Escrito por Raquel Borges, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023
Introdução
A história da filosofia nos mostra um interesse variável em seu objeto de pesquisa. Nos pré-socráticos, havia um desejo em descobrir o mundo e a origem das coisas, como nos mostra Tales de Mileto e seu princípio originário único, ou seja, a água1. Sócrates, por sua vez, concentrou-se em responder às questões sobre o que é o homem e qual a sua essência2, iniciando ali o caminho para os demais pensadores que o seguiriam. Muito se desenvolveu com o tempo, trazendo-nos até a contemporaneidade e seu foco: não mais a origem das coisas, mas no ser que pensa e reflete sobre essas coisas, ou seja, o homem.
Pensadores como Edmund Husserl e Martin Heidegger dedicaram-se a “chegar às coisas mesmas” e ao “ser-aí”, respectivamente. A ênfase está agora na experiência e na existência humana como ponto de partida para o ser no mundo. A consciência humana assume o início da jornada de autoconhecimento e também de conhecimento dos entes. Influenciados pelo cogito de Descartes, Husserl e Heidegger, nos seus empreendimentos filosóficos, acreditavam poder alcançar entendimento verdadeiro por meio de suas experiências, tendo a consciência como condição de possibilidade para tal. No entanto, seria essa tentativa uma utopia? É possível chegar às coisas mesmas partindo da própria consciência do ser que pensa? Esse ensaio, portanto, visa demonstrar as lacunas de pensamentos como esses, bem como apresentar um caminho mais adequado para se chegar ao entendimento verdadeiro do ser no mundo.
O pioneirismo da tarefa filosófica de Husserl e o ser-aí de Heidegger
Edmund Husserl é o primeiro personagem na árvore genealógica do movimento filosófico intitulado de fenomenologia. Resumindo seu significado, podemos dizer que é o estudo dos fenômenos, daquilo que aparece à consciência (LIMA, 2014, p. 11). Na filosofia de Husserl, a fenomenologia é “a investigação daquilo que é genuinamente possível de ser descoberto e que está potencialmente presente, mas que nem sempre é visto através de procedimentos próprios e adequados. É o encontro com as coisas mesmas” (LIMA, 2014, p. 13). Assim, o trabalho da fenomenologia é tentar, de maneira pura e objetiva, chegar ao conhecimento de tudo aquilo que se possa conhecer, a saber, o homem, o mundo e todas suas particularidades, visando imediatamente suas “objetualidades” (MERTENS, 2022, p. 52).
Para alcançar esse objetivo, Husserl propõe uma atividade de suspensão de qualquer tipo de pré-conceito em relação ao fenômeno para que este seja puramente apreendido. A suspensão fenomenológica, ou epoché, é colocada como caminho para o verdadeiro conhecimento ser obtido. O objetivo de Husserl, assim, é chegar a uma filosofia livre de qualquer interferência humana. Como disse Sanqueilo de Lima Santos:
Através do seu método fenomenológico, Husserl pretende fixar, para os problemas filosóficos herdados do idealismo alemão e, por extensão, da filosofia moderna do sujeito, o modo verdadeiramente radical e fundamental de investigar filosoficamente e de alcançar um conhecimento teórico filosófico isento de confusão e mal-entendidos (SANTOS, 2014, p. 15).
Com isso, nota-se um desejo por uma pureza extrema no que diz respeito ao conhecimento adquirido pelo homem. Para Husserl, era possível, por meio de uma consciência livre de pressupostos, chegar também à mais clara realidade das coisas. Ao colocar-se diante de um fenômeno, o intuito era retirar o máximo possível de qualquer interferência que poderia obstruir seu modo mais fundamental de ser (MERTENS, 2022, p. 52). Numa tarefa totalmente dependente da subjetividade do homem, Husserl enfatizava a necessidade da importância de considerar a própria experiência. Ele chegou a dizer em suas Meditações Cartesianas: “Em primeiro lugar, quem quiser tornar-se filósofo deverá ‘uma vez na vida’ voltar-se para si mesmo e, dentro de si, procurar inverter todas as ciências admitidas até aqui e tentar reconstruí-las” (HUSSERL apud SANTOS, 2014, p. 32). É nítida, portanto, a valorização excessiva do ser humano na tarefa de uma filosofia pura. Desenvolvendo ainda mais a fenomenologia, o discípulo mais influente de Husserl também focou seu trabalho na experiência humana como objeto de sua pesquisa. Referimo-nos a Martin Heidegger.
