Escrito por Daniel Tolosa, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2022
Introdução
“Quiçá os pastores se limitassem à sua antiga ocupação de cuidar de suas ovelhas e deixassem para os filósofos a tarefa de argumentar com temperança, moderação e boas maneiras”. Foi assim que David Hume (1711-1776), filósofo do ceticismo, reagiu após ler uma prévia da obra do pastor e filósofo escocês Thomas Reid (1710- 1796), enviada pelo próprio autor por meio de um amigo em comum. É até compreensível essa reação, tendo em vista a obra de Reid ser o resultado de 20 anos de uma profunda e criteriosa investigação das propostas filosóficas de seu tempo, que acabou revelando vários problemas fundamentais no ceticismo filosófico de Hume1.
Esse relato não serve apenas para ilustrar o preconceito sofrido pelos pastores (e cristãos de forma geral) que procuram dialogar com as propostas filosóficas de seu tempo. Além disso, nos leva a refletir mais detidamente sobre quais são os limites do ministério pastoral, se o estudo e reflexão filosóficos deveriam fazer parte da atividade pastoral ou se isso seria perder o foco e contaminar o ministério. Não deveria um pastor, como Hume descreveu, estar ocupado em cuidar das suas ovelhas ao invés de se aventurar em uma discussão filosófica?
A quem interessa que as verdades da fé estejam confinadas numa caixa chamada “religião”, restritas apenas ao ambiente de casa e da igreja, isoladas do resto da vida? Se existe uma resposta possível, ela deverá, inevitavelmente, passar pelos fundamentos e propósitos tanto da filosofia quanto do ministério pastoral e, com isso, identificar se é legitimo ou não uma atuação pastoral no campo filosófico.
O que é filosofia?
É uma tarefa deveras ousada resumir qualquer assunto em uma definição, visto que, além da variedade de perspectivas possíveis, por mais longa que seja qualquer descrição, sempre faltarão partes importantes do todo. Entretanto, o objetivo das definições nunca foi esgotar tudo o que diz respeito a um assunto, mas sim apresentar um fio condutor para ele. Dessa forma, a finalidade de uma definição não é descrever exaustivamente a multiplicidade do assunto, mas sim encontrar sua unidade.
Essa breve reflexão sobre a natureza e propósito das definições já reflete um pouco do que seria uma atitude filosófica. Ilustra, inclusive, a busca dos primeiros personagens da filosofia grega. Pois, assim como as definições, “a filosofia começa com a redução da multiplicidade, à unidade”2. A diferença é que o primeiro caso se limita a assuntos específicos e no segundo a multiplicidade abrange toda a realidade. Se propor uma definição é uma tarefa ousada, quanto mais essa!
De fato, a ousadia é uma postura inerente à filosofia, pois ela não se contenta em seguir cegamente o fluxo do senso comum, antes se esforça para examinar a realidade de forma onividente e, a partir dessa postura, descobrir seus principais problemas. Sua jurisdição é o todo3, nada pode escapar de suas vistas, nenhuma esfera lhe restringe o acesso. Por isso é comumente aceito que haja uma filosofia da matemática, da política, do direito ou da religião. Mesmo admitindo que a filosofia não poderia ser dogmática, toda investigação filosófica sempre resulta em propostas que pretendem solucionar os problemas mais fundamentais de toda a existência.
Assim, uma definição interessante para a filosofia, que encontra tanto a concisão da unidade quanto permite diversos caminhos para a multiplicidade, é aquela que deriva de sua própria etimologia, entendida basicamente como o “amor pela sabedoria”. Essa descrição, apesar de breve, já diz muito a respeito da natureza e propósito da filosofia.
Mas de onde vem o “amor pela sabedoria”?
A despeito de se requerer à filosofia o lar e a glória da academia, bem como o status de um modo de pensar mais elevado do que uma crença religiosa, o fazer filosófico nunca é descrito com uma conotação meramente científica:
Filosofar quer dizer refletir sobre questões fundamentais da vida humana porque quem o faz sente que precisa de uma resposta a essas questões para viver melhor. […] filosofa quem busca a maneira correta de enfrentar um dilema moral, ou quem quer saber se a existência humana tem um significado.4
A filosofia sempre alarga suas tendas para além dos limites que a atual jurisdição científica permite, buscando responder às questões mais profundas da vida. Então, de onde vem essa inquietação em torno dos fundamentos de toda existência? Em outras palavras, de onde vem esse amor pela multiforme sabedoria?
