Escrito por Bruno Mambrim Maroni, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020
Há coisas que Deus pode estar dizendo apenas por meio da música. Se for assim, cabe ao teólogo ouvir.
– Jeremy Begbie
Eu acho que a música é espiritual. Cantar, tocar um instrumento é espiritual. Vem de um mundo espiritual.
– Van Morrison
Tua revelação é a música da minha dança.
– Salmo 119 (A Mensagem)
PARA COMEÇAR: A PAISAGEM SONORA E O LUGAR DA ARTE HOJE
O termo soundscape foi popularizado pelo ecologista, compositor e pedagogo Murray Schafer, principalmente na obra A Afinação do Mundo, onde escreve: “A paisagem sonora é qualquer campo de estudo acústico. Podemos referir-nos a uma composição musical, um programa de rádio ou mesmo a um ambiente acústico como paisagens sonoras.” (2011, p. 23). Apesar de sua aplicação multidisciplinar, o conceito define, de modo geral, a combinação sonora que compõe um ambiente imersivo. Justamente por contemplar o ambiente acústico natural (biofonia) ou artificial (antropofonia), a soundscape é estudada enfaticamente pela ecologia acústica. Mas essa expressão remete também à maneira que o ouvinte percebe e se comunica com o que escuta.
A ideia de “paisagem sonora” é útil porque demonstra que nossa vivência artística e musical cotidiana não é imóvel e planificada, mas a relação que temos com a música é multidimensional, pois compreende um ambiente que nos envolve. Agora, o que a sabedoria cristã tem a dizer a respeito?
A arte jamais esteve alienada do evangelho, e a reconciliação de todas as coisas nunca deixou intocada a música. Nosso jeito de pensar desintegrado, porém, tem obscurecido nosso olhar e obstruído nossa audição para a beleza nas paisagens do mundo. Em uma sociedade da reprodutibilidade técnica, comercialmente motivada, em que a utilidade é determinante, entre agendas saturadas e rotinas apressadas, a beleza ainda tem lugar? Tem – e vai ser sempre assim. Talvez nossos sentidos que estejam culturalmente desvirtuados. Por isso precisamos pensar sobre arte, que pode ser “o fogo para nossos pés que nos ajuda a quebrar o encantamento de nossa época. Enquanto nos desencanta, a boa arte também re-encanta nosso mundo” (WILLIAMS, 2018, p. 195).
É DIFÍCIL PENSAR SOBRE ARTE: OS DESAFIOS DA FILOSOFIA ESTÉTICA E A BELEZA NAS COISAS
Nossos diálogos sobre arte costumam esbarrar no gosto subjetivo, fazendo com que reflexões do tipo pareçam inviáveis. Afinal, se a beleza é exclusivamente vinculada à satisfação individual, por que falar de arte? Isso retoma os dilemas das primeiras reflexões estéticas do pensamento ocidental.
O dramaturgo paraibano Ariano Suassuna indica as seguintes opções estéticas que, digamos, “complicam” nosso pensar e falar sobre arte: o irracionalismo/racionalismo, a objetividade/subjetividade, estética filosófica/científica. O segundo tópico é muito relevante aqui. Suassuna diz que os personagens da Estética (filosofia da arte), com poucas exceções, afirmam “que a Beleza é algo que se constrói no espírito do sujeito […] uma descrença cada vez maior na validade do julgamento – ou então optam por uma solução de meio termo, de compromisso objetivista-subjetivista.” (2014, p. 36-37).
Reconhecer o que qualifica uma obra de arte (pensemos sempre na música) e onde está seu significado é determinante. Certamente, embora nossos sentidos careçam de vulnerabilidade, há beleza em todas as coisas. Isto é, mesmo que haja um aspecto distintamente estético na realidade, no “jeito que o mundo é”, a beleza, como núcleo de sentido estético, perpassa toda a nossa paisagem natural e cultural. Quer dizer que podemos encontrar beleza desde no chão cru que pisamos ao revestimento mais refinado disponível no mercado. Deparamo-nos com o que é belo no acervo dos compositores clássicos até nos porões do rock underground. O encontro da teologia com a arte é proveitoso (e imprescindível), porque a sabedoria cristã reconhece distintivamente que a beleza simplesmente está no mundo, discernimento que falta às cosmovisões desencantadas, ou seja, que desconhecem um sentido maior à ordem e a sacralidade das coisas.
