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Esnobismo cronológico: a encarnação de Jesus e o Antigo Testamento

Escrito por Mariana Novais, estudante do Programa de Tutoria – Turma Essencial 2021

INTRODUÇÃO

Bem e mal. Céu e inferno. Lei e graça. Esses são apenas alguns exemplos das dicotomias que permeiam a visão de muitos evangélicos. Tornou-se comum tratar a Escritura não como uma história completa, mas dividi-la em dois grandes fragmentos: Antigo e Novo Testamentos. Essa cosmovisão pode estar fundamentada em uma visão distorcida da Aliança estabelecida por Deus desde a criação. A partir da encarnação de Jesus, esse artigo tem como objetivo mostrar que ao contrário do que muitos supõem, a Bíblia não é uma colcha de retalhos, mas um peça inteira, tecida pelo mesmo Criador.

ESNOBISMO CRONOLÓGICO

O famoso escritor C. S. Lewis usa um termo bastante interessante chamado “esnobismo cronológico”. Através dele, busca retratar a falácia de que algo, seja pensamento, costume ou ciência, pertencente a uma época anterior à presente, seja inferior. E esse é o comportamento de grande parte da Igreja nos últimos anos, supervalorizando o Novo Testamento em detrimento do Antigo. 

O tempo é visto como um elemento que aprova ou reprova os ensinamentos bíblicos. O passado deixa de ser levado em consideração, pois já passou, o presente é superestimado e o futuro é visto como algo distante. Quem tem algo a dizer sobre isso é Peter Leithart, em sua obra “Vestígios da Trindade”. Leithart dedica um capítulo inteiro sobre o tempo, e sua tese afirma que “[…] não há presente a menos que passado e futuro o habitem” (LEITHART, 2018, p. 88). Logo, seguindo esta premissa, não há Novo Testamento, sem o Antigo.

Essa cosmovisão acaba comprometendo o entendimento acerca da Aliança firmada por Deus com a humanidade. Talvez a forma como esse arranjo é descrito (pacto das obras e pacto da graça) acabe fragilizando ainda mais o entendimento holístico da narrativa bíblica, quando na verdade, Deus estabeleceu apenas uma Aliança. A queda foi unilateral e antropolateral; não é teolateral[1]. A graça não está presente apenas no Novo Testamento, a Aliança sempre foi mantida por meio dela, e nunca pela obediência humana. Esse elemento mostra a organicidade da Bíblia, sua linearidade. A Escritura não deve ser dicotomizada. 

O VERBO SE TORNOU CARNE

A encarnação de Jesus é a continuidade de tudo aquilo falado no Antigo Testamento. Durante a leitura veterotestamentária é claro observar vislumbres da futura encarnação do Messias. Consequentemente, é essa esperança futura que media a revelação redentora até a plenitude do nascimento do Cristo.

A partir do ministério público de Jesus Cristo aqui na Terra, podemos extrair ensinamentos que comprovam e afirmam a inteireza da Palavra. Como falado anteriormente, a queda – descumprimento da Aliança – foi antropolateral, Jesus veio para consertar isso. O Messias veio para cumprir aquilo que o primeiro homem não conseguiu: a parte humana da Aliança. A provação pela qual Jesus passa no deserto mostra seu posicionamento em relação ao Pai.

“Ser tentado não envolve nenhuma humilhação especial para nós, porque já estamos antecipadamente humilhados pela presença do pecado em nossos corações ao qual a solicitação simplesmente tem de ser feita, enquanto isso era bem diferente no caso de Jesus” (VOS, 2019, p. 403).

Enquanto o primeiro Adão buscou autonomia, Jesus se submeteu à vontade do Pai. Cristo decidiu permanecer ao lado do Pai por escolha própria, diferente do primeiro homem, que após a queda necessitou da intervenção do Deus Pai para sua justificação. Além de cumprir a Aliança das obras, Jesus fez por nós o que nunca conseguiríamos fazer, que é a expiação dos nossos pecados. Ele cumpriu em si mesmo todas as promessas e profecias antecipadas no Antigo Testamento.

JÁ, MAS AINDA NÃO

Se analisarmos o discurso de Jesus Cristo podemos observar como este se baseia nas Escrituras. E se o único cânon naquele momento era  o que hoje chamamos de Antigo Testamento, toda pregação ou celebração de sacramento que Jesus realizou, era relativo ao primeiro testamento. Jesus é o verbo que se tornou carne. 

Geerhardus Vos, em sua Teologia bíblica, afirma que se Jesus tivesse pregado algo diferente do Velho Testamento, inauguraria uma nova religião, e sabemos que isso não aconteceu. Jesus inaugurou, sim, algo: a forma que nos relacionamos com Deus. Enquanto no passado havia a necessidade de um mediador além de Cristo, hoje temos direto acesso ao Pai através do Filho.

A Aliança estabelecida no Novo Testamento se difere da primeira pois agora é final. Ninguém pode acrescentar nada acima daquilo falado pelo Filho. Saber disso nos ajuda a discernir entre verdade e engano, já que muitos acrescentam além do que o Novo Testamento declarou. Pedro Dulci chama atenção para a suficiência das Escrituras. “Contra todas as heresias que procuram ampliar a revelação de Deus para além do escopo do NT, devemos nos lembrar que já temos nas Escrituras toda a estrutura interpretativa para as últimas cenas do drama divino”².

CONCLUSÃO

Ao decorrer deste artigo é perceptível o entrelaçamento de toda a Escritura. Não há fragmentos, nem dicotomias, nem contradições; a Palavra é orgânica. É impossível falar do Novo Testamento sem citar o Antigo. Isso tudo aponta para o Deus que inspirou todo o texto sagrado. Embora a Trindade seja a união de três Pessoas distintas, é esta alteridade que define a identidade do verdadeiro Deus. A Aliança descrita nas Escrituras é um convite a participar da pericorese – a dança que envolve Pai, Filho e Espírito. O Pai que ama o Filho por toda a eternidade decide o enviar para cumprir sua promessa derramando sobre Ele o Espírito.


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REFERÊNCIAS

LEITHART, Peter J. Vestígios da Trindade: sinais de Deus na criação e na experiência humana. Trad. Leandro G. F. C. Dutra. 1ª ed. Brasília, DF: Monergismo, 2018.

VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica: Antigo e Novo Testamentos. Trad. Alberto Almeida de Paula. 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2019.