Escrito por Marlon Girardello, estudante do Programa de Tutoria Filosófica – Turma 2021
“Não há significado ou propósito objetivo, não há integridade moral no mundo dos fatos; há, no entanto, apenas fatos, nada mais.”
Steve Turley
Introdução
O ceticismo no século XVI tinha como pano de fundo a fragmentação. Era um tempo de profundas disputas teológicas (desde o século XIII). As colonizações e o contato com novas culturas eram intensos, assim como as redescobertas de obras céticas antigas. Esse contexto ebulitivo culminou em um ambiente propício para que houvesse uma ruptura no pensamento corrente.
Nessa esteira, surgiu René Descartes (1596–1650) colocando à prova o que havia sido construído pelos filósofos que o antecederam. Descartes, além de filósofo, era matemático e adveio daí o ponto central da sua crítica. O que unia a ciência? Não haviam métodos antes dele. Qual modelo poderia ser utilizado então? Buscando desconstruir o pensamento e construí-lo com base em um critério racional, Descartes trouxe questões que até hoje são incontornáveis.
Tendo o pensar como ponto arquimediano, trouxe com esse sistema uma miríade de perguntas: Como o pensamento poderia garantir o existir? Tudo então estaria restrito à razão? Como ficariam as percepções e sensações? Descartes inaugura uma hermenêutica que parte da dúvida. Os filósofos posteriores a ele, tiveram, e têm, um árduo trabalho para lidar com o que ele suscitou. Se a existência do homem está ligada ao pensar, como ficaria o corpo? Como mente e corpo interagem? É possível ter alguma certeza enquanto se duvida? Esse foi o ambiente em que Descartes colocou o pensamento moderno. Incontáveis dúvidas e poucas respostas.
O homem, portanto, foi esvaziado e subjugado a ser alguém restrito apenas a pensar e, posteriormente, ao que poderia ser experienciado. Significado e propósito acabaram ficando esquecidos nos escombros de uma desconstrução e tentativa de reconstrução.
Ceticismo Moderno: implodindo os alicerces
Descartes marcou a modernidade com sua dúvida metódica. Ele duvidou daquilo que ninguém havia ousado duvidar antes dele. Foi o soprar no castelo de cartas da filosofia. Ao implodir o que havia sido construído anteriormente, observou na matemática uma opção plausível para a condução de um novo sistema. Para que se salvasse de um ceticismo após pôr à prova o pensamento fragmentado da época, Descartes se valeu da racionalidade como bote salva-vidas. Seu método científico, portanto, estava ligado à racionalidade. A matemática agora era o modelo de ciência, pois não lidava com percepções. A soma do numeral 2 com o numeral 3 é igual a 5 independente da percepção ou sensação. Seu método dedutivo buscava convergência e estabilidade em um contexto de muitas disputas e fragmentações. Havia a necessidade de uma segurança epistemológica. Para ele, portanto, a matemática é quem trazia essa segurança e poderia servir de modelo para a aplicação nas demais áreas do saber.
Contudo, seu pensamento foi marcado por saltos. Ao colocar em dúvida sua existência, se perguntou se havia alguma certeza enquanto ele duvidava, concluindo que a única certeza é a de que estava pensando. Ele era porque estava pensando, e, se pensava, logo existia. Entretanto, isso não evidenciava quase nada, só dava garantia de que havia uma mente, mas não provava nada material (corpo) e nem como a mente e o corpo interagiam. A única coisa que ele prova é que ele pensa. A mente sendo utilizada para validar a si mesma. Um argumento circular que levaria para um ceticismo ainda mais profundo do que anteriormente, porque o ceticismo é essa desconfiança da nossa capacidade de perceber a realidade.