O ser humano, até onde a história nos permite acessar, sempre demonstrou em todos seus caminhos esse anseio existencial, uma sede interior que não pode ser saciada por nada debaixo do sol. Ao longo dos tempos, “os homens não têm sido capazes de se satisfazer com as coisas do mundo em seus pensamentos nem em suas vidas”5. Essa inquietação humana flui de seus corações para suas mentes e, assim, se reflete em toda a sua busca por sabedoria, revelando que, na verdade, “a filosofia não se contenta com uma explanação científica da realidade, mas procura reivindicar os ideais mais elevados da humanidade e satisfazer seus mais profundos anseios. A filosofia deseja servir-se da religião”6.
Assim, toda essa inquietação que dá movimento à atividade filosófica, seja ela chamada pelo nome que for (e.g., espanto), é essencialmente religiosa. “A filosofia surgiu da religião, e a questão que se nos apresenta não é como a filosofia posteriormente assumiu um caráter religioso em Pitágoras e Platão, mas, pelo contrário, como a filosofia nasceu da religião e da teologia”7.
A tradição sapiencial e a excelência do chamado
A filosofia nasceu da religião e da teologia! Por isso a busca pela sabedoria não nasceu da filosofia grega, nem é sua exclusividade. É importante lembrar que, muito antes do período helênico, no contexto do antigo oriente próximo já havia uma tradição sapiencial como “um patrimônio cultural universal presente nas grandes comunidades do crescente fértil”. Já era comum, inclusive, haver escolas de sabedoria em cada território. Assim, o “testemunho literário de tradição sapiencial na Mesopotâmia e Antigo Egito, evidenciam a sofisticação e a importância pedagógica dada à sabedoria, nas expressões mais significativas de civilizações no crescente fértil”8.
A tradição sapiencial hebraica, presente nas Escrituras, se insere justamente no contexto dessas comunidades primevas de cultivo à sabedoria. e por toda a extensão do drama escriturístico a sabedoria é sempre um tema muito caro. Entretanto, mesmo fazendo parte desse pano de fundo comum, é nítido que a sabedoria bíblica se distingue consideravelmente das demais. Primeiro, por sujeitar toda a multiforme sabedoria ao “temor do Senhor”9. Além disso, “a sabedoria bíblica é epistemologicamente ‘criacional’ e ‘relacional’, o que a conecta com a narrativa hebraica de um mundo criado por Deus”10. Na Bíblia, Deus é quem revela “os segredos da sabedoria, pois a verdadeira sabedoria é multiforme!”11.
A perspectiva bíblica de um mundo criado e sustentado pelo poder do discurso divino (hokhma de Provérbios 8 e logos de João 1) conduz a sabedoria bíblica por um caminho sobremodo excelente com relação às demais. E, por meio da revelação, segue seu curso “pelo canal da aliança israelita em direção à plenitude do tempo”12 onde foi revelada na sua forma mais perfeita à humanidade. Jesus é a sabedoria divina encarnada, o fundamento de toda a realidade, pois “todas as coisas foram feitas por ele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez”13. É justamente aqui, pelo sopro da verdade de Cristo, que o ministério pastoral ganha vida.
O ministério pastoral é uma vocação teológica e, como Vanhoozer destaca, o pastor-teólogo deve ser um “intelectual orgânico”, ou seja, “um tipo específico de generalista: alguém que se especializa em ver a totalidade da vida na perspectiva do que Deus fez, está fazendo e fará em Jesus Cristo”14. A excelência desse chamado consiste em ser uma voz a reverberar o grande discurso divino do Deus que “falou, muitas vezes e de muitas maneiras”, especialmente a respeito do “Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também fez o universo”15.
Assim, o ministério pastoral dá continuidade à tradição sapiencial veterotestamentária ao anunciar “o que era desde o princípio”16, ao proclamar sob a perspectiva da revelação de Deus como “a pressuposição, a fundação, o segredo de tudo aquilo que existe, e em todas as suas formas”17. Destruindo “raciocínios falaciosos” e “levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo”18. A igreja precisa urgentemente resgatar a visão do pastor-teólogo como parte dessa tradição sapiencial, pois “cultivar a sabedoria de Jesus Cristo no dia a dia exige mais inteligência e criatividade do que as necessárias para escrever artigos acadêmicos”19.
Seja teologia, seja filosofia ou ciência, todos trabalham visando o mesmo objetivo: a verdade, ou seja, aquilo que há de fato: “Deus, o mundo e o homem”20. Toda filosofia que, assim como Platão, se esforce para criar abismos entre essas três realidades não passa de abstrações vazias “[trabalhadas] pela arte e imaginação do homem”21 com o fim de suprimir a verdade de Deus pela injustiça22.
