Escrito por Raquel Maynnara do Nascimento Borges, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2022
Introdução
Uma das características mais peculiares dos seres humanos é a sua capacidade de maravilhamento e apreço pelo belo. O pôr do sol, a diversidade da natureza e o riso de um bebê podem preencher nosso coração com emoções inenarráveis. Estamos acostumados a ter acesso a conteúdos nas artes que, de acordo com Rookmaaker, tem o seu significado estético como harmonia bela (ROOKMAAKER, 2018, p. 50), coesa. Calvin Serveeld, por sua vez, acrescenta a isso relacionando a imaginação e a alusividade à estética1, apontando-a para além. Somos atraídos por produções humanas que dramatizam os relacionamentos, a batalha entre o bem e o mal e contam a importância da amizade. Mas, onde podemos alocar as obras divergentes disso, como os filmes de terror? E se tratando de obras criminais, qual a maneira de assistir a tal conteúdo? Assim, este artigo objetiva realizar uma breve análise de uma produção cinematográfica do gênero true crime, utilizando as contribuições de Hans Rookmaaker em seu livro Filosofia e estética e, através disso, lançar luz sobre como o cristão deve examinar e consumir tais conteúdos.
Licença poética: vale tudo na arte?
Lançada em setembro de 2022, a série original da Netflix, Dahmer: um canibal americano, conta a história verídica de um jovem que cometeu crimes hediondos na década de 90 em Milwaukee, Estados Unidos. Seu conteúdo não é recomendado para menores de 18 anos, pois a narrativa expõe como Jeffrey Dahmer matou 17 rapazes, além de sua prática de canibalismo. A obra possui um roteiro bem construído, com uma fotografia densa, de baixa iluminação e quase mórbida, além de atuações realmente convincentes. É possível sentir a agonia daquilo que se passou no apartamento 213. Por se tratar de uma boa produção, os espectadores são conduzidos por uma linha do tempo até à infância do jovem. A história contada na série constrói a personalidade assustadora de Jeffrey a partir de acontecimentos de sua infância e adolescência, como o divórcio dos seus pais. Por breves instantes, as conclusões feitas são as de que o rapaz teve seu caráter forjado para o mal pelas suas trágicas circunstâncias de vida.
De acordo com Rookmaaker, obras de arte, como estruturas da esfera de lei estética, estão, antes de tudo, sujeitas a uma norma, remontada às ordenanças de Deus reveladas nas Escrituras (ROOKMAAKER, 2018, p. 26). Nesse sentido, é possível criar obras cujo conteúdo seja feio e com um efeito psicologicamente repulsivo, mas ainda esteticamente belas (p. 111, nota de rodapé 117). Há espaço para a feiura na arte, pois ela é um elemento revelado em nossa existência por meio do pecado. O mundo inteiro está manchado pela Queda e as repercussões disso são o sofrimento, a dor, a injustiça, as atrocidades e a morte. Dessa forma, é possível criar uma produção cinematográfica onde se expõe um quadro de horror. Porém, essa obra deve respeitar as normas criadas por Deus, e isso significa expor a verdade e não degradar o ser humano (ROOKMAAKER, 2018, p. 59).
Apesar de a série Dahmer mostrar o lado mais sombrio e a extensão da raiz profunda do pecado, ela não identifica a maldade como responsabilidade do rapaz, mas atribui a culpa ao seu pai e ao divórcio. Além disso, o roteiro adiciona elementos que não aconteceram na vida real. Ora, se os escritores desejavam contar outra história, não deveriam utilizar um acontecimento real tão terrível para as famílias das vítimas, expondo-as novamente a um trauma. Ao tocar na dor do outro, uma obra de arte deixa de ser qualificada como esteticamente boa e toma uma direção antinormativa, já que o amor ao próximo deve ser a base para nossas construções culturais e artísticas (ROOKMAAKER, 2018, p. 59).
Por outro lado, o ator principal, Evan Peters, afirmou não se tratar de uma tentativa de humanizar Jeffrey, mas de trazer à tona os problemas do sistema policial, questões de racismo e homofobia. A série suscita esses temas, mas o único desfecho produzido ao final da trama é um completo vazio, pois, apesar de trazer o incômodo necessário para a discussão desses problemas, não deixa nenhuma mensagem de esperança ou de redenção. O mal e a injustiça são normalizados e o crime é apenas um efeito colateral de uma família desestruturada. Dessa forma, a série é muito bem construída do ponto de vista técnico, mas é mais uma vez antinormativa por não reconhecer a Lei de Deus ao tentar justificar comportamentos pecaminosos (e criminosos) como meros resultados de problemas familiares.
Mesma história, apresentações diferentes
Em contrapartida, a Netflix possui em seu catálogo um documentário sobre o mesmo caso, sob o título Conversando com um serial killer: o canibal de Milwaukee, de outra perspectiva. A minissérie é dissonante da obra citada anteriormente, uma vez que o foco está na investigação criminal e na exposição dos fatos. Não são atores, mas os psicólogos, psiquiatras, jornalistas, advogados e o próprio Dahmer relatando todo o processo, desde a prisão até seu julgamento e morte. Diferentemente da série, onde o pai de Jeffrey assume a responsabilidade de contribuir para os terríveis acontecimentos, o documentário revela gravações de Dahmer expondo os crimes como parte de um ritual satânico, além de mostrar sua visão distorcida dos seus parceiros: objetos controlados para fins sexuais. Boa parte da discussão gira em torno do júri e de sua decisão de declará-lo insano ou não, o que determinaria o futuro do criminoso: se na prisão ou num hospital para tratar de suas questões psicológicas.
