Escrito por Anne Calland, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2023
Todo mundo conhece um intelectual orgulhoso, alguém com ar de superioridade, altivez e soberba em excesso. E quanto a teólogos com esta postura? A sua satisfação máxima está em expor conhecimentos e doutrinas difíceis que aprenderam em seus estudos de teologia, com atitude narcisista, revelando o desejo de admirar a si mesmos e às suas próprias capacidades. Nada poderia ser mais contraditório!
Jonas Madureira, em seu livro Inteligência Humilhada, descreve esse teólogo egocêntrico como tolo, afinal, ele apenas ilustra o que Provérbios 18.2 diz: “o tolo não tem prazer no entendimento, mas apenas em externar o que pensa”. O autor expõe, ao longo da obra, que “diante de Deus, toda a inteligência criada está sob a condição da humilhação. Em contrapartida, o que verdadeiramente existe é a consciência ou não desse fato” (MADUREIRA, 2017, p. 67).
Em primeiro lugar, ao se entender teologia como ciência concernente a Deus, é indispensável que haja, antes de tudo, a revelação da parte dEle (VOS, 2019, p. 13). Se Deus não se autorrevelar no tempo e no espaço, ninguém pode saber nada sobre Ele. Ninguém sequer existiria! Nas palavras de Geerhardus Vos: “A criação, portanto, foi o primeiro passo para a produção de um conhecimento extradivino” (VOS, 2019, p. 14).
O teólogo holandês define teologia bíblica como “o ramo da teologia exegética que lida com o processo da autorrevelação de Deus registrada na Bíblia” (VOS, 2019, p. 16). Assim, estudar essa disciplina é deparar-se com a realidade de que “a Bíblia é mais do que uma coleção de dizeres sábios dos quais obtemos nossa orientação, é uma história unificada que abrange toda uma realidade” (VANHOOZER, 2022, p. 151).
Entretanto, Deus não se revelou de uma única vez, em forma enciclopédica, ditando todo o conhecimento sobre si de forma ordenada, metódica ou temática. O processo de revelação se deu através da história, de forma que os próprios fatos e acontecimentos possuem importância revelacional. Isso aconteceu de forma orgânica, progressivamente, de modo que foi do estado germinal até atingir o crescimento pleno.
Nesse sentido, cada aspecto da realidade que conhecemos é resultado da graça divina. Deus criou todas as coisas pela palavra do seu poder e a criação é mantida pela constante atuação divina sob a regência de sua providência (MIGUEL, 2021, p. 54). Após a Queda, o pecado danificou a relação entre Deus e o homem, fazendo-se necessário um conteúdo de revelação especial para a redenção e ainda para mudar a forma como enxergar corretamente a realidade.
Assim, Deus deseja que o conhecimento d’Ele ocorra não apenas intelectualmente, mas no entrelaçamento entre a sua autorrevelação e a vida íntima das pessoas. Isso é o que o teólogo Geerhardus Vos chama de adaptabilidade prática da revelação (VOS, 2019, p. 19). Nas palavras de Kevin Vanhoozer: “Não basta afirmar a verdade do ensino bíblico ou mesmo viver pelas metáforas bíblicas. (…) Os discípulos precisam aprender a habitar a história da Bíblia” (VANHOOZER, 2022, p. 151).
A promessa de Deus é feita a Adão de que esmagaria a cabeça da serpente e a Abraão de que todas as famílias da terra seriam abençoadas por meio de seu descendente. Deus entrou, repetidamente, em relação de aliança com indivíduos: Noé, Abraão, Israel, Moisés e Davi. Sobre isso, O. Palmer Robertson descreve que aliança é um pacto de sangue que demonstra o caráter absoluto do compromisso entre Deus e o homem no contexto da aliança. As implicações de suas alianças estendem-se até às últimas consequências de vida e morte (ROBERTSON, 2011, p. 16). Ademais, formam uma unidade:
A evidência cumulativa das Escrituras aponta definitivamente em direção ao caráter unificado das alianças bíblicas. Os múltiplos pactos de Deus com o seu povo unem-se basicamente em um único relacionamento. Os detalhes particulares das alianças podem variar. Pode-se notar uma linha definida de progresso. Todavia, as alianças de Deus formam uma unidade. A estrutura de aliança da Escritura manifesta uma maravilhosa unidade. (…) Deus, ao juntar um povo a si mesmo, jamais muda. Por essa razão, as alianças de Deus relacionam-se organicamente umas às outras. De Adão a Cristo, uma unidade de administração pactual caracteriza a história do tratamento de Deus com o seu povo (ROBERTSON, 2011, p. 31, 45).