O significado presente e permanente no mundo é definitivamente confessado pela doutrina da criação. Assumimos que há sentido e beleza nas paisagens que habitamos, porque a realidade é pessoal e intencional. A consciência da intencionalidade criacional (Deus criou com amor) certamente humilha, renova e inspira nossa apreciação artística e musical. Por exemplo: antes de qualquer intervenção, os sons já estavam aqui – perceba o som do vento, da chuva, da respiração, dos animais, ou de gente conversando. A criação como paisagem sonora rudimentar, então, nos encaminha a uma rica definição da arte.
Rookmaaker, historiador da arte e um dos nomes da filosofia reformacional, encaminha uma resposta à nossa pergunta: “o que dá sentido à arte?”. Ele diz que “o núcleo de significado da esfera de lei estética é a harmonia bela” (2018, p. 46). Portanto, a arte é um artefato humano significativo e esteticamente qualificado que desenvolve as possibilidades de beleza e harmonia “guardadas” na criação. Assim, os artefatos artísticos – objetos, performances ou processos – respondem à vocação humana para criar para a glória do Criador e florescimento da comunidade.
São análogos ao amor revelado nos atos criativos do Eterno – “toda beleza e glória neste mundo é epiphaneia, o brilho e a invasão da radiância das bases poderosas e veladas do ser em forma expressiva, o evento da autorrevelação do Deus oculto” (BALTHASAR, p. 9). Podemos receber a criação como um ato de hospitalidade da Trindade para abrigar suas criaturas em uma paisagem com potenciais de beleza – especialmente sonora. Qual o espaço da música no mundo de Deus?
SOBRE O MUNDO DA MÚSICA E A MÚSICA NO MUNDO DE DEUS
O que é música? A rigor, a música é a moldagem voluntária (atividade cultural) dos sons da criação, que existe em interação indissociável à ordem sônica do mundo. E o que configura o “mundo interno” da música? O célebre compositor americano Aaron Copland explicou que “a música tem quatro elementos essenciais: o ritmo, a melodia, a harmonia e o timbre, ou colorido tonal”. É difícil para nós ouvintes, no dia a dia, decifrar analiticamente cada um deles, até porque a música nos “confronta” como um todo em movimento, não fragmentado. Copland completa dizendo que é “o efeito combinado – o tecido sonoro inextricável que eles compõem – que costuma interessar à maioria dos ouvintes” (2013, p. 39).
A música é produzida e capturada pelo ser humano, demandando dos artistas as habilidades necessárias para ordenar os sons em padrões significativos, e dos ouvintes a percepção dessas características concebidas como música (TAN, 2018, n.p).
A arte pretende que o meio e a mensagem ressoem. Portanto, podemos dizer que numa obra virtuosa, neste caso a música, a forma (por exemplo, os arranjos, a execução técnica) e o conteúdo (como a “carga narrativa”, a sensibilidade às condições humanas, inventividade performática) importam.
Seerveld, filósofo canadense, fala sobre a alusividade, ideia que descreve precisamente a abertura imaginativa suscitada pela arte, que se distingue “por uma qualidade imaginativa cuja natureza é aludir mais significados do que o que é visível/audível/escrito/sentido […] uma coagulação metafórica de nuances.” (2001, p. 2). Jeremy Begbie, teólogo e compositor (importantíssimo para as reflexões contemporâneas em teologia, arte e música), no livro Resounding Truth, fala sobre as ações sugestivas e metafóricas das artes, que ampliam as possibilidades de percepção de significado – a apuração dos sentidos e da imaginação – na realidade: “a arte mais enriquecedora é ricamente sugestiva, multiplamente evocativa. […] nos lembra que o mundo sempre excede nosso alcance” (2007, p. 51).
Identificamos essas qualidades em nossas incursões culturais rotineiras? Ou consideramos a arte entretenimento e decoração dispensáveis? Você percebe essas virtudes criativas nas músicas que escuta?
Por que é importante falar de música teologicamente? Em primeiro lugar, porque é uma atividade cultural pervasiva, onipresente no dia a dia (nas casas, igrejas, shoppings, nos filmes e séries que assistimos e, claro, nos fones de ouvido). Em segundo lugar, porque tem profundo efeito nas nossas vidas, tocando nossas emoções, comportamento e, sem dúvida, espiritualidade. Em terceiro lugar, porque muita gente admite o quão indispensável ela é. Clive Marsh e Robert Vaughan explicam que “Há muita música por aí. (2) As pessoas a usam por muitas razões e tiram muito proveito disso. No entanto, há também uma pergunta: a música popular […] pode promover o desenvolvimento pessoal e espiritual?” (2012, p. 4).
