento. Com isso, o Dr. Victor Andrade propõe que se veja Lutero como alguém que num primeiro momento fez pesadas críticas ao escolasticismo e ao aristotelismo, mas que, ao final, soube rever algumas posições e ter uma visão mais otimista da doutrina estagirita. 

Concluindo, ao se analisar brevemente a opinião de Lutero e suas críticas ao escolasticismo medieval e à influência aristotélica na teologia, pode-se observar duas contribuições para a igreja cristã. A primeira é o alerta que Lutero faz quanto ao cuidado que os cristãos devem ter de não submeterem o Evangelho de Cristo às filosofias de sua época às custas de se comprometer doutrinas que só podem ser recebidas pela fé, ainda que desafiem a compreensão lógica. Lutero é de grande valia para libertar a teologia de ser reduzida, conformada às categorias filosóficas temporais. Sempre há o risco, no afã de responder às questões de cada tempo, de se fazer síntese mal feitas, que comprometem tanto a teologia quanto outras áreas do saber humano.

Como Lutero apontou, doutrinas como a do pecado e da justificação pela graça mediante a fé estavam comprometidas e se assemelhando ao pelagianismo. Assim, o exercício intelectual encontrará seu lugar de servir à fé que busca conhecer, como dizia Anselmo de Cantuária. Outra lição que se pode observar é a capacidade de retratação quando erros são percebidos por parte dos cristãos. Assim, Lutero é um exemplo da importância da humildade intelectual que o teólogo, o filósofo, ou o cristão, de modo geral, devem ter.  


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1 LUTERO apud TARGINO, Jadson. As 97 Teses esquecidas de Martinho Lutero contra a Teologia Escolástica. Medium. 26 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://jadsontargino.medium.com/as-97-teses-esquecidas-de-martinho-lutero-contra-a-teologia-escol%C3%A1stica-5cdcde1747f3. Acesso em 26 jul. 2023.

2 Ibid.

3 ANDRADE. Victor. Qual era a opinião de Lutero sobre Aristóteles? Instituto Areté. 6 de julho de 2020. Disponível em: https://institutoarete.org/2020/07/06/qual-era-a-opiniao-de-lutero-sobre-aristoteles/#:~:text=O%20Lutero%20de%201520&text=Nesse%20sentido%2C%20meu%20conselho%20seria,livros%2C%20deveriam%20ser%20completamente%20descartados%E2%80%A6. Acesso em 26 jul. 2023. 


Referências Bibliográficas

ANDRADE. Victor. Qual era a opinião de Lutero sobre Aristóteles? Instituto Areté. 6 de julho de 2020. Disponível em: https://institutoarete.org/2020/07/06/qual-era-a-opiniao-de-lutero-sobre-aristoteles/#:~:text=O%20Lutero%20de%201520&text=Nesse%20sentido%2C%20meu%20conselho%20seria,livros%2C%20deveriam%20ser%20completamente%20descartados%E2%80%A6. Acesso em 26 jul. 2023.

LUTERO, Martinho. Disputação acerca do Homem. Tradução de Marcos Aurélio Fernandes. In: Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.2, dez. 2017, p. 389-392. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/article/view/12615. Acesso em 26 jul. 2023.

MAIA, Renan Pires. Lutero, um discípulo de Santo Agostinho? In: AUFKLÄRUNG, João Pessoa, v.5, n.3, Set.­ Dez., 2018, p.193­20. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/arf/article/view/43719. Acesso em: 26 jul. 2023.

TARGINO, Jadson. As 97 Teses esquecidas de Martinho Lutero contra a Teologia Escolástica. Medium. 26 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://jadsontargino.medium.com/as-97-teses-esquecidas-de-martinho-lutero-contra-a-teologia-escol%C3%A1stica-5cdcde1747f3. Acesso em: 26 jul. 2023.