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Capitalismo e Progresso no Corpo de Cristo: a igreja como polo de abertura da sociedade

Escrito por Felipe Barnabé Duarte, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020

INTRODUÇÃO

Uma das mais notáveis contribuições do filósofo holandês Herman Dooyeweerd para o cenário filosófico cristão é a impossibilidade da neutralidade religiosa em qualquer filosofia. Qualquer proponente de uma escola deve aceitar que não tem uma visão privilegiada da realidade que permita uma neutralidade do pensamento teórico. A estrutura do pensamento humano possui uma fundamentação teleológica que busca seu sentido em um absoluto. Todos os aspectos da vida, então, se explicam a partir desse absoluto, o que Dooyeweerd chama de Origem. 

Seus seguidores aplicaram esse insight em diversas áreas do conhecimento. Bob Goudzwaard, um professor emérito de economia e filosofia da Universidade Livre de Amsterdã, partindo desse fundamento religioso do pensamento humano fez contribuições valiosas na área econômica. Em seu livro Capitalismo e Progresso: um diagnóstico da sociedade ocidental, Goudzwaard apresenta argumentos para propor que os problemas econômicos da sociedade ocidental não decorrem apenas de problemas nas estruturas econômicas e sociais, mas decorrem de um motivo subjacente de fé. De forma que alterando-se as estruturas sociais ou econômicas, o problema persiste. Nas palavras de Goudzwaard: “na nossa reflexão temos de penetrar num segundo nível, mais fundamental e profundo, subjacente às estruturas das sociedades – um nível mais profundo que codetermina e molda essas estruturas”[1]. Esse nível mais “profundo só pode consistir nos motivos religiosos centrais que fundamentalmente direcionam uma cultura e sua sociedade”[2]. Esse motivo religioso, que Goudzwaard chama de fé no progresso, é considerado por ele como a “base mais plausível para explicar o surgimento e o desenvolvimento do capitalismo moderno até o presente”[3]. 

Essa fé no progresso não se restringe ao pensamento econômico, ela adentra outras áreas da vida particular do homem, tais como a família e a igreja. Como a fé no progresso se manifesta no corpo de Cristo? Essa é a primeira pergunta que pretendo responder de forma simplificada neste artigo e, uma segunda pergunta que está relacionada a esta, é: Qual o papel da igreja nesta “guerra santa” entre a fé em Deus e a fé no progresso?

A FÉ NO PROGRESSO

Essa fé surge após a derrubada de barreiras que existiam nas sociedades pré modernas. Barreiras como a igreja e a providência divina são removidas e pavimentam o caminho para uma nova forma de pensamento. Nas palavras de Goudzwaard:

Nesse ponto, o caminho está sendo pavimentado para uma prática social radicalmente nova! Revisemos brevemente a história mais uma vez. A remoção da barreira da igreja e do céu liga o homem ocidental a esta terra como o palco para sua autorrealização. A derrubada da barreira da providência e do destino livrou o homem de um Deus que intervém, desse modo abrindo caminho para uma autodestinação completamente humana. E então a terceira barreira foi completamente destruída pelos filósofos iluministas, que colocaram a autodestinação racional no contexto de um futuro perfeito alcançável e da garantia de que o paraíso perdido poderia ser recuperado pelas próprias atividades humanas.[4]

Em outras palavras, o homem, ao remover Deus da história, começa a se enxergar como o construtor de seu próprio futuro. A construção do paraíso só depende do próprio homem. O problema é que essa fé no homem não persiste. Conhecedor de si e percebendo o mesmo ego enganoso no outro, o homem pós moderno perde a fé em si mesmo como construtor de um futuro melhor. Albert Camus em O Homem Revoltado[5], mostra como esse ceticismo leva a substituição do indivíduo por um ideal de humanidade expresso pelo homem em sociedade, que por sua vez acaba substituído pelo estado totalitário. Por trás de tudo isso está uma fé no desenvolvimento histórico muito parecido com a fé no progresso descrita por Goudzwaard. Em ambos os casos, o indivíduo se perde. O que importa é o futuro. A fé tanto no progresso, quanto na história, desemboca em uma fé em um processo escatológico de redenção em que o homem não tem mais participação ativa. “Porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se lhes o coração insensato”[6]. O homem assume outro Deus e outra visão de redenção e consumação.