Ainda sobre a série, o diretor Ryan Murphy alegou ter tentado fazer contato com 20 famílias das vítimas, porém sem sucesso de resposta. Em contrapartida, Isbell, irmã de um dos rapazes assassinados, disse não ter sido informada sobre a série, muito menos que teria seu discurso no tribunal encenado para a TV, fazendo-a reviver aquele episódio tão traumático. Também Anne Schwartz, jornalista envolvida na reportagem nos anos 1991, informou ao jornal britânico The Independent que a série “sacrificou a precisão pela dramaticidade”. Na tentativa de criar uma obra para render visibilidade, lucro e trazer à tona problemas sociais, os produtores e editores falharam ao desconsiderar as famílias e a autenticidade do caso. Entre o documentário e a série, há uma enorme discrepância do ponto de vista da elaboração do acontecimento: enquanto a primeira visa expor os fatos, a segunda deseja construir uma narrativa baseada num acontecimento real, uma história dentro de outra história, fazendo que faz toda a diferença.
Considerações finais
Assim, a partir dos exemplos expostos, a postura do cristão diante das produções culturais contemporâneas pode ser a de total desprezo, a de uma apreciação sem filtro ou a de um consumo reflexivo e analítico. A Revelação bíblica possui como base os princípios da criação, queda, redenção e consumação e, por isso, os cristãos são os únicos com as ferramentas completas para realizar uma boa crítica cultural. Rookmaaker explicou sobre a impossibilidade de enxergar o mundo por apenas um prisma quando disse: “não podemos isolar nada em um ou mais aspectos da realidade, em uma ou mais funções, pois, então, já não teríamos coisas reais, mas apenas abstrações” (ROOKMAAKER, 2018, p. 26). Por enxergarmos toda a realidade como criada por Deus, com suas próprias leis e funcionalidades, podemos lidar com os artefatos e experiências humanas de forma coerente e abrangente, mesmo que eles sejam desagradáveis.
Assim, temos na própria Bíblia relatos de situações horríveis, como a do esquartejamento de uma mulher no Antigo Testamento. Tomando as Escrituras como exemplo, há espaço para a criação de obras de arte que exponham a maldade humana, desde que ela não seja estimulada, mas exposta e confrontada. Um filme de terror pode ser produzido sem ultrapassar a linha da degradação humana e nem estimular pecados. Da mesma forma, uma série baseada em crimes pode ser considerada eticamente cristã se respeitar a dor das vítimas e não banalizar a dimensão da maldade humana.
Como filhos de Deus numa geração corrompida, os cristãos são chamados a contribuir para o desenvolvimento e florescimento da sociedade, sendo como um farol apontando a direção correta. Aqueles que possuem a vocação de estar envolvidos no meio artístico não precisam fazer uma arte cristã, com versículos bíblicos e narrativas que incluem Deus em todo parágrafo para renderem glória ao Senhor. Antes, os compromissos de um coração obediente serão expostos nas produções ao trazerem uma visão de homem com dignidade, uma compreensão holística da realidade e uma teleologia apontando para o transcendente. Seguindo as orientações de Rookmaaker,
A arte cristã tem de atender a dois requisitos: as normas devem ser positivadas sob a orientação da fé cristã, em submissão à lei dada por Deus, e os artistas devem deixar-se conduzir na concepção de sua arte por esta fé, sua atividade criativa deve encontrar raízes nesta escolha de posição religiosa em que o coração se dirige a Deus, que se revela a nós por intermédio de Cristo (ROOKMAAKER, 2018, p. 80).
Além disso, os cristãos devem contribuir para o segmento das artes visuais com uma postura de crítica bem fundamentada. Ao invés de retermos as verdades eternas nas quatro paredes da Igreja, devemos fermentar toda a massa da cultura que nos envolve ao lembrarmos da inescapabilidade das normas divinas, estando atentos às questões de nosso contexto e apontando a perspectiva cristã de criação, queda e redenção para todos os gêneros de filmes e séries. Uma arte cristã, bem como uma crítica fiel às artes, só pode ser plenamente produzida se respeitarmos as ordenanças do Criador em todas as esferas da existência humana. Como Rookmaaker uma vez disse,: “A verdadeira liberdade consiste apenas em guardar as leis de Deus — como um peixe pode mover-se livremente nas águas, mas só pode estrebuchar e morrer se buscar “liberdade” em terra” (ROOKMAAKER, 2018, p. 38). Somente por meio da narrativa abrangente das Escrituras poderemos ser bons representantes de Cristo em todos os ambientes, incluindo nas artes.
1 SEERVELD, Calvin, A Christian critique of art & literature. Eugene/Oregon: Wipf and Stock Publishers: 1995. p. 37.
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Referências
BUSHBY, Helen & YOUNGS, Ian. Jeffrey Dahmer: por que série sobre serial killer americano causa tanta polêmica. In: BBC News Brasil. Acesso em 5 de novembro de 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-63125984
NETFLIX. DAHMER – Monster: The Jeffrey Dahmer Story | Evan Peters on the complexity of playing Dahmer. Netflix, 2022. 1 vídeo (3:55). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pvQP-85ADRE
ROOKMAAKER, Hans. Filosofia e estética. Tradução: William Campos da Cruz. 1ª edição. Editora Monergismo: Brasília, DF, 2018. E-book na plataforma Kindle. 236 p.
SEERVELD, Calvin, A Christian critique of art & literature. Eugene/Oregon: Wipf and Stock Publishers: 1995. 137 p.