Justamente por isso, em quarto lugar, é relevante falar de música, porque ela tem fortes vínculos com impulsos religiosos. Para Begbie, na maioria das culturas “onde encontramos fenômenos que normalmente estariam classificados como religiosos, a música não fica muito distante: a necessidade de cantar, dedilhar cordas e soprar tubos ressonantes parece irresistível” (2007, p. 17).
Em quinto lugar, porque na pluralidade de gêneros preocupações espirituais têm sido explícitas. Os gêneros musicais são diferenciações progressivas com certa elasticidade, mas que se descolam por pressões distintas, como tecnológicas, comerciais e sociais, associadas ao espírito do tempo (BORTHWICK; MOY, 2004, p. 3). Por fim, em sexto e último lugar, é importante a atenção teológica responsável à música porque ela tem papel proeminente na formação cristã por meio da prática da adoração na igreja local.
A música é carregada de significado teológico porque, antes de qualquer coisa, é uma maneira de articular, ou de “vocalizar”, os louvores da criação. Para Begbie, reconhecer a Trindade muda tudo em nosso empenho para pensar, fazer e ouvir música. Estamos falando do Deus trino de amor extático, ativo no mundo (2018, n.p.). É em Cristo, pelo poder criativo do Espírito, que podemos efetivamente cumprir a vocação de cuidar da criação e glorificar ao Criador, o que torna a arte exercício de reconciliação. Como isso entra em ação na música?
Devemos repensar alguns fatores: música não é “coisa”, sua prática não é monolítica (é culturalmente diversificada) e não é hermética, ou seja, sem impacto social. Por outro lado, faz mais sentido falar de música como a confecção deliberada de vibrações sonoras temporalmente entrelaçadas, física e comunitariamente mediadas (a música mexe com nossos corpos e percorre nossas relações) e dotadas de integridade criacional.
SOBRE AS POTENCIALIDADES DA MÚSICA E A SINGULARIDADE DO EVANGELHO
Por que a música importa para a espiritualidade cristã? Até o momento traçamos respostas abrangentes indicadas pelo Drama das Escrituras, pela sabedoria da tradição cristã e pela nossa experiência ordinária nas paisagens sonoras – soundscapes – que habitamos. A criatividade revela a criatividade da Trindade, a arte desvenda e desperta nossa imaginação, desvela a beleza estrutural do mundo de Deus e contribui para o florescimento humano, o que aguça nossos sentidos para a necessidade de um relacionamento com o Criador. Ou, como diz N.T. Wright, a consciência de que a beleza “está ali, mas ao mesmo tempo não está” (2008, p. 58).
A música importa para o discipulado (a rotina com Cristo), pois ressoa aspectos do eixo da espiritualidade cristã: o evangelho. Mas como? Em primeiro lugar, a música – sua própria arquitetura sonora – vincula tensões e resoluções. Por exemplo, o primeiro acorde desperta a expectativa por uma resposta, traçando a harmonia (cadência apropriada), dando a sensação de movimento. Por isso podemos dizer que a música tonal ocidental é teleológica (BEGBIE, 2007, p. 278). O equilíbrio tensão-resolução se associa notavelmente ao Drama das Escrituras, da criação-queda-redenção (plenitude, caos e descanso). Além do mais, podemos identificar três potencialidades da paisagem sonora que incorporam singularidades do evangelho.
Primeiro, não podemos apressar a música, assim como não podemos interferir nos ritmos de Deus. Afinal, por que o tempo é decisivo aqui? Porque para apreciarmos uma música, precisamos seguir seu percurso. A música atua como metáfora para nossa experiência no tempo, recordando nosso lugar como criaturas narrativas, com histórias amarradas à grande história do evangelho que se encontra em Cristo (Cl 1.15-20). O que nos mostra que a boa arte coloca a gente não só diante de novas ideias, mas de novas virtudes, neste caso, a paciência, fruto da experiência de atravessar consonâncias e dissonâncias, momentos de silêncio e de som.
Isso nos leva à segunda potencialidade da paisagem sonora que incorpora uma singularidade do evangelho: ela nos convida a viver na esperança do que vem depois, assim como o aguardo pela nova criação (Rm 8.23-25). Para a musicista Maeve Heaney em Music as Theology:
“A estética é o lugar recorrente daquela pergunta que a consciência raramente se atreve a formular com a seriedade necessária: este é mesmo o melhor dos mundos possíveis? A Beleza, a arte e o estético tocam aquela parte de nós que sabe que pode haver algo melhor, diferente, completo, acabado. Afirma nosso anseio e nosso questionamento e, portanto, de alguma forma, nossa fé de que há mais vida.” (2012, p. 188).
