Escrito por David Nunes Balotin, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020
Introdução
Em tempos de polarizações políticas e crises mundiais, talvez um assunto não tenha tido a devida atenção em nossos púlpitos. Nós menosprezamos o impacto que o sofrimento pode causar não apenas superficialmente em uma sociedade, mas também na filosofia, cosmovisão e até mesmo teologia de seu tempo e na posterioridade.
Evidentemente não é correto esquecer que o evangelho é uma mensagem de esperança, mas será que estamos levando em conta que o sofrimento em vida é inevitável, ou será que temos apenas utilizado o sofrimento como métrica de má espiritualidade ou ainda como uma escada para brilhar nossas narrativas de sucesso e suposta prosperidade?
O impacto do sofrimento no espírito do seu tempo
É seguro dizer que cada período tem um pensamento vigente. Chamamos este ‘pensamento vigente’ de Zeitgeist, ou ‘espírito de seu tempo’. Obviamente que o espírito de seu tempo não é uma unanimidade, mas este modo de pensar tende a estar entremeado nas raízes mais profundas de nossos pensamentos, impactando não somente o pensamento filosófico e modo de encarar a vida desta geração, mas também das próximas gerações, levando a impactos que talvez possam passar desapercebidos quando não examinados a longo prazo. Talvez nada possa nos impactar tanto quanto o sofrimento e, de igual forma, atuar de maneira devastadora no espírito de seu tempo.
Em 711 d.C. a Península Ibérica fora invadida e tomada pelos muçulmanos, restando apenas quatro reinos cristãos, Castela, Leão, Navarra e Aragão, estes acabaram retomando a Península Ibérica, porém esta experiência os levou a crer que eram a mão de Deus na terra para punir os infiéis, construindo o que Gonzáles chama de ‘Mito da Reconquista’ (GONZÁLES, 2010). Momentos de pressão extrema tendem a produzir um anseio por respostas, mas nem sempre as respostas que saciariam esta sede adequadamente foram produzidas, e se não há uma resposta cristã de esperança, outras respostas, ainda que tentem trazer esperança, fracassarão. Este modo de pensar e agir impactou imensamente na colonização latino-americana, deixando marcas que persistem ainda hoje, como a visão extremamente belicosa e maniqueísta que vemos em muitas vertentes cristãs.
Já na modernidade a pretensa era da razão não nos poupou de desenharmos catástrofes de grandes proporções, como por exemplo a Primeira e Segunda Guerra Mundial. Assim como ocorrido no exemplo anterior, as grandes guerras abalaram o modo de pensar respectivamente em seus períodos, o sofrimento e toda a desgraça trazida com as grandes guerras fizeram com que a humanidade colocasse questões sobre a mesa que antes não eram levadas em conta, ou pelo menos não eram priorizadas. Dooyeweerd nos conta como, na primeira guerra, o historicismo ganhou espaço com uma mensagem pessimista através das palavras de Oswald Spengler em sua obra ‘O Declínio do Ocidente’, deixando claro que, na visão de Spengler, nossa cultura ocidental está condenada ao declínio e nada pode salvá-la, uma vez que seu curso histórico fatal foi concluído (DOOYEWEERD, 2018). Já na segunda guerra o existencialismo, que tem em grande parte seu foco no sofrimento humano, acaba se tornando o pensamento vigente da época, tomado o centro do palco do espírito do seu tempo.
A importância do alerta ao sofrimento
O evangelho é essencialmente a maior mensagem de esperança da humanidade, é uma boa notícia trazida aos perdidos, porém, não podemos esquecer que, embora salvos pela graça maravilhosa de Cristo, ainda vivemos no mundo contaminado pelo pecado. Não podemos nos embriagar em esperanças escatológicas e ignorarmos que nossa vida e missão seguem. A nossa mensagem de esperança deve existir com uma sobriedade que nos permita manter os pés no chão e seguirmos cientes das intempéries vindouras.
Como igreja, pouco falamos sobre sofrimento. As vezes falamos sutilmente, apenas para que este sofrimento leve a uma palavra de ânimo, mas o sofrimento geralmente figura como algo do passado, prévio ao nosso encontro com Cristo, porém ainda assim sofreremos novamente, mesmo após nossa confissão pública de fé. Claro que nossa vida não é puro sofrimento, mas também não deve ser uma ilusão de alegria eterna, e não falar sobre sofrimento, deixando claro sua origem e inevitabilidade, faz com que não gerenciemos bem nossas expectativas, semeando e alimentando uma frustração, não preparando as pessoas adequadamente para os dias maus, e os dias maus virão.
Alguns movimentos evangélicos, como o pentecostalismo, talvez evitem tocar no tema do sofrimento por ter tido um berço onde o sofrimento estava muito mais próximo do cotidiano do que em outros movimentos, trazendo uma leitura bíblica com foco escatológico. O problema é que a esperança de prosperidade e uma vida melhor talvez tenha facilitado o caminho para teologias disformes que trouxeram o ideal de vida plenamente próspera para o plano terreno, levando cada vez mais a prosperidade financeira e o empreendedorismo para o centro do palco e antagonizando o sofrimento como se este fosse um indicador de fracasso espiritual.
