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Hermenêutica da vida: o sentido cristológico da teologia natural para interpretar a realidade

Escrito por Daniel Simões, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2021

Introdução

Toda realidade está sujeita à interpretação daqueles que estão inseridos nela. Quer se dando conta, quer não, todos estão envolvidos nesse exercício, de forma que as lentes escolhidas para ver a realidade determinarão a precisão da imagem observada. Com tal afirmação, decorre-se o fato de que determinadas interpretações serão menos precisas, pois serão mediadas por lentes comprometidas.

É pressuposto aqui que na afirmação da fé cristã se carrega mais do que uma expressão de crença, mas também toda uma visão de mundo que ilumina o contexto observado e lhe determina o sentido. O presente trabalho segue, então, como uma proposta de princípio interpretativo da vida a partir da noção de sentido atribuída por Jesus ao lidar com aspectos da natureza a partir da abordagem de Alister McGrath. Espera-se mostrar que o significado dado por Jesus a determinados entes naturais é mais do que a interpretação de uma coisa, mas sim o verdadeiro sentido intencionado quando da sua criação. Com base na segurança de tal afirmação, Jesus será afirmado como uma espécie de princípio de inteligibilidade de tudo o que há.

Teologia natural: um caminho para a compreensão

Jorge Herbert afirma que “a essência de uma teologia natural está relacionada ao tema do discernimento, a capacidade de perceber ‘o céu no que é ordinário’”1. Esse tópico é alvo de extenso olhar por um campo de análise teológico chamado de teologia natural. Nele, lida-se com aquilo que pode ser visto das coisas criadas por Deus que apontam para Ele.

Na construção de raciocínio semelhante, parece haver anuência com Pascal quando disse ser “feliz o homem que consegue reconhecer na obra de hoje uma porção conexa da obra da vida, bem como uma manifestação da obra da eternidade”2.

McGrath expõe sua concordância com Herbert e Pascal ao reconhecer a centralidade do tema e dizer que “a natureza detém o acesso ao conhecimento de Deus”3. Mais do que um mero apontamento para Deus, uma leitura adequada, especialmente das palavras de Jesus nos evangelhos, mostra uma percepção de que a natureza carrega consigo a capacidade de comunicar o transcendente. Essa percepção só pode ser compreendida ao se adotar uma apropriada lente para interpretar a natureza. Nesse sentido, deve-se destacar a existência de uma maneira cristã de ver a natureza.

A teologia natural cristã concentra-se em ver a natureza de uma maneira específica, que permite ao observador discernir naquilo que é visto a verdade, a beleza e a bondade de um Deus trinitário já conhecido. Também possibilita à natureza funcionar, para toda a cultura secular, como um meio que conduz a esse mesmo Deus […]. A visão cristã da realidade inclui um entendimento da natureza específico da fé cristã, que fornece base intelectual para a disciplina tradicionalmente conhecida como “teologia natural”, e, ao mesmo tempo, exige e permite sua reconcepção.4

Partindo daí, se desenvolve uma visão apropriada e se reconhece haver revelações sobre Deus acessíveis na natureza. Cabe aqui reconhecer um passo além da mera acessibilidade de informações sobre Deus por meio da natureza, antes, declarando-se a existência de percepções na natureza, de maneira que se torna categórica a ideia de Deus ser conhecido na natureza5.

Jesus: o ponto de partida da afirmação

A construção proposta pela teologia natural baseia-se na forma de Jesus lidar com o tópico, pois ao falar do divino, diversas vezes, vale-se de muitas facetas do mundo natural e, com tal atitude, torna sua mensagem acessível e tocante aos ouvintes6. Jesus demonstra ter nos temas naturais, quando adequadamente observados, um alicerce sobre o qual o desvelar de assuntos do reino se daria.

Com as parábolas, por exemplo, ele utiliza a característica orgânica de alguns elementos. Reflete sobre o crescimento das sementes, a capacidade transformadora do fermento sobre a massa e o agir fugidio das ovelhas. Suas reflexões valem-se ainda de instintos humanos, como o zelo de um pai por um filho, a exigência de um mercador ao ansiar pela pérola de melhor qualidade7.

Corroboram ao argumento as impactantes falas de Jesus construídas numa declaração identitária quando diz “eu sou” e completa a sentença com figuras que se estabelecem para algo muito superior a uma relação analógica. Jesus parece construir uma relação substancial.

