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Improvisando o drama da doutrina

Escrito por Rodrigo Dias, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2022

1. Introdução

O presente artigo tem como base de argumentos a obra O drama da doutrina, do teólogo americano Kevin Vanhoozer, professor de Teologia Sistemática na Trinity Evangelical Divinity School, em Illinois, Estados Unidos.

Vanhoozer, entende que o evangelho é “teodramático” — “uma série de entradas e saídas divinas, em especial aquilo que diz respeito ao que Deus fez em Jesus Cristo” (VANHOOZER, 2016, p. 48). Seguindo, assim, uma metáfora do modelo do teatro, as Escrituras (cânon) são entendidas como o roteiro que precisa ser encenado de forma fiel pelos cristãos.

O que se propõe aqui é demonstrar que as práticas canônicas são formadoras a partir da encenação do cristão perante a sociedade à sua volta.

2. Práticas canônicas

Quando se fala de práticas canônicas, é importante ter em mente que o cânon é a regra para o agir do cristão, seja em sua forma de ação, linguagem ou pensamentos. Algumas das práticas foram iniciadas por Jesus Cristo, sendo importante esclarecer que mesmo práticas não iniciadas por Cristo, podem apontar para ele (VANHOOZER, 2016, p. 236). Neste sentido, o teólogo Kevin Vanhoozer diz que “as práticas canônicas são, portanto, ‘de Cristo’, tanto no sentido de serem a respeito dele quanto no sentido de serem práticas do próprio Cristo” (VANHOOZER, 2016, p. 236).

Aqui, pretende-se demonstrar duas práticas canônicas que exercem autoridade epistêmica e existencial na vida dos cristãos.

2.1. Interpretação cristocêntrica do cânon (tipologia)

O cânon narra, em Lucas 24, a história de dois discípulos que tiveram um encontro com Jesus, na qual Jesus interpretou a si mesmo para eles:, “começando por Moisés e todos os profetas, explicou-lhes o que constava a respeito dele em todas as Escrituras” (Lc 24.27 NVI). Seguindo no livro de Atos, podemos ver que Filipe realizou a mesma prática com o etíope na estrada de Gaza, “prática que os apóstolos tinham aprendido com o próprio Jesus” (VANHOOZER, 2016, p. 237).

Essa prática canônica é conhecida como tipologia ou leitura figurada. Vanhoozer, a considera como a mais cristológica: “a prática de interpretar as Escrituras, e a própria história, como realidades que apontam para Jesus Cristo e nele encontram unidade” (2016, p. 237), e ainda:

A tipologia é a mola mestra da unidade teodramática, o princípio responsável pela continuidade nas palavras e atos de Deus, o elo entre a história de Israel e a história da igreja, a cola que unifica o Antigo e o Novo Testamentos. (…)

A história universal pode ser o lócus da ação divina, mas seu foco é a história de Jesus Cristo. A história de Jesus é, portanto, a chave hermenêutica para o cânon bíblico como um todo. Jesus Cristo é a chave hermenêutica, não apenas da história de Israel, mas da história do mundo todo e, consequentemente, do sentido da vida, pois ele é o Logos por meio de quem foram criadas todas as coisas. (VANHOOZER, 2016, p. 239).

Realizar essa prática canônica, interpretação cristocêntrica, faz com que o cristão comece “a falar, ver, julgar e agir canonicamente quando aprendemos a interpretar tanto a história narrada na Bíblia quanto nossa própria história como parte do drama da redenção em Cristo” (VANHOOZER, 2016, p. 237).

2.2.  Oração: a prática do viver

A oração também é uma prática canônica que nos possibilita chamar Deus de “Pai”. É importante enfatizar essa “profunda ideia teológica de que Deus não é meramente um conceito filosófico abstrato, mas um agente comunicador que fala e atua, um ser pessoal com nome e identidade” (VANHOOZER, 2016, p. 241).