Consequências da negligência sobre o sofrimento
O espírito de seu tempo não é uma ideia que transcende a mente humana, antes é a síntese do pensamento vigente, mas e este pensamento vigente, de onde vem? Dooyeweerd vai nos dizer que o ponto de partida do pensamento filosófico sempre é um motivo básico religioso atuando no nosso ego (DOOYEWEERD, 2018), pois se o pensamento filosófico não está direcionado a relação religiosa central, terá que ser buscado dentro do horizonte temporal de nossa experiência, tornando o próprio ego central um ídolo. Os reflexos deste modo de interpretar é visto mesmo em pensadores cristãos, percebemos que muitas vezes projetamos nossas ideias na nossa figura de deus, criando um ídolo mesmo quando tentamos nos referir ao próprio Deus. Dooyeweerd nos demonstra um exemplo claro de como nossas percepções impactam a nossa imagem de Deus quando nos fala sobre Leibniz. O impacto deste culto ao ideal científico fez com que Leibniz chamasse Deus de ‘grande Geômetra’, por exemplo, porque a visão de Leibniz era basicamente naturalista e matemática (DOOYEWEERD, 2018).
Fica claro então que nossa filosofia se alimenta de nossas experiências, pois o ego é revelado também na nossa relação com o mundo, já que o ego humano central não é nada em si mesmo, isto é, à parte das relações centrais nas quais se apresenta (DOOYEWEERD, 2018), logo estas relações vão impactar também nosso pensamento filosófico, alcançando muitas vezes as raízes mais profundas de nossos pensamentos, ou talvez até impactando a formação dessas raízes das gerações posteriores.
Não existe vácuo, se não preenchermos adequadamente as lacunas, principalmente nas partes mais difíceis e desagradáveis, como o dilema do mal e do sofrimento, estaremos preparando uma geração para a frustração. É como uma bomba relógio, onde alimentamos o cronómetro com mensagens rasas de ânimo sem tocar em assuntos importantes e delicados como o problema do sofrimento, que virão à tona mais cedo ou mais tarde, explodindo e causando problemas que poderão ser ainda piores pra se resolver, como por exemplo a dificuldade das pessoas em conseguirem entender que há pecado, dor, tristeza e morte no mundo, mesmo este tendo sido criado por Deus.
Os meios pentecostais, como já citados anteriormente, são um exemplo, pois por não se tocar no assunto do sofrimento adequadamente, como algo que inevitável a todos, e parte da humanidade pós-queda, com o tempo acabamos vendo que o sofrimento passou a ser um indicador de pecado ou de uma má espiritualidade. O que poderíamos então dizer de Jó, Paulo, ou até mesmo do próprio Cristo?
A nossa cosmovisão não pode ser movida por motivos básicos superficiais, que são levados pelos desejos capitalistas desse mundo, se focando apenas em uma vida abastada, ou ainda iludida com contos e narrativas infantis, onde todos viverão felizes para sempre, o nosso ‘felizes para sempre’ ainda não chegou, é importante ressaltarmos isso. Também não podemos abraçar o ideal humanista do Cristo paz e amor que ignora a queda humana e tem fé que tudo vai ser melhor porque o homem é bom. Sabemos que o homem foi criado bom, mas já não é mais assim, a queda já ocorreu, e ter a imagem de Cristo sequestrada pelo humanismo libertário não nos é um favor, é um desserviço.
Conclusão
Imagine uma criança que ganha um balão do pai, se alegrando vendo seu balão flutuar pelos ares, por mais que este balão flutue e alegre aquela criança, se este não estiver de alguma maneira amarrado em algo que funcione como uma âncora, ele voará, irá embora e toda a felicidade se tornará tristeza e frustração. O evangelho é uma mensagem maravilhosa e de esperança, mas não podemos permitir que ele se torne uma mensagem vazia de autoajuda ou apenas uma mensagem fraca de ânimo para nos trazer alegria, a realidade deve ser levada em conta sempre, para nos preparar e para construirmos uma teologia saudável e que suporte as tensões da vida humana pós-queda.
É evidente que morte, sofrimento, desgraças e o mau não costumam ser o assunto de maior apreço pela maioria das pessoas, também não são assuntos fáceis, mas são assuntos necessários, que devem ser levados em conta e com seriedade, e não de maneira leviana. Vemos, no sermão do monte por exemplo, que foram assuntos os quais o próprio Cristo não ignorou, e nos faz pensar que talvez John Stott tinha razão ao chamar o cristianismo de contracultura (STOTT, 1981), pois de fato, mesmo não sendo o assunto mais agradável, ainda assim não podemos fechar nossos olhos e pavimentar uma estrada para a frustração de nossos membros.
Bibliografia
DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico, tradução Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza – Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018.
GONZÁLES, Ondina E.; GONZÁLES, Justo. Cristianismo na América Latina: uma história – São Paulo, SP: Vida Nova, 2010.
STOTT, John R. W. A Mensagem do Sermão do Monte: contracultura cristã. Trad. Yolanda M. Krievin. São Paulo, SP: Abu Editora, 1981.
BÍBLIA, Antigo e Novo Testamento; tradução Almeida Edição Contemporânea – São Paulo: Editora Vida, 2005.