Haviam pressupostos que não eram admitidos ou que foram suprimidos. Ele pressupôs que a sua mente era sã, por exemplo, e que ele não estava sendo enganado por seus pensamentos, se utilizando disso para criar o ideal do “penso, logo existo”. Ele teria que acreditar em algo, não conseguiria partir do nada. Os que vieram depois de Descartes tentaram dar respostas, inclusive naquilo que tange à separação que Descartes fez do corpo e da mente. Nos desenvolvimentos de George Berkeley (1685–1753), esse problema se tornou ainda mais agudo, pois Berkeley afirmava que se não se consegue afirmar/conectar as ideias com o mundo, fica-se apenas com as representações, tornando tudo representativo, sem nenhuma realidade de fato. Todo o universo ao nosso redor, corpos e mentes, Sol e Lua, todas as coisas que imaginamos ter uma existência permanente, quer pensássemos ou não nelas, sem exceção desaparecem de uma vez. As impressões e ideias seriam as únicas coisas existentes das quais poderíamos ter qualquer conhecimento ou conceito; elas seriam seres fugazes e transitórios que não poderiam ter existência além do tempo que estamos conscientes dela1.
Senso Comum: fugindo da nuvem de pó
Em oposição à sabedoria da filosofia, a do senso comum da humanidade considera a opinião da existência de algo apenas quando é pensado uma espécie de loucura metafísica. Reid afirma que “essa oposição da filosofia e senso comum pode ter uma influência muito infeliz no próprio filósofo. Ele vê a natureza humana sob uma luz estranha, hostil e degradante. […] Tais noções de natureza humana tendem a: afrouxar o nervo da alma, tirar de vida todo sentimento e propósito nobre e espalhar escuridão de melancolia sobre toda a face das coisas”2. Thomas Reid continua: “a crença em um mundo material é mais antiga, e tem mais autoridade que quaisquer princípios da filosofia”3. Se não podemos, pelo raciocínio, inferir a existência da matéria a partir de nossas sensações e pelas sensações também não podemos inferir a existência de nossa mente e de outras mentes, qual garantia temos de que essa impossibilidade é válida já que é baseada em impressões e ideias? É um ceticismo seletivo, um semiceticismo, que não duvida de si, mas acredita na existência de suas impressões e ideias. Descartes e seus seguidores pressupunham que pensavam e tinham sensações e ideias. Se até aqueles que rechaçaram as impressões e ideias se valeram delas para teorizar, vemos aqui uma brecha no representacionismo.
Para Reid, os sentidos são meios para o contato com o mundo externo,; o senso comum é a capacidade de fazer julgamentos, não sendo restrito ao indivíduo e ao seu pensar, mas baseado em uma percepção que se mostra comunitária, abarcando tanto coisas autoevidentes quanto adquiridas. Considerando que nosso sistema cognitivo está funcionando com perfeição, quando olhamos um objeto não é apenas uma imagem representativa. O objeto de fato tem uma cor, formato, peso e está há uma certa distância. Nossas faculdades intelectuais são básicas, são da constituição. As percepções são adquiridas, eu sei o que é o azul porque tenho essa disposição autoevidente de perceber isso e aprender. É um contato imediato, eu não preciso inferir que uma moto está vindo, eu simplesmente já adquiri essa percepção pela memória. A disposição é natural. A natureza sempre se comunicou com a mesma linguagem. No testemunho da natureza oferecido pelos sentidos, assim como no testemunho proporcionado pela linguagem, as coisas têm significado para nós através depor meio de signos, e em um, assim como em outro, a mente, seja por princípios originais, ou por costume, passa do signo para a concepção e crença da coisa significada4.
Cada operação dos sentidos, em sua própria natureza, implica juízo ou crença, da mesma maneira que simples apreensão. Assim quando sinto a dor da gota no meu dedo do pé, tenho não apenas uma noção de dor, mas a crença de sua existência, e uma crença de algum distúrbio que a ocasiona; essa crença não é produzida pela comparação de ideias, e percepção de suas coincidências e diferenças; ela é embutida na própria natureza da sensação. Quando percebo uma árvore diante de mim, minha faculdade da visão me dá não somente uma noção ou simples apreensão da árvore, mas uma crença em sua existência, e em sua forma, distância e magnitude, e esse juízo ou crença não vem da comparação de ideias; ela está embutida na própria natureza da percepção. […] Tais juízos originais e naturais são, portanto, uma parte do mobiliário que a natureza deu ao entendimento humano5.
Em última análise, os nossos sentidos podem ser falhos, mas os de Jesus não são. Entendemos que nossos sentidos e percepções podem falhar, mas servimos aquele que está em uma realidade transcendente e que é perfeito em todos os sentidos. Entendemos que, ao contrário do gênio maligno de Descartes que poderia estar enganando ele, Deus é uma condição de possibilidade e não um preenchedor de lacunas.
