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Criação, cultura e significado

Escrito por Wladymir Soares de Brito Filho1, estudante do Loop — Programa de Formação Contínua do InC

Os discípulos de Cristo Jesus são ensinados pelo Filho do Homem a enxergar a realidade por meio das lentes das Escrituras. Quanto ao ser humano, a compreensão bíblica é de que somos criaturas feitas à imagem de Deus (Gn 1.26,27), sendo por isso dotados de atributos como personalidade, auto transcendência, inteligência, moralidade, senso gregário e ampla criatividade2.

Dentre as decorrências práticas de termos os compromissos fundamentais do coração alicerçados nas Escrituras Sagradas, podemos destacar uma filosofia do conhecimento (epistemologia) teotrópica, isto é, a compreensão de que o conhecimento é possível porque Deus se revela ativamente à sua criação3. Esta revelação do Criador se faz presente na ordem criada do universo (na natureza e na consciência religiosa e moral inerente aos seres humanos, conhecida como revelação natural ou geral), assim como na exposição que Deus faz de si mesmo de formas sobrenaturais (testemunhadas na Bíblia Sagrada, também chamada revelação sobrenatural ou especial)4.

Portanto, de um lado desta equação temos uma realidade criada por Deus ordenadamente e, portanto, passível de ser “lida” por quem a examina. Do outro, temos o ser humano como uma criatura pessoal dotada da capacidade de conhecer, ou seja, de “ler” – razão pela qual buscamos sempre apreender o significado de tudo o que nos cerca. Somos, por essência, leitores vorazes do Livro da Realidade.

O mais incrível e impressionante, contudo, está no fato de que não nos limitamos a essa “leitura da realidade”, mas também escrevemos esse drama. Nós, seres humanos, não apenas lemos passivamente o significado da realidade que nos cerca, mas ampliamos este significado ativamente — e fazemos isso conforme nossas visões de mundo! Ou seja, a operação do mundo criado por Deus também é reordenada por nossa atividade contínua: toda decisão de seguir um curso em vez de outro produz o futuro5. Na linguagem da filosofia reformacional de Herman Dooyeweerd, a ação humana é um modo de desvelamento cultural.

Este insight não é exclusivo de teólogos cristãos. Um dos pensadores ocidentais mais influentes da atualidade, o psicólogo canadense Jordan B. Peterson, capta este fenômeno de maneira perspicaz. Em seu mais recente livro, Além da Ordem: mais doze regras para a vida, ao descrever a importância de escrevermos em detalhes todas as velhas lembranças que ainda nos perturbam, Peterson discorre sobre como o ser humano está destinado a transformar potenciais não formados no presente por meio da tomada de decisões:

Nós literalmente transformamos o mundo no que ele é, a partir das muitas coisas que percebemos que poderia ser. Isso talvez seja o ato primordial do nosso ser, e talvez do próprio Ser. Enfrentamos uma infinidade de perspectivas – de realidades múltiplas, cada uma quase tangível – e, ao escolher um caminho em vez de outro, reduzimos essa infinidade à existência singular da realidade. Ao fazer isso, transformamos o mundo da possibilidade no do Ser. Este é o mais profundo dos mistérios. O que é esse potencial que nos confronta? E o que constitui nossa estranha habilidade de moldar essa possibilidade e de criar o que é real e concreto a partir do que começa, em certo sentido, como meramente imaginário?6

Somos seres culturais por essência e ampliamos o significado da realidade ao nosso redor por meio do trabalho de nossas mãos (Gn 1.28): há no mandato cultural um aspecto inerentemente criativo (Gn 2.15), vez que somos colocados no jardim para fazer o mesmo que nosso Criador fez. Ao produzir cultura, nós assumimos o papel de coautores do Livro da Realidade – e o fazemos enquanto discípulos do perfeito Adão, Cristo Jesus (Rm 5.18,19).

Como aponta Timothy Keller, a cultura abrange cada aspecto de nossa vida neste mundo, determinando como decisões são tomadas, como emoções são exprimidas e como os relacionamentos são conduzidos7. Diante destes pressupostos, devemos estar especialmente atentos sobre como o cristianismo e a igreja se engajam e interagem com a cultura em geral — o que vem se tornando especialmente relevante em contextos cada vez mais pós-cristãos8. Devemos ter sempre em mente, contudo, que se trata de uma interação inevitável.

Pense em um peixinho dourado nadando em um espaçoso e belamente ornamentado aquário. Assim como o peixe não precisa se preocupar com o que fazer para interagir com a água que já o envolve por todos os lados, o cristão não precisa se preocupar em que fazer para dialogar com a cultura ao seu redor. Esse diálogo é intrínseco à estrutura da ordem criada, uma vez que somos criaturas feitas à imagem do Criador e vivemos em um mundo aberto à reordenação tanto por Deus como pelos homens. Portanto, a real preocupação de um cristão centrado no Evangelho reside em como estabelecer um diálogo cultural pautado no temor do Senhor (Pv 1.7). Que Deus nos dê sabedoria para tanto!


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1 Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ). Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Advogado. Diácono da Igreja Presbiteriana do Jardim Guanabara/RJ.

2 SIRE, James W. Universo ao lado: um catálogo básico sobre cosmovisão. Trad. Marcelo Herberts. 5ª Ed. Brasília: Editora Monergismo, 2018, p. 40.

3 Ibid., p. 44.

4 VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica – Antigo e Novo Testamentos. Trad.  Alberto Almeida de Paula. 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2019, p. 33 a 34.

5  SIRE, Op. cit., p. 40.

6 PETERSON, Jordan B. Além da ordem: Mais 12 regras para a vida. Trad. Wendy Campos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2021, p. 257.

7 KELLER, Timothy. Igreja centrada: desenvolvendo em sua cidade um ministério equilibrado e centrado no evangelho. Trad. Eulilia P. Kregness. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 108 a 109.

8 Ibid., p. 301 a 302.


Referências bibliográficas

KELLER, Timothy. Igreja centrada: desenvolvendo em sua cidade um ministério equilibrado e centrado no evangelho. Trad. Eulilia P. Kregness. São Paulo: Vida Nova, 2014. 464 p.

SIRE, James W. Universo ao lado: um catálogo básico sobre cosmovisão. Trad. Marcelo Herberts. 5ª ed. Brasília: Editora Monergismo, 2018. 341 p.

PETERSON, Jordan B. Além da ordem: Mais 12 regras para a vida. Trad. Wendy Campos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2021. 432 p.

VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica: Antigo e Novo Testamentos. Trad. Alberto Almeida de Paula. 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2019. 496 p.