A oração não foi inventada por Jesus, mas fica claro que usar o termo “Pai” para Deus remonta ao próprio Jesus. Essa questão é tão profunda que orar com Jesus é participar de sua filiação, tendo experiência com a família de Deus. “Orar é reconhecer a Deus como Senhor, a si mesmo como contingente e a relação filial viabilizada pelo Filho de Deus e pelo Espírito de adoção” (VANHOOZER, 2016, p. 237).

Ao participarem dessas práticas canônicas, os cristãos crescem na fé. Além disso, importa esclarecer que as práticas canônicas precisam ser dinamizadas pelo Espírito de Deus. Sobre isso, Vanhoozer ensina:

Os textos bíblicos foram comissionados, autorizados e apropriados para uso divino. Por conseguinte, o que estabelece exatamente essas práticas comunicadoras como autoridade para a igreja é que essas formas e padrões de comunicação constituem, em última análise, uma obra do Espírito Santo: são práticas dinamizadas pelo Espírito. Uma prática canônica é uma prática do Espírito Santo da qual participam tanto os autores humanos do passado quanto os leitores do presente, embora de maneiras distintas. As Escrituras são uma obra do Espírito do começo ao fim. O Espírito está envolvido nas Escrituras, tanto no complexo processo histórico da produção das Escrituras – estimulando o discurso humano da apresentação da Palavra de Deus, coordenando-o e dele se apropriando – quanto no processo de viabilização do entendimento das Escrituras entre os leitores atuais (VANHOOZER, 2016, p. 242).

Dessa forma, podemos ver a interpretação cristocêntrica das Escrituras (tipologia) e a oração, como práticas que transformam a imaginação e renovam a vida cristã. Tais práticas auxiliam na improvisação fiel no drama da redenção, em que os cristãos de hoje se veem em situações inéditas no tocante ao cânon.

3. Improvisação com a mente de Cristo

Os cristãos precisam aprender a conhecer e amar o teodrama. O resultado desse conhecimento e amor é a sabedoria: “a capacidade de ter percepção e de participar corretamente da ordem da criação e de seu reordenamento em Cristo por meio do Espírito.”. O que se pode concluir é que a capacidade teológica é visível por uma resposta ativa, ou seja, te conhecerei pelos seus frutos (VANHOOZER, 2016, p. 270).

Essa sabedoria tem como objetivo substituir padrões de pensamento deformados por padrões que se alinhem ao roteiro canônico, produzindo a mente de Cristo. Sobre isso, Vanhoozer diz:

A “mente de Cristo” não diz respeito apenas ao quociente intelectual de Jesus ou ao conhecimento por ele acumulado, mas a seu habitus: o padrão distintivo de todos os seus atos intencionais – desejos, esperanças, vontades, emoções, bem como pensamentos. A “mente de Cristo” diz respeito ao padrão característico dos julgamentos ou juízos de Jesus – ao modo como ele processa as informações e o produto desse processamento: a sabedoria corporificada de Deus. A mente de Cristo é o conjunto de hábitos ou virtudes morais, intelectuais e espirituais que servem como a mola mestra para tudo aquilo que Jesus faz e diz.” (VANHOOZER, 2016, p. 271)

Essas práticas não se tratam apenas de uma questão de informação, mas de formação de hábitos ou virtudes sapienciais. Vivenciar e participar dessas práticas canônicas nos apontam e preparam para sermos como Jesus Cristo, desenvolvendo a mente de Cristo. “Para termos a mente de Cristo, devemos entrar no círculo sapiencial, um círculo com dois focos, a Palavra e o Espírito: ‘Creio para entender; entendo para colocar em prática para crescer no conhecimento e na fé’.” (VANHOOZER, 2016, p. 272).