Seguindo os passos de seu tutor, Heidegger também se interessou por uma filosofia fenomenológica. Apreciava a fenomenologia como método, porém expandiu esse pensamento ao afirmar a necessidade de uma atitude fenomenológica, ou seja, uma “atitude de permanente atenção aos indícios que os fenômenos nos fornecem ao se manifestarem” (MERTENS, 2022, p. 53). Não apenas isso, Heidegger também propôs uma ontologia do ser. O ser-aí, para o filósofo, localiza o homem num contexto de significados historicamente consolidados (MERTENS, 2022, p. 58). É partindo do ser compreensivo que somos que podemos compreender e interpretar a significação dos entes (MERTENS, 2022, p. 64). Localizando o homem no tempo, Heidegger passa a considerar, a partir disso, a experiência como ponto de partida para o autoconhecimento.
À luz de tudo isso, percebemos, até hoje, ressonância nas contribuições de Husserl e Heidegger. Suas filosofias estão nas raízes de muitas correntes de pensamentos e é possível notar seus frutos em discursos que hiperfocam a experiência e subjetividade do ser humano como chave hermenêutica para o seu modo de viver. No entanto, essas filosofias são muito otimistas no que tange a consciência humana, colocando-a como um elemento autônomo, livre e neutro. Há uma surpreendente confiança no poder intelectual humano, colocado como autoridade suprema. Entretanto, é necessário realizarmos uma crítica transcendental e realocarmos a consciência e experiência humanas em seus devidos lugares.
O Outro como única condição de ponto de partida
Diferentemente do proposto pelas filosofias contemporâneas, a tradição cristã possui uma visão menos otimista acerca do homem e da consciência. Isso porque a noção de queda no pecado perpassa toda a vida humana e, invariavelmente, também atingiu o intelecto. Assim, qualquer empreendimento intelectual será marcado por limitações e desvios da intenção originária do Criador. A razão humana não é independente e autônoma, como muitos filósofos nos fizeram acreditar. Ela é, antes, subordinada a um Ser transcendente. Por ter criado todas as coisas, o Deus da Bíblia fornece o verdadeiro sentido e direção para tudo, inclusive o ser humano. Aqui, o filósofo cristão Herman Dooyeweerd pode nos ajudar. Em sua clássica obra No crepúsculo do pensamento ocidental, ele disse:
A razão humana não é uma substância independente; é antes um instrumento. O eu é o músico oculto que se utiliza dele. E o motivo central que rege tanto o pensamento humano quanto o próprio ego humano é de natureza central religiosa. A questão “O que é o homem? Quem é ele?” não pode ser respondida pelo próprio homem. Mas foi respondida pela Palavra-revelação que desvela a raiz religiosa e o centro da natureza humana em sua criação, queda no pecado, e redenção por Jesus Cristo (DOOYEWEERD, 2018, p. 244).
Deus, não o homem e suas experiências, é que deve ser o ponto de partida de toda e qualquer investigação sobre a realidade circundante. Uma filosofia fenomenológica desconsidera a Revelação bíblica a respeito dos fundamentos mais elementares, caindo num labirinto reducionista onde o ser é algo em si mesmo. Apenas quando reinserimos o ser humano na perspectiva cristã de criação, queda, redenção e consumação é que se torna possível apreender corretamente a própria existência e a de outros. Assim, a razão humana deve ser submetida não a uma epoché, mas às Leis estabelecidas pelo Criador a fim de o homem conhecer a si mesmo, Deus e os outros.