Por isso é perfeitamente legítimo, e até imprescindível, que um pastor leia, examine, e dialogue com as propostas filosóficas de seu tempo, assim como o apóstolo Paulo discutiu com epicureus e estoicos em Atenas23. Como o apóstolo João em Éfeso confrontando o gnosticismo. Como o pastor escocês Thomas Reid refutando o ceticismo de Hume. Como o pastor-teólogo Herman Bavinck que, com louvável erudição e devoção, dialogou com as grandes questões de seu tempo proclamando a supremacia da revelação de Deus e, assim, influenciando toda a geração seguinte a promover uma teologia pública pautada pela revelação. “A revelação”, nas palavras de Bavinck, “é algo da maior importância não apenas para a religião, mas também para a filosofia e, particularmente, para a epistemologia”24.
Conclusão
Pertence a Tertuliano (160-220), prolífico teólogo do início da era patrística, o famoso questionamento: “Que tem o cristão em comum com o filósofo? Jerusalém com Atenas? A Igreja com a Academia?”25. São perguntas retóricas que apontam para uma absoluta oposição entre a filosofia e a teologia. O problema é que essa visão tende a favorecer apenas a filosofia pagã, permitindo trilhar livremente seu caminho, estabelecendo sua hegemonia na cultura. Seu equívoco está em não considerar que a fonte de toda inquietação filosófica é sempre religiosa e também em ignorar o importante papel do pastor-teólogo como um intelectual orgânico que dá continuidade à tradição sapiencial, como um exegeta tanto bíblico quanto cultural, a fim de comunicar eficazmente as verdades bíblicas à plenitude da vida.
Acreditamos que o estudo teológico é fundamental para todo cristão, e não apenas para pastores ou líderes. Afinal, a teologia nos ajuda a seguir a Cristo em todos os aspectos da nossa vida!
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1 MADUREIRA, J. Prefácio. In: REID, T. Investigação sobre a mente humana segundo os princípios do senso comum. Tradução de Aline Ramos. São Paulo: Vida Nova, 2013, p. 9.
2 CLARK, G. H. De Tales a Dewey. Tradução de Wadislau Gomes. 1ª edição. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 15.
3 Ibid., p. 18.
4 CUPANI, A. O que é filosofia? LEFIS – UFSC, 2021. Disponível em: <https://lefis.ufsc.br/o-que-e-filosofia/>. Acesso em: 31 mar. 2022.
5 BAVINCK, H. A filosofia da revelação. Tradução de Fabrício Tavares de Moraes. Brasília: Editora Monergismo, 2019, p. 51.
6 Ibid., p. 84.
7 Ibid., p. 202.
8 MIGUEL, I. D. S. Mischlei e Mediação Educacional: uma análise pedagógica de Provérbios de Salomão. Dissertação (Mestrado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo. 2013, p. 28.
9 Provérbios 9.10.
10 MIGUEL, op. cit., p. 23.
11 Jó 11.6.
12 BAVINCK, op. cit., p. 212.
13 João 1.3.
14 VANHOOZER, K. J.; STRACHAN, O. O pastor como teólogo público: recuperando uma visão perdida. Tradução de Marcio L. Redondo. São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 45, 236.
15 Hebreus 1.1-2.
16 1João 1.1.
17 BAVINCK, op. cit., p. 78.
18 2 Coríntios 10.4-5.
19 VANHOOZER; STRACHAN, op. cit., p. 19.
20 BAVINCK, op. cit., p. 129.
21 Atos 17.29.
22 Romanos 1.18.
23 Atos 17.18.
24 BAVINCK, op.cit., p. 125.
25 CLARK, op. cit., p. 184.
Referências Bibliográficas
BAVINCK, H. A filosofia da revelação. Tradução de Fabrício Tavares de Moraes. Brasília: Editora Monergismo, 2019. 342 p.
BÍBLIA SAGRADA. Tradução de João Ferreira de Almeida. (Nova Almeida Atualizada) 3ª. ed. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2017.
CLARK, G. H. De Tales a Dewey. Tradução de Wadislau Gomes. 1ª edição. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2012. 480 p.
CUPANI, A. O que é filosofia? LEFIS – UFSC, 2021. Disponivel em: <https://lefis.ufsc.br/o-que-e-filosofia/>. Acesso em: 31 mar. 2022.
MADUREIRA, J. Prefácio. In: REID, T. Investigação sobre a mente humana segundo os princípios do senso comum. Tradução de Aline Ramos. São Paulo: Vida Nova, 2013. p. 224.
MIGUEL, I. D. S. Mischlei e Mediação Educacional: uma análise pedagógica de Provérbios de Salomão. Dissertação (Mestrado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo. 2013.
VANHOOZER, K. J.; STRACHAN, O. O pastor como teólogo público: recuperando uma visão perdida. Tradução de Marcio L. Redondo. São Paulo: Vida Nova, 2016. 256 p.