Desse modo, com a teologia bíblica, compreendemos como todas as peças se conectam e culminam naquilo que o Pai estava fazendo no Filho, por meio do Espírito, para renovar e reconciliar a humanidade e toda a criação (VANHOOZER, 2022, p. 151). Com o nascimento de Cristo, a segunda pessoa da Trindade eterna entra na história, concretizando de forma tangível as esperanças geradas pela revelação anterior. Segundo Igor Miguel: “Jesus Cristo é o ‘discurso divino’ presente na forma humana, a Sabedoria Encarnada. Sua biografia dramatiza a vida do Reino, a nova humanidade e a retomada do destino humano em direção ao que significa ser a imagem de Deus” (MIGUEL, 2021, p. 164).
Neste ponto, ressaltamos o método de ensino de Cristo. Uma característica marcante é o seu uso de parábolas. Geralmente, são citadas algumas razões pelas quais Cristo poderia ter utilizado essa forma de ensinar: simplicidade, identificação entre o conteúdo e as circunstâncias da vida comum dos ouvintes, por exemplo. No entanto, deve-se considerar que esse método de ensino era cumprimento de profecia prevista no Salmo 78.2: “Abrirei em parábolas os lábios e publicarei enigmas dos tempos antigos”.
As parábolas de Jesus cumprem o plano eterno de revelar a verdade de Deus ao povo, de uma forma tão penetrante que tem o propósito de diferenciar os ouvintes: aroma de vida para os que creem e cheiro de morte para os que rejeitam, como explica o apóstolo Paulo em 2 Coríntios 2.14-16 (KAISER; SILVA, 2014, p. 107). Ele mesmo disse aos discípulos, citando Isaías 6.9-10: “A vós outros vos é dado conhecer o mistério do reino de Deus; mas, aos de fora, tudo se ensina por meio de parábolas, para que, vendo, vejam e não percebam; e, ouvindo, ouçam e não entendam; para que não venham a converter-se, e haja perdão para eles” (Marcos 4.11-12).
Além disso, as parábolas sugerem um relacionamento próximo entre criação e redenção. Jesus não olha despretensiosamente para a natureza em busca de ilustrações para o seu argumento. Ele é tanto Criador quanto Redentor e extrai da criação os paralelos que Ele mesmo determinou que assim o fossem. Geerhardus Vos explica:
Seria mais correto chamá-las de descobertas espirituais, porque estão baseadas em certo paralelismo entre as duas camadas da criação, a natural e a espiritual (redentora), porque o universo tem sido construído desse modo. Pelo princípio da ‘Lei espiritual no mundo natural’, as coisas e processos naturais refletem como num espelho as coisas supranaturais, e não era necessário que Jesus inventasse ilustrações. Tudo o que ele tinha que fazer era chamar a atenção para o que estava por trás, escondido, mais ou menos, desde o tempo da criação (…). A familiaridade maravilhosa da mente de Jesus com todo o compasso da vida natural e econômica, observável em suas parábolas, pode ser explicada por ele ter sido o Mediador divino para trazer este mundo com tudo contido nele à existência, e mais uma vez ele foi o Mediador divino para a produção e o estabelecimento da ordem da redenção (VOS, 2019, p. 427).