A FÉ NO PROGRESSO E A IGREJA

A fé no progresso que Bob Goudzwaard nos apresenta, modifica a forma como o homem lida com todos os aspectos da vida. Assim como a fé no processo histórico o faz. Nesse último caso, Camus nos mostra, em um extremo, como o assassinato se torna justificado pois a vida de um homem perde seu valor em vista da humanidade deificada ou do paraíso futuro do estado totalitário. No caso do progresso podemos observar alguns pontos menos extremados em nossas próprias vidas. Por exemplo, nossa visão de sucesso é basicamente influenciada pela fé no progresso. Acreditamos que somos bem sucedidos quando temos um bom emprego que gera uma boa renda, moramos em boas casas, nossos filhos estudam em boas escolas e por aí vai. Em casos extremos, passamos por cima da moralidade e da decência para alcançar essas coisas pois tudo é justificado em busca do ideal de progresso. Se o fim é bom, os meios não importam.

Na igreja, corpo de Cristo, essas coisas se manifestam de forma semelhante. Muitas vezes, nosso ideal de igreja é baseado em quantidade de membros, tamanho do templo, beleza do prédio, localização… Nossa visão de uma igreja saudável é uma igreja que progride, como uma empresa. Queremos oferecer os melhores produtos para nossos membros. Temos orgulho de poder falar: “Lembra quando começamos naquele quartinho da casa de fulano, olha aonde chegamos”. Nossos cultos são moldados como entretenimento com o objetivo de manter os jovens interessados. Creio que seja desnecessário falar da teologia da prosperidade que é a absorção desses ideais na própria doutrina da igreja.

É importante salientar que essas coisas não são ruins por si só. Podemos buscar melhorar nosso padrão de vida, buscar melhorar nossas igrejas e nos alegrarmos quando recebemos novos membros, mas esse não é o foco da igreja. O corpo de Cristo não foi chamado para ser uma empresa bem sucedida e gerenciada que oferece os melhores produtos. Fomos chamados para ser sal e luz. Fomos chamados para apresentar o evangelho ao mundo. Continuamos acreditando que há um Deus e que Ele intervém. Continuamos crendo na providência divina. Quem dá o crescimento é Deus, quando Ele quer e da forma que Ele quer. Somos chamados para apresentar normas diferentes a sociedade e não absorvermos as normas que ela nos apresenta.

A IGREJA COMO POLO DE ABERTURA DA SOCIEDADE

Bob Goudzwaard, após todo o diagnóstico da sociedade ocidental, nos apresenta uma forma de tentarmos mudar essa norma. Essa forma é a abertura da sociedade. 

Com isso em mente podemos descrever uma sociedade fechada como aquela que combina a organização rigorosa com propósitos concretos todo-abrangentes e, portanto, de domínio total. A expressão “sociedade túnel” talvez seja ainda mais clara uma vez que evoca a imagem de uma sociedade em que tudo — pessoas, instituições, normas, comportamento — contribui para o tranquilo avanço em direção à luz no fim do túnel. Porém, o fim do túnel parece nunca estar ao nosso alcance; a luz brilha para sempre no futuro. No entanto, mantém em movimento tudo e todos que se encontram no túnel. O caráter fechado ou “achatado” dessa sociedade fica claro particularmente na racionalização funcional imposta à ordem social em cada um dos seus aspectos.[7]

Uma sociedade fechada, então, é aquela em que a realidade é reduzida a apenas um ou poucos pontos. Todo o restante da realidade é guiado por esse ponto em particular, como uma luz no fim do túnel. “Pessoas, instituições, normas, comportamento”, tudo se guia pela esperança de se chegar ao final do túnel. 