Falamos dos vínculos de tensões e resoluções que compõem a narrativa sonora como aspecto da música que ressoa o evangelho. Outro aspecto faz o mesmo significativamente: a diversidade essencial. Bem, em uma música duas ou mais notas soam ocupando o mesmo “espaço de ação” (interpenetração e sobreposição), sendo que o próprio contraste ressalta a autenticidade de cada vibração – “na ordem das notas musicais […] o absurdo pode se transformar em sentido, porque as notas podem aumentar e enriquecer umas às outras no mesmo espaço ouvido – o efeito é inteligível e cativante.” (BEGBIE, 2007, p. 288). Isso remete à liberdade que o evangelho anuncia e realiza, pois na espiritualidade cristã a identidade é comunitariamente autenticada, na relação com Deus e com a família de fé. Também remete à sábia loucura do evangelho, que tem seu desfecho na cruz e ressurreição.
E, por último, remete à realidade da Trindade. Basicamente, a música é o meio de arte que comunica mais expressivamente a comunhão da Trindade, porque é o único em que experimentamos “tudo ao mesmo tempo e no mesmo espaço”. Pense assim: quando estamos assistindo uma série, nossa visão é incapaz de apreender tudo que está acontecendo na imagem. Agora, no caso da música, mesmo que as notas sejam diferentes, percebemos o que está acontecendo no todo, pois todos os seus traços “dançam” entre si no mesmo espaço auditivo.
Da nossa parte, ouvintes na paisagem sonora da cultura e da criação, qual seria a resposta apropriada, com sabedoria teológica, aos potenciais dados à música? Penso que um bom começo seja renovar as motivações para nossas experiências. É muito comum entre os cristãos a pergunta “o que eu posso e o que não posso ouvir?”. Mas, talvez a questão mais adequada seja: “Por que estou ouvindo isso?”. Determinantemente, nossa experiência com a música depende da atitude de gratidão movida pela consciência do amor impresso nas coisas da terra, a vibrante consciência de que a criação, a paisagem sonora ou ordem sônica, é uma dádiva.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMORIM, Rodolfo. Hans urs von Balthasar: estética em A Glória do Senhor. Curso Arte & Espiritualidade.
BEGBIE, Jeremy S. A peculiar orthodoxy: reflections on theology and the arts. Grand Rapids-EUA: Baker Academic, 2018.
BEGBIE, Jeremy S. Resounding Truth: Christian wisdom in the world of music. Grand Rapids-EUA: Baker Academic, 2007.
BORTHWICK, Stuart; MOY, Ron. Popular music genres. Edinburgh-ESC: Edinburh University, 2004.
COPLAND, Aaron. Como ouvir e entender música. São Paulo: É Realizações, 2013.
MARSH, Clive; VAUGHAN, Robert S. Personal Jesus: how popular music shapes our souls. Grand Rapids-EUA: Baker Academic, 2012.
HEANEY, Mave Louise. Music as theology: what music has to say about the Word. Eugene-EUA: PICKWICK, 2012. Edição kindle.
ROOKMAAKER, Hans R. Filosofia & estética. Trad. Fabrício Tavares. Brasília: Monergismo, 2018.
SEERVELD, Calvin. Reading the Bible and understanding art: how to redeem your time in taking a look at art in Canada. Disponível em https://www.allofliferedeemed.co.uk/Seerveld/Seerveld%20_Reading_the_Bible_and_Understanding_Art.pdf. Acesso em 29 de out. de 2020.
SUASSUNA, Ariano. Iniciação à estética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
WILLIAMS, Thaddeus J. Reflita: tornando-se você mesmo ao espelhar a maior pessoa da história. Trad. Fabrício Tavares. Brasília: Monergismo, 2017.
WRIGHT, N. T. Simplesmente cristão: por que o cristianismo faz sentido. Viçosa-MG: Ultimato, 2008.
2 comments
Victor Hugo
Meio complexo. Ou muito acadêmico, não sei…
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Poxa até que fim encontrei o artigo que estava precisando
e ajudou muito. Infelizmente na internet e no youtube
não encontrei bons conteúdos sobre esse assunto.
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