O livro de Hebreus exalta a pessoa e obra de Jesus Cristo como a revelação plena e final de Deus ao seu povo e como o Mediador da nova aliança. Nos primeiros versículos, o autor mostra a extensão e a amplitude da Palavra de Deus: na época do Antigo Testamento, Deus falou por meio de seus profetas; no Novo Testamento, Ele falou por meio de seu Filho (KISTEMAKER, 2013, p. 21). Ele é a culminação da obra salvadora de Deus na História. Realizou a plena expiação pelo pecado sendo superior a todas as administrações anteriores:
Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo. Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas, tendo-se tornado tão superior aos anjos quanto herdou mais excelente nome do que eles (Hebreus 1.1-4).
Após ressurgir dos mortos, Cristo afirma que enviaria o Consolador para guiar o seu povo em toda a verdade. Kevin Vanhoozer afirma que “esse drama é uma história que se fez carne: primeiro, por Jesus Cristo, em quem a história atinge seu clímax; depois, por seus discípulos que continuam a corporificar e encenar a história no poder do Espírito de Cristo” (VANHOOZER, 2022, p. 170). Portanto, o estudo da teologia bíblica produz não somente conhecimento intelectual, mas nos ajuda a compreender a nós mesmos e a nos conscientizar da nossa função nesta grande história da redenção: “manifestar a nova vida em Cristo na liberdade do Espírito e, assim, glorificar o Pai” (VANHOOZER, 2022, p. 174).
A cada página de estudo de teologia bíblica, nos maravilhamos com um Deus soberano em todas as instâncias, conduzindo metanarrativas e detalhes íntimos da mente humana, até atingir todos os seus propósitos e cumprir todas as suas promessas. Não há como manter-se altivo diante de uma fonte inesgotável de conhecimento. A finalidade principal das Escrituras não consiste em fornecer informações teológicas, mas, sim, em promover a transformação do coração e da vida. Quanto mais conhecemos a Deus, percebemos a infinitude de sua grandeza e impossibilidade de conhecê-lo plenamente. Isso nos humilha e escancara a verdade de que Ele só pode ser conhecido porque se revela e opera em nós, através de sua Palavra e da iluminação de seu Santo Espírito.
Diz a Bíblia em Tiago 4.6: “Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes”. Assim, sujeitemo-nos a Deus e estudemos teologia bíblica, de joelhos, com oração e súplica, diante do Senhor, para que Ele nos guie na vida e nos pensamentos.
Acreditamos que o estudo teológico é fundamental para todo cristão, e não apenas para pastores ou líderes. Afinal, a teologia nos ajuda a seguir a Cristo em todos os aspectos da nossa vida!
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Referências Bibliográficas
BÍBLIA DE ESTUDO HERANÇA REFORMADA. Almeida Revista e Atualizada. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil; São Paulo: Cultura Cristã, 2018. 2240p.
KAISER, Walter C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica: como ouvir a Palavra de Deus apesar dos ruídos de nossa época. Tradução: Paulo C. N. dos Santos, Tarcízio J. F. de Carvalho e Susana Klassen. 3ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2014. 288 p.
KISTEMAKER, Simon. Hebreus: Comentário do Novo Testamento. Tradução: Marcelo Tolentino e Paulo Arantes, 2a ed. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2013. 640 p.
MADUREIRA, Jonas. Inteligência Humilhada. 1ª ed. São Paulo, SP: Vida Nova, 2017. 336 p.
MIGUEL, Igor. A escola do Messias: fundamentos bíblico-canônicos para a vida intelectual cristã. 1a ed. Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson Brasil, 2021. 208 p.
ROBERTSON, O. Palmer. O Cristo dos pactos. Tradução: Américo Justiniano Ribeiro, 2.ª ed. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2011. 240 p.
VANHOOZER, Kevin J. Discipulado para a glória de Deus: um guia pastoral para fazer discípulos por meio das Escrituras e doutrina. Tradução: Francisco Wellington Ferreira. São Paulo, SP: Vida Nova, 2022. 320 p.
VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica: Antigo e Novo Testamentos. Tradução: Alberto Almeida de Paula. 2ª ed. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2019. 496 p.