As declarações “eu sou” podem ser interpretadas como tendo implicações ontológicas, não meramente para a relação entre Pai e Filho, mas também para a relação entre Deus e o mundo. Elas indicam que, em certo sentido, a natureza é “inerentemente energizada” com uma capacidade para revelar o divino.8

Jesus: o princípio de inteligibilidade

Uma reveladora informação é dada sobre Jesus, quando a respeito dele é dito que “todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito”9.

Essa afirmação torna-se fundamental a essa altura, pois ajuda a ver o grau de intencionalidade do Mestre ao se valer das imagens naturais das quais se vale. Apesar da tendência de ver o uso das figuras de forma acidental, como se Jesus estivesse despretensiosamente buscando um elemento esclarecedor comum ao universo da sua audiência, o que se vê é o manejo adequado de elementos criados com o objetivo de comunicar realidades superiores às concebidas até antes do uso pelo Mestre.

Com tais imagens, os ouvintes de Jesus são convidados a “ver o mundo natural de maneira diferente. Visto de uma maneira particular, o mundo natural é apresentado como evidência da natureza do reino de Deus ou dos atributos divinos”10. Nesse sentido, o que Jesus faz não é mudar o sentido dos elementos naturais ou simplesmente usá-los de maneira ilustrativa, mas revelar o sentido intencionado por ele mesmo ao criá-los.

Kuyper contribui ao dizer que “Deus não pensa porque criou, antes, Ele criou após ter concebido”11. Assim, tratando com as imagens, Jesus o faz a partir das concepções prévias que, na criação, o motivaram a criar. “Em Deus, o pensamento era completamente independente e arquetípico; de tal pensamento proveio o decreto divino; e deste decreto, por sua vez, originou-se o mundo, da mesma forma como agora procede toda a história do mundo”12.

Por esse motivo, “a essência mesma de cada coisa é constituída por um pensamento de Deus, de maneira que foi esse pensamento que prescreveu para os entes criados seus modos de existência, suas formas, seu princípio de vida, suas destinações e seu progresso”13. No trato de Jesus, aquilo que antes fora comprometido pela realidade do pecado ganha, então, redenção para tornar a comunicar ou servir ao propósito inicial para o qual foi criado.

Conclusão

Uma vez que “o pensamento divino se encontra incorporado em todas as coisas criadas, então, não há nada no universo que deixe de expressar — de encarnar — a revelação do pensamento de Deus”14. Dessa maneira, Jesus é o elemento fundamental para concepção do sentido de toda realidade criada, pois por Ele foi criada. Sem Ele, os símbolos não podem ser entendidos, pois foram criados por Ele mesmo a fim de representar. E de um prisma cristológico, além da representação, se prestam ao propósito de comunicar de maneira unívoca, intencional e, sobretudo, normativa.

É, portanto, coerente concluir que em Cristo todas as coisas têm, além de sua origem, a garantia de alcançarem seu fim último15.


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1 MCGRATH, A. E. Teologia natural: uma nova abordagem.Tradução de Marisa K. A. de Siqueira Lopes. São Paulo: Vida Nova, 2019. p.117.

2 Pascal in MAHON B. The man who changed everything. p.47 apud BRIGGS A. & WAGNER R. A penúltima curiosidade: como a ciência navega nas questões últimas da existência. Tradução de Djair Dias Filho. Viçosa: Ultimato, 2018. p. 377.

3 MCGRATH p. 141.

4 Idem p. 148.

5 Idem p. 133.

6 Idem p.125.

7 Idem ibid.

8 Idem pp. 132-133.

9 João 1.3.

10 Idem p. 124.

11 KUYPER. A. Sabedoria e prodígios: graça comum na ciência e na arte. Tradução de Fabrício Tavares. Brasília. Monergismo, 2016. p. 16.

12 Idem p. 17.

13 Idem p. 19.

14 Idem ibid.

15 Idem p. 20.


Referências

BRIGGS A. & WAGNER R. A penúltima curiosidade: como a ciência navega nas questões últimas da existência. Tradução de Djair Dias Filho. Viçosa: Ultimato, 2018. 446 p.

MCGRATH, A. E. Teologia natural: uma nova abordagem. Tradução de Marisa K. A. de Siqueira Lopes. São Paulo: Vida Nova, 2019.

KUYPER. A. Sabedoria e prodígios: graça comum na ciência e na arte. Tradução de Fabrício Tavares. Brasília. Monergismo, 2016. 121 p.