Atualmente os cristãos se veem em situações novas e complexas, o que exige saber como agir com sabedoria, com capacidade de improvisar. “A improvisação não tem relação alguma com ser ‘inteligente’ ou ‘original’, mas com aprender a agir ‘habitualmente de forma adequada às circunstâncias’.” (WELLS apud VANHOOZER, 2016, p. 95). O agir habitualmente de forma adequada lembra a noção aristotélica de fronesis (sabedoria prática), não no sentido de algum procedimento para tomada de decisões morais, “mas um conjunto de disposições habituais – ‘virtudes’ – que, juntas, resultam em um juízo concernente à ação correta.” (VANHOOZER, 2016, p. 341).

A sabedoria prática, originada do desenvolvendo das virtudes, é a que resultará em soluções criativas para problemas novos. Essas soluções criativas são conhecidas como improvisação. Porém, a improvisação não pode ser entendida como algo sem preparo ou sem ensaio. “Improvisar bem é algo que exige estudo (formação) e discernimento (imaginação).” (VANHOOZER, 2016, p. 352). Improvisar exige exegese bíblica, exige vivenciar e participar das práticas canônicas, precisa estar alinhado com um roteiro canônico.  

A improvisação precisa de uma compreensão adequada do cânon, por meio da scientia – exegese, a qual deve fazer justiça à natureza do texto – e da sapientia – “a habilidade de fazer juízo a respeito do verdadeiro, do bom e do belo adequados ‘em Cristo’.” (VANHOOZER, 2016, p. 323). Dessa forma, o resumo do teólogo Kevin Vanhoozer é indispensável:

Resumindo, compreendemos ainda mais a sabedoria da direção doutrinária colhida nas Escrituras quando procuramos dar continuidade ao teodrama em novos cenários e situações.

Desenvolver a doutrina é, assim, improvisar com um roteiro canônico. O cânon apresenta a suposição inicial, uma oferta de graça – o juízo que Deus pronunciou e executou em Israel e de modo supremo em Cristo para salvar o mundo – em uma variedade de formas literárias e conceituais. A teologia é a peça de improvisação da palavra e do Espírito em novos contextos, pela qual a igreja procura transmitir e responder aos mesmos juízos preservados no discurso canônico, em novas situações contextuais e com novas formas conceituais. Vale a pena repetir que essa mesmidade não é a identidade-idem da réplica, mas a identidade-ipse que caracteriza a continuidade de uma narrativa, de um drama, de um eu. Mas a doutrina é exatamente isto: a continuação das missões da Palavra e do Espírito em novos contextos, missões que constituem a própria identidade das dramatis personae divinas. (VANHOOZER, 2016, p. 369).

Improvisar é dar continuidade à transmissão do evangelho, de forma criativa e fiel ao roteiro canônico.

4. Considerações finais

Diante de situações inéditas que se apresentam, o agir do cristão deve estar alinhado ao cânon, o roteiro para a encenação fiel. Existem diversas práticas canônicas que podem produzir sabedoria prática. Porém, este artigo preferiu dar especial atenção à oração e à interpretação cristocêntrica das Escrituras.

Essas práticas canônicas visam habilitar o cristão a encenar corretamente diante das questões apresentadas pela sociedade à sua volta. Essa encenação se dá por meio da improvisação, a qual não se trata apenas de saber como fazer, mas sim de um fazer que ocorre naturalmente. Não repetindo as cenas do passado, mas improvisando com criatividade.

Fica evidente que a improvisação é resultado da prática da santidade, pois “é o Espírito que nos prepara para agirmos de maneira óbvia ou ‘com naturalidade’.” (VANHOOZER, 2016, p. 387). A improvisação precisa ser roteirizada e dinamizada pelo Espírito, e, com isso, necessitamos de mente, imaginações e coração corretos para encenarmos o drama da doutrina de forma fiel ao seu roteiro canônico.


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5. Referências bibliográficas

BÍBLIA SAGRADA. Nova Versão Internacional. São Paulo: Editora Vida. 2007. 1028 p.

VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. 1. ed. São Paulo, SP: Vida Nova, 2016. 512 p.