Ademais, um trabalho intelectual que deseje ser verdadeiramente bem-sucedido deve pressupor uma cosmovisão bíblica. Sem as verdades eternas, o homem irá apenas tatear o mundo, sem chegar a lugar algum. Como disse Dooyeweerd,
O verdadeiro conhecimento de Deus e de nós mesmos ultrapassa todo o pensamento teórico. Esse conhecimento não pode ser objeto teórico, seja de uma teologia dogmática, seja de uma filosofia cristã. Ele só pode ser adquirido pela operação da Palavra de Deus e do Espírito Santo no coração, ou seja, na raiz e centro religioso de toda a nossa existência e experiência humanas (DOOYEWEERD, 2018, p. 167).
O Deus que se fez carne e habitou entre os homens é a expressão máxima da sabedoria. Em Jesus, os mistérios do mundo, antes obscurecidos, recebem a luz divina e por meio dele é possível interpretar nossas experiências de maneira adequada. O “Deus-aí”, Verbo vivo, pleno em graça e verdade, é o único caminho para sermos de fato. O verdadeiro autoconhecimento só é possível quando se conhece a Deus, pois a Sua imagem é a nossa real essência. Essa iluminação da mente é dada por meio da ação do Espírito de Deus, fazendo o homem enxergar a realidade por uma perspectiva mais abrangente e coerente.
Considerações finais
Apesar de todos os esforços, as filosofias de Husserl e Heidegger não respondem verdadeiramente aos mais profundos questionamentos do ser humano. O grito silencioso da alma pede por uma solução que transcenda a própria experiência e existência humanas. Uma busca ensimesmada, por meio da razão, só resultará em explicações reduzidas e insuficientes. À parte da revelação bíblica, o homem vive uma utopia, enganando-se por achar que é autônomo e independente. No entanto, quando a experiência e o intelecto são submetidos às normas do Criador, a realidade torna-se verdadeiramente coesa. Somente quando inserimos a experiência humana no teodrama, a metanarrativa que abarca todas as pequenas histórias, é que realmente compreendemos o sentido do ser e dos entes.
Portanto, apesar das contribuições de Husserl e Heidegger, suas filosofias se provam incapazes de conceder uma atitude diante da vida de maneira satisfatória. São as verdades bíblicas que sustentam a alma e o intelecto, fazendo-os repousar em uma firme segurança. Como bem disse o teólogo Herman Bavinck, “a certeza existe quando o espírito encontra repouso absoluto em seu objeto de conhecimento” (BAVINCK, 2018, n.p.). É em Deus que a existência humana recebe seu verdadeiro sentido.
1 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, volume 1. Tradução de José Bortolini. Edição revista e ampliada. São Paulo: Editora Paulus, 2017, p. 29.
2 Ibid., p. 85.
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Referências
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, volume 1. Tradução de José Bortolini. Edição revista e ampliada. São Paulo, Editora Paulus, 2017. 704 p.
BAVINCK, Herman. A certeza da fé. Tradução de Fabrício Tavares de Moraes. 1ª edição. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018. 124 p.
DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: Estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução de Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. 1ª edição. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018. 276 p.
LIMA, ABM., org. Ensaios sobre fenomenologia: Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty [online]. Ilhéus, BA: Editus, 2014, 124 p. ISBN 978-85-7455-444-0. Disponível em SciELO Books.
MERTENS, Roberto S. 10 lições sobre Heidegger. 5a reimpressão. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2015. 144 p.
SANTOS, Sanqueilo L. Originalidade e precariedade do método fenomenológico husserliano. In: LIMA, ABM., org. Ensaios sobre fenomenologia: Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty [online]. Ilhéus, BA: Editus, 2014, pp. 15-50. ISBN 978-85-7455-444-0. Available from SciELO Books.