Mas, a realidade não é singular. Há uma pluralidade de aspectos. Cada um com sua norma. O aspecto econômico tem seu lugar e sua norma derivada da revelação de Deus, mas essa norma não deve ser o guia dos aspectos sociais, psicológicos ou sentimentais. Qualquer redução da realidade a um aspecto é um empobrecimento da vida. Deus criou uma realidade plural com normas específicas que são derivadas das normas superiores de amar a Deus acima de todas as coisas e amar ao próximo como a si mesmo. A proposta de Goudzwaard é que:

apenas num confronto aberto com essa luz no fim do túnel, que ao mesmo tempo em que acena sempre recua aprisionando desse modo o objetivo final, é que podemos encontrar soluções reais. Para contribuir com essa discussão, gostaria de introduzir um novo conceito, a saber, o da abertura da sociedade ou, para usar um termo comumente aceito, a luta por uma sociedade aberta. O que se quer dizer por abertura? Esse termo é intencionado para expressar uma direção da vida humana totalmente diferente daquela de uma sociedade túnel. A abertura implica a recuperação do significado e do valor da vida humana fora de sua sujeição e serviço ao progresso.[8]

O próprio autor sabe das dificuldades desse processo de abertura, e de propor normas concorrentes, nas palavras de Goudzwaard: 

Em outras palavras, numa sociedade em que o “direito à autodeterminação autônoma ilimitada na vida econômica é primário, as normas de justiça social e ética social adquirem um caráter secundário ou enviesado. Não é considerado que essas normas sejam aplicadas simultaneamente; na melhor das hipóteses elas são consideradas relevantes como uma consideração posterior.[9]

Mas, ele continua dizendo que “um processo de abertura pode ser iniciado em pequena escala. Na verdade, um pequeno começo já pode dar frutos antes que a sociedade como um todo esteja pronta para uma nova abertura”[10]. Creio que a igreja seja um excelente ponto de partida para esse processo de abertura em pequena escala. O corpo de Cristo deve ser contra formativo, devemos afirmar normas concorrentes com as normas do mundo apresentando alternativas ao fechamento da sociedade, mostrando que a pluralidade estrutural da realidade é boa e deve ser respeitada.

CONCLUSÃO

Devemos apresentar as normas que regem os outros aspectos da realidade, mostrando a idolatria da fé no progresso. Mesmo que os efeitos sejam limitados, nosso papel é ser sal e luz, os efeitos de salgar e iluminar dependem de Deus. Para finalizar, nas palavras do filósofo canadense James K. A. Smith falando do papel missional da cristandade em Aguardando o Rei:

A cristandade, portanto, é um esforço missional que se recusa a deixar que a sociedade política continue protegida do senhorio de Cristo ao mesmo tempo que reconhece a distância escatológica entre o agora e o não ainda. Do centro da igreja como sociedade política, a cristandade dá testemunho de como a sociedade deveria ser diferente, de tal modo que imagine a possibilidade de conversão – não apenas de almas, mas também do imaginário social. Essa é uma visão de testemunho e de engajamento político que proclama a importância política não apenas da “natureza” ou da “criação”, mas do evangelho como aquela revelação que verdadeiramente nos mostra como ser humanos e o que o mundo é chamado a ser na ressureição de Jesus. Portanto, a cristandade dá testemunho da especificidade do evangelho.[11]

[1] GOUDZWAARD, Bob. Capitalismo e Progresso: Um diagnóstico da sociedade ocidental. Tradução: Leonardo Ramos. Viçosa – MG: Ultimato, 2019, p. 22.

[2] Ibid.

[3] Ibid., p. 23.

[4] Ibid., p. 67.

[5] CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Tradução: Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro – RJ: Record, 2019.

[6] Romanos 1:21.

[7] GOUDZWAARD, 2019, p. 199.

[8] Ibid., p. 201.

[9] Ibid., p. 222.

[10] Ibid., p. 226.

[11] SMITH, James K. A. Aguardando o Rei: reformando a teologia pública. Tradução: A. G. Mendes. São Paulo – SP: Vida Nova, 2020, p. 186.


BIBLIOGRAFIA

CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Tradução: Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro – RJ: Record, 2019.

GOUDZWAARD, Bob. Capitalismo e Progresso: um diagnóstico da sociedade ocidental. Tradução: Leonardo Ramos. Viçosa – MG: Ultimato, 2019.

SMITH, James K. A. Aguardando o Rei: reformando a teologia pública. Tradução: A. G. Mendes. São Paulo – SP: Vida Nova, 2020.