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Tão “fickle homini”

Escrito por Gabriela Souza Gabassi, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2022

“‘Seja bem-vinde, menine’, disse Humpty Dumpty à Alice, a qual permaneceu confusa para dizer qualquer coisa, pois não havia entendido se falavam a mesma língua”. Esta poderia ser uma adaptação do texto de Lewis Carroll para a geração deste século, recheado de “Alices” e “Humpty Dumptyes” que trocam de lugar: em um dia, confusos, noutro dia, mestres. Assim, transitoriamente. 

A linguagem neutra é um dos muitos movimentos sociais que alteram as dinâmicas de convivência da juventude mundial. Como mais uma informação para lidar e mais um degrau para não desequilibrar, esta proposta se coloca com a intenção de “democratizar” as línguas, de modo a “incluir a todas as pessoas”, sem distinção de gêneros ou delimitações sexuais. Falando bastante basicamente, há uma intenção de respeitar cada indivíduo da maneira como este se enxerga e assim se referir a ele.

Apesar de parecer, este não é um debate novo. Há milhares de anos, discute-se o limite do desejo do indivíduo face às necessidades da comunidade. A pergunta  é mais ou menos assim: quem limita quem? Ou, melhor dizendo, o quê limita quem e por quê? Ou, ainda mais acurado, quem não te deixou comer o fruto? Não há consenso, porque cada ser parte de sua própria realidade e tem, portanto, sua maneira de interpretar o que chega até si. E todos, por fim, não sabem ter um mestre.

Tateando, este parece ser um ensaio sobre liberdade. Aquela que, para Kant, parece ser a autonomia de decidir sobre si próprio, sem deixar de lado a moralidade. Ou aquela que, para Locke, é a propriedade. Ou, ainda, aquela descrita por Paulo, o apóstolo, como pretexto para servirmos uns aos outros. Por fim, novamente não se trata do que é a liberdade, mas do que entendemos sobre ela. 

Este é o poder da compreensão e da interpretação. Além disso, esta é a tarefa da hermenêutica ou, por definição, da ciência e do método que tem cujo objetivo é prover ferramentas para interpretar textos, tratados, diálogos, histórias — e a Bíblia. A hermenêutica é conhecida pelos profissionais do Direito e de Letras, assim como pelos profissionais da Teologia. Contudo, ao contrário de muitas áreas do conhecimento, esta não é uma ciência descolada da realidade prática das pessoas. Todo mundo, em todo lugar, o tempo todo, interpreta os estímulos que recebe, sejam eles claros e objetivos ou sutis e discretos.

Neste sentido, quando falamos a respeito das mudanças sociais e da forma como as pessoas enxergam a vida e a vivem, também falamos dos seus esforços hermenêuticos diários. Falamos da tarefa essencial de compreender e responder para conseguir sobreviver. Também, falamos da tarefa essencial de observar, ouvir, perscrutar, apesar de este parecer ser o maior desafio.

Esta tarefa é desafiadora para o nosso tempo porque temos dificuldades em silenciar para ouvir, não somente porque estamos acostumados ao barulho, mas também porque não sabemos identificar as vozes dos mestres. Talvez este seja o principal problema a ser superado: identificar o Mestre e deixar que ele anuncie o sentido, a forma, o método, o caminho e o final.

Este não deveria ser um desafio para os cristãos, imaginamos. Entretanto, os cristãos não são gente também? Aqui se encontra outro grande desafio para esta geração: entender verdades absolutas, ditas por um Mestre morto, mas que está vivo e relatar para a sociedade estas verdades, apesar de, no nosso tempo, acreditarem que não existem absolutos. 

É por isso que a hermenêutica bíblica é importante. Conforme argumentam Silva e Kaiser (2014), apesar de Deus ser a própria Palavra, não é fácil compreendê-lo e aplicar o que Ele diz. Isto por a Bíblia ser um livro divino e também humano, escrito por homens inspirados, que viveram em um tempo, lugar, e cultura específicos. Neste sentido, a hermenêutica permite que busquemos o significado das sagradas Escrituras, apesar da significância que queremos impor sobre estas, para que a compreensão tenha sentido e não fique à mercê do intérprete.

Isto é urgente por algumas razões, das quais duas se destacam: corresponder aos desafios que existem nos templos e corresponder aos desafios que existem fora dos templos. Não há possibilidade de um cristão ou uma igreja viverem alienados à sociedade, assim como não há possibilidade de uma sociedade viver alheia ao desenvolvimento do Corpo de Cristo. Afinal, esta convivência é correlativa por definição. 

Dessa forma, o exercício hermenêutico torna-se urgente, não só para driblar vãs doutrinas e falsos ensinamentos, como também para fortalecer mentes e corações para lidar com as duras verdades do Evangelho e com os desafios profundos que são enfrentados no mundo. Como responder biblicamente à miséria, à fome, às mudanças climáticas? Ou, ainda, ao racismo, à misoginia, à misandria, ao feminismo, ao nazismo, ao comunismo, aos desafios políticos… À linguagem neutra?

A resposta está na própria pergunta: responder biblicamente. O que significa “biblicamente” significa? A hermenêutica nos ajuda a descobrir. Ela nos propõe caminhos, mas quem abre nossos ouvidos para a voz do Mestre é o Seu Espírito, o mesmo que guia seu povo ao longo da História. Em tempos de Alices, procura-se um mestre — não um Humpty Dumpty que confunde mais, mas o Mestre, que está desde o início apontando a direção. Nosso desafio é contar com Ele mesmo para destravar nossos olhos e descamar nossos ouvidos.

Por fim, o tão (do português, advérbio que exprime intensidade) fickle (do inglês, adjetivo que significa “inconstante”) homini (do latim, que significa “ser humano”) precisa ter onde se apegar, em um tempo em que tudo se desmancha pelo ar, até a sua própria língua e o que entende por “ser”. Precisamos saber as perguntas, mas, sobretudo, onde e como procurar as respostas. Este é o desafio da nossa geração — não é novo, apesar de ser.


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Referências Bibliográficas

OLIVEIRA, Kaynã de. Linguagem neutra pode ser considerada movimento social e parte da evolução da língua. Jornal da USP. São Paulo, fev. 2021. Disponível em: <Linguagem neutra pode ser considerada movimento social e parte da evolução da língua – Jornal da USP> Acesso em: 10 de fevereiro de 2022.

KAISER, W. C.; SILVA, M. Introdução à hermenêutica bíblica: como ouvir a Palavra de Deus apesar dos ruídos da nossa época. 3. ed. Trad. Paulo C. N. dos Santos; Tarcízio J. F. de Carvalho; Suzana Klassen. São Paulo: Cultura Cristã, 2014. 288 p.

SILVA, João Vítor Oliveira da. Resenha do livro Introdução à hermenêutica bíblica. The Invisible College. Goiânia-GO, 28  fev. 2020. Disponível em: <Resenha do livro Introdução à Hermenêutica Bíblica: como ouvir a Palavra de Deus apesar dos ruídos da nossa época – Invisible College (theinvisiblecollege.com.br)(theinvisiblecollege.com.br)> Acesso em: 9 de fevereiro de 2022.