Virtudes: memórias soterradas
Apesar de Thomas Reid ser um empirista moderado, os princípios do senso comum abrem possibilidades. É possível que, por meio dele, retomemos algo que acabou ficando soterrado nos pensamentos dos racionalistas e empiristas: as virtudes. A hermenêutica da dúvida acabou eclipsando os princípios ligados ao propósito e significado divino no mundo.
Entretanto, em Reid e no senso comum, podemos pontuar dois princípios originais que nos são caros no que se refere às virtudes: o da veracidade e o da credulidade. O princípio original é uma previsão antecipada, uma presciência das ações humanas, não derivada da experiência, nem da razão, nem de acordo ou promessa6. O sábio e beneficente Autor da natureza, tinha por intenção que recebêssemos a maior parte de nosso conhecimento por meio de informação de outros. Do princípio da veracidade, derivamos que é imputado por natureza no homem o falar a verdade e usar os signos da linguagem para transmitir os reais sentimentos. Até os mentirosos, mesmo que a suprimam, na maioria do tempo falam a verdade. As crianças dizem a verdade até que sejam capazes de serem influenciadas por fatores externos e por seu próprio pecado. Da mesma forma ocorre com o princípio da tendência em confiar na veracidade dos outros e acreditar no que dizem. É ilimitado em crianças até que encontrem exemplos de engano e falsidade, e se mantém em um grau bastante considerável de força durante a vida7.
A hermenêutica da dúvida coloca o ser em direção a desconfiar de tudo que não é verificável, mas o faz de maneira artificial. O homem, em seu senso comum, busca, por natureza, pela verdade e pela confiança. Reid afirma que “pode ser que haja tentações à falsidade demasiadamente fortes para o princípio natural da veracidade, sem ajuda de princípios de honra ou virtude, mas, onde não houver tentação, falamos a verdade por instinto, e esse instinto é o princípio”8. A imanentização do pensamento moderno fez o homem olhar para a realidade e duvidar de tudo, ao invés de estimular a admiração e o deslumbramento, incapacitando-o de enxergar o propósito e o significado divino no mundo9. Conforme escreveu C. S. Lewis: “Pode até ser útil ter a mente aberta em questões não essenciais, mas ter a mente aberta em relação aos fundamentos derradeiros, seja da Razão Teórica ou da Prática, é pura idiotice”10.
Conclusão
Os esforços dos racionalistas e empiristas foram vitais para o andamento da filosofia. A hermenêutica da dúvida suscitou questões que refinaram o pensamento filosófico, porém, em busca da certeza se assemelharam a uma pessoa que tentava se levantar puxando seus próprios cabelos. Essa busca é vã se tentada alcançar através da experiência ou racionalidade. O homem não encontrará essa certeza fora da Revelação criacional.
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1. REID, Thomas. Investigação sobre a mente humana segundo os princípios do senso comum; Tradução Aline Ramos – 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2013, p. 16.
2. REID, 2013, p. 77.
3. REID, 2013, p. 77.
4. REID, 2013, p. 193.
5. REID, 2013, p. 217.
6. REID, 2013, p. 195.
7. REID, 2013, p. 196.
8. REID, 2013, p. 196.
9. TURLEY, Steve. Abolição da sanidade: as consequências do modernismo de acordo com C.S. Lewis ; tradução: Ulisses Teles. – São Paulo: Trinitas, 2020, p. 26.
10. LEWIS. C. S. A abolição do homem; traduzido por Gabriele Greggersen. 1 ed. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017 – versão digital, posição 523.
Referências Bibliográficas
LEWIS. C. S. A abolição do homem. Traduzido por Gabriele Greggersen. 1 ed. — Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017 – versão digital.
REID, Thomas. Investigação sobre a mente humana segundo os princípios do senso comum. Tradução Aline Ramos – 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2013.
TURLEY, Steve. Abolição da sanidade: as consequências do modernismo de acordo com C.S. Lewis. Tradução: Ulisses Teles. – São Paulo: